Vida como obediência
“A hierarquização das sociedades constituídas tem passado sempre por um “processo de obediência” a todos os níveis, mesmo os mais insuspeitos.”
“Mas mesmo quando és promovido, para além da motivação pessoal envolvida, há sempre nesse gesto a perpetuação da continuidade da estrutura hierárquica.”
“A finalidade da disciplina é a submersão do indivíduo no modo organizacional.”
“Até ao dia, em que por alteração de política governamental, a guerra (aquela) acaba: mais uma vez os soldados depõem as suas armas, mais uma vez obedecendo a ordens.”
Foi apenas através da organização social que o homem conseguiu sobreviver, face à agressividade do meio exterior que não lhe permitia a condição de ser solitário. Mas essa organização social seguida (e poderia ter sido outra?) implicou a construção de estruturas de domínio, estruturas de autoridade que foram substituindo as do mero enfrentamento físico, traduzindo-se na formação de grupos hierarquizados e reconhecidos por certos símbolos.
Naqueles tempos em que a sobrevivência era tudo, a existência de grupos organizados e da consequente divisão de tarefas, impôs-se como caraterística da sociedade humana. É simples de perceber a vantagem de uma milícia organizada sobre um grupo desorganizado sem direção ou estrutura. É simples de perceber que uma tribo na qual havia um grupo de guerreiros, um grupo de caçadores e um grupo que tomava conta das crianças tivesse uma enorme vantagem sobre outra que não possuísse divisão de tarefas.
Esta organização social permitiu também internamente dar estabilidade e promover o desenvolvimento de relações harmoniosas entre os seus membros. Definindo claramente o estatuto e a posição de cada membro dentro do grupo, reduzia ao mínimo as fontes de fricção. Ou seja, esta organização social permitia ao grupo lidar com as ameaças resultantes do meio exterior e com as ameaças resultantes de violência interna.
Para que esta forma de organização subsista torna-se necessário a existência de um pré-requisito, um potencial para a obediência. Este potencial existe em todos nós, mas só através da interação e influência da sociedade é que ele poderá dar origem ao homem obediente.
A formação de hierarquias não se faz sem que se produzam modificações internas nos elementos que a compõem, o que significa que os indivíduos que venham a fazer parte dessa hierarquia terão de modificar o seu modo de funcionamento. Ao entrar num sistema autoritário a pessoa tem a tendência a deixar de se ver a si própria como perseguindo os seus propósitos genuínos, mas antes como perseguindo os desejos de outra entidade. É como se a consciência, que regula as ações impulsivas e agressivas, tivesse de ser enfraquecida para poder entrar numa estrutura hierárquica.
Talvez resida nesta transformação, que aparece como pequena, a alteração que leve uma pessoa decente e cortês a ter comportamentos indecentes e severos para com outras pessoas. É que ela já não se vê como responsável pelas suas ações, mas antes como um instrumento para a consecução dos desejos de outros.
A hierarquização das sociedades constituídas tem passado sempre por um “processo de obediência” a todos os níveis, mesmo os mais insuspeitos.
Começando pela “família” vemos que nela a regulamentação parental não passa da inculcação de um sentido de respeito pela autoridade do adulto, ao mesmo tempo que é fonte de imperativos morais. Quando, nas melhores das intenções dizemos ao nosso filho: “Não batas nas crianças mais pequenas”, estamos a transmitir-lhe duas coisas: uma norma moral explícita (não bater em crianças mais pequenas por serem indefesas e inocentes) e uma outra norma moral implícita e escondida que lhe diz “E obedece-me, faz o que eu te digo”, o que faz com que a génese dos nossos ideais morais seja inseparável da inculcação de uma atitude de obediência.
Quando a criança sair do casulo da família, é para ir para a “escola”, local onde irá aprender não só disciplinas curriculares, mas essencialmente como funciona uma organização. Embora as suas ações sejam em grande parte determinadas pelo professor, fica a perceber que essa disciplina é regulamentada e regulada pelo diretor a escola. Que a arrogância não é bem aceite pela autoridade, devendo ser substituída pela deferência, isto se quiser ter uma vida escolar sem problemas face à autoridade.
Os primeiros 18 anos serão assim vividos como subordinado num sistema autoritário.
Terminada a escolaridade, encaminhar-se-á para o mercado de trabalho ou para o serviço militar. No “mercado de trabalho” vai aprender que, embora possa manifestar um certo grau de discordância, necessita sempre de mostrar uma certa submissão para comos superiores, se quiser conservar um ambiente harmonioso no trabalho e o emprego. Mesmo no caso de lhe ser permitida grande liberdade no trabalho, o facto é que estará sempre a fazer um trabalho que lhe foi imposto por outro.
O que daqui resulta é a internalização da ordem social, da forma como ela é conduzida: faz aquilo que o teu chefe diz que tens de fazer. Se falhares, és punido. Se fizeres, és promovido. Mas mesmo quando és promovido, para além da motivação pessoal envolvida, há sempre nesse gesto a perpetuação da continuidade da estrutura hierárquica.
Nas “forças armadas”, a primeira situação com que se depara (o quartel) é o afastamento e separação face às comunidades ‘civis’, e isso é feito para que possa ter uma imersão total noutro espaço, onde não haja qualquer influência de outras autoridades. Durante as várias semanas do treino básico fica claro que punições e recompensas dependem só da forma como obedecer.
As imensas horas passadas a fazer exercícios de ‘ordem unida’ (marchar) não têm que ver com o aperfeiçoamento do modo como manejamos a espingarda em andamento, ou como nos imobilizamos com ela. Quando colunas e pelotões se conseguirem movimentar como se de apenas um homem se tratasse, obedecendo ao comando de um sargento, o que se pretende com isso é eliminar quaisquer traços do ego do recruta e fazer com que internalize a aceitação da autoridade militar, sem discussão. Embora seja importante todo esse treino físico e de aprendizagem das técnicas militares, o fundamental é quebrar quaisquer resquícios de individualismo. A finalidade é a disciplina e a submersão do indivíduo no modo organizacional.
Antes de ser enviado para uma zona de guerra, são avançadas pela autoridade os grandes ideais que devem estar sempre presentes na mente dos soldados: é-lhes dito que se vão defrontar com os que são inimigos da nação, que se não forem destruídos, colocarão em perigo o país. Quaisquer ações que pareçam cruéis ou desumanas serão sempre justificáveis. Se a isto ainda juntarmos, por exemplo, o fato do inimigo ser de outra raça ou que o leve a ser considerado como sub-humano, qualquer resquício de simpatia para com o inimigo deixa de ser considerado. A desvalorização sistemática do inimigo (ou da vítima) serve de justificação psicológica para qualquer brutalidade efetuada.
Já na zona de guerra, o soldado sabe que a manutenção da disciplina é vital para a sua sobrevivência e que qualquer sintoma de desorganização colocará em perigo a sua unidade. Resta-lhe obedecer. Matar, ferir, torturar, sejam eles soldados ou civis, são atos encarados como acontecimentos não relevantes a nível pessoal. Eles estão ali para matar outros por uma justa causa, como lhes foi dito não só pelos seus chefes diretos, mas pela máxima autoridade, o Presidente.
As únicas possibilidades que lhes restam, se não quiserem cumprir as ordens, serão a desobediência ou a deserção. Desobedecer, além de ficarem sujeitos aos castigos que daí resultam, vai fazê-los aparecer como cobardes, desleais. O sistema só considera patriotas, corajosos, os que lhe obedeçam. Resta-lhes viverem o dia-a-dia e manterem-se vivos: não há tempo para pensar em moralidade. Um soldado não se pergunta se é bom ou mau bombardear uma habitação. Quando muito, ele sentirá orgulho ou vergonha consoante a forma como desempenhar a missão que lhe foi atribuída.
Quanto à deserção, para além do problema que é o para onde desertar, ela é punida com enorme severidade, o que parece até estranho para uma organização que tudo faz para anular o indivíduo em favor do grupo, e para a qual aparentemente o indivíduo não é importante. Ao nível do grupo ele será rapidamente substituído por outro que vai ocupar o seu lugar. O único problema é que se essa deserção não puder ser contida poderá levar a novas deserções. Por isso é que terá de ser isolada e severamente punida.
Exatamente para evitar os grandes níveis de incomodidade emocional que estas situações extremas de aniquilamento e tortura provocam, sempre que possível a autoridade recorre a ‘cortinas’ que tornem mais fácil a continuação da matança. Os exemplos ‘normais’ de ‘cortinas’ são os que provocam a morte à distância, bombardeamentos aéreos, napalm, bombas ‘inteligentes’ ou bombas atómicas.
Até ao dia, em que por alteração de política governamental, a guerra (aquela) acaba: mais uma vez os soldados depõem as suas armas, mais uma vez obedecendo a ordens.