Tudo azul, tudo muito azul
“Em 2045, um computador portátil terá a capacidade para efetuar o mesmo número de operações por segundo que o cérebro de toda a humanidade reunida.”
“Neste mundo globalizado, caímos na indiferença globalizada. Acostumámo-nos ao sofrimento dos outros: não me afeta, não me preocupa, não é um assunto meu”, Papa Francisco.
A crença na mensurabilidade e na possibilidade de quantificação da vida domina toda esta era digital, daí encontrar-se cada vez mais expandida em certos setores a ideia-certeza que o futuro está na ciência ou que o futuro é a ciência. O progresso advém da ciência e o que advém da ciência é progresso. Não é de admirar que afirmem que o crescimento que se tem verificado desde 1870 na Inglaterra e nos Estados Unidos se ficou todo a dever à inovação tecnológica. E preveem que tal processo se vai acelerar, para bem da humanidade.
Baseiam esta sua tese-constatação na chamada ‘lei de Moore’ e na contribuição que lhe é emprestada pelo ‘crescimento exponencial’. A chamada lei de Moore postula que desde 1965, a potência informática se tem vindo a multiplicar exponencialmente a cada vinte e quatro meses. Apresenta como exemplo fácil de entender e constatar, as afirmações feitas por Gary Kasparov em 1996, após ter derrotado o grande supercomputador da altura, o Deep Blue da HP, quando disse que “nenhum computador jamais poderia ganhar a um mestre de xadrez”, e no entanto, apenas mais um ano decorrido, o Deep Blue venceu Kasparov, e a partir daí nunca mais ninguém conseguiu ganhar ao computador. Outro exemplo também visível e demonstrativo dessa lei: o facto de hoje um smartphone ter mais potência informática do que a que foi necessária para colocar um homem na Lua.
Quanto ao crescimento exponencial, compreende-se melhor a sua contribuição com alguns exemplos simples: se dermos trinta passos de um metro cada, andaremos trinta metros; mas se os dermos de forma exponencial (o primeiro de um metro, o segundo de dois metros, o terceiro de quatro metros, o quarto de oito, a seguir 16, 32, 64, 128, 256…) ao chegarmos aos trinta passos teremos dado 26 voltas à Terra. Outro exemplo: se dobramos uma folha de papel que tenha 0,1 milímetros de espessura, obteremos uma espessura de 0,2 milímetros. Se dobrarmos uma terceira vez, obteremos 0,4 milímetros. Se dobrarmos 26 vezes, obteremos quase 7 quilómetros de espessura. Dobrando-a 42 vezes alcançaríamos a Lua (439.805 quilómetros).
Juntando estes dois efeitos, lei de Moore e crescimento exponencial, e sabendo que em 2008 um computador portátil realizava o mesmo número de operações por segundo que o cérebro de um inseto, que em 2013 o mesmo número de operações por segundo que o cérebro de um rato, então é previsível que em 2025 a sua capacidade computacional venha a ser idêntica à do cérebro humano, que em 2045 seja equivalente à de toda a humanidade, e que no passo seguinte (24 meses depois) venha a ter o dobro da capacidade de toda a humanidade. Em 2050 estará certamente a bater à porta de Deus.
Sabe-se também por informação de estatísticas e de “novas leis’’ que todos os quinze anos o número de cientistas aumenta para o dobro, o que por sua vez implicará idêntico crescimento exponencial no número de trabalhos científicos e de patentes. Não é pois de admirar o aparecimento de hinos à sociedade resultante da aplicação destes novos e imparáveis avances científicos. Escreve Matt Ridley n’O Otimista Racional:
“O índice de mortalidade típico de muitas sociedades caçadoras-recolectoras (0,5% da população ao ano) equivaleria a dois mil milhões de pessoas mortas no século XX (em vez dos cem milhões) […] O infanticídio era um recurso comum em tempos difíceis. As doenças estavam também sempre por perto: gangrena, tétanos, e muitas outras. Não mencionando ainda a escravidão, o mau trato das mulheres, a falta de sabão, água quente, pão, livros, cinema, papel, etc..”
E prossegue explicando que foi a tecnologia que permitiu a obtenção do superavit de alimentos, e esteve assim na origem do aumento das calorias resultantes disponíveis que permitiram que viéssemos a viver hoje três vezes mais do que o que vivíamos, o que nos deu o tempo suficiente para abordarmos novos problemas, propiciando-nos mais tempo para refletirmos e nos apercebermos do envolvente, e mais tempo para ler livros o que nos conduziu a termos mais empatia pelos outros.
Graças ao tempo que lhe foi propiciado pelos avanços tecnológicos e que assim lhe permitiram desenvolver a empatia que tem pelos outros e apressado para se adiantar a 2050, não fosse o caso de nessa altura os problemas que queria tratar estivessem já resolvidos, o Papa Francisco, veio-nos dizer a 8 de Julho de 2013:
“Quantos de nós, onde me incluo, perdemos o rumo; já não estamos atentos ao mundo em que vivemos; não nos importamos; não protegemos o que Deus criou para todos, e acabamos por ficar incapazes de cuidarmos uns dos outros. E quando a humanidade perde o rumo, acontecem tragédias como as que estamos a presenciar… Há que fazer-se a pergunta: quem é responsável pelo sangue destes nossos irmãos e irmãs? Ninguém! Esta é a nossa resposta: não sou eu; eu não tenho nada a ver com isso; deve de ser outra pessoa, mas eu é que não… No nosso mundo, hoje, ninguém se sente responsável; perdemos o sentido da responsabilidade para com os nossos irmãos e irmãs … A cultura do conforto, que nos leva a pensar só em nós próprios, tornam-nos insensíveis aos gritos das outras pessoas, empurra-nos a viver em bolas de sabão que, por mais belas que sejam, são insubstanciais; oferecem uma ilusão vã e passageira que desemboca na indiferença pelos demais, chegando mesmo à globalização da indiferença. Neste mundo globalizado, caímos na indiferença globalizada. Acostumámo-nos ao sofrimento dos outros: não me afeta, não me preocupa, não é um assunto meu.”
E diz mais, quando nos chama a eliminar a parte de Herodes que se acoberta em nós:
“Peçamos ao Senhor a graça de chorar pela nossa indiferença, de chorar pela crueldade do nosso mundo, dos nossos próprios corações e de todos aqueles que, no anonimato, tomam decisões sociais e económicas que abrem a porta a situações trágicas como esta. Tem chorado alguém? Tem chorado alguém no nosso mundo de hoje?”
Nada que a ciência e os seus computadores, ou os computadores e a sua ciência, que não estão evidentemente ao serviço de ninguém a não ser do interesse geral da humanidade, resolverão. Todos estes pequenos problemas colaterais, próprios de civilizações atrasadas, que preocupam o Papa (não mais guerras, não mais refugiados, não mais desemprego, não mais fome, não mais desajustamentos) serão resolvidos nem que seja à custa de fármacos, de pequenas intervenções cirúrgicas que nos tornem mais tranquilos e mais obedientes, ou pela alteração da nossa quantidade por desinfestação bacteriológica.
Serão tantas as certezas dadas por tão grandes capacidades computacionais que devo também apressar-me a reproduzir uma pequena nota dos cadernos de Kafka, antes que ela venha a ser incompreensível em 2050, e onde ele refletia sobre:
“Um grupo de passageiros de um comboio que teve um acidente num túnel, num local onde já se não se conseguia ver a luz da entrada e, quanto à da saída, ela aparecia tão pequena que a vista tinha de a fixar continuadamente, e constantemente se perdia, ao ponto de os passageiros acabarem por nem sequer estarem seguros se se tratava do princípio se do fim do túnel”.