Todos nós fazemos filmes
“As coisas não vão bem, há oportunidades que se perdem, há continuamente algo que falha”, Morfeu no Matrix.
“Louco não é só um mendigo acreditar que é rei, é também um rei acreditar que é rei”, Lacan.
Todos nós, quando vamos de férias, temos a tendência para as recriar, quer durante a sua preparação onde todos os detalhes são previstos e antecipadamente saboreados, quer durante as próprias férias com a tentativa de engrandecermos alguns, mesmo que poucos, momentos ou acontecimentos que nelas se venham a passar, quer até numa projeção antecipadamente sonhada do que delas ficará.
Todos nós, quando estamos doentes, temos a tendência para recriar a ‘nossa’ doença perante os outros, ‘tudo’ contando sobre ela aos nossos ouvintes, incluindo a nós próprios. Neste ‘tudo’ incluímos o mais e o menos, onde cabe a história da família, os possíveis mesmo que não prováveis antecedentes, bem como as consequências futuras mesmo que as não haja. Enfim, ‘um filme’. E é exatamente isto: todos nós somos realizadores de filmes.
É com o filme Matrix dos irmãos Wachowski, que pela primeira vez no cinema (1999) se aborda o problema da realidade virtual, ou seja, daquela situação em que toda a riqueza da nossa experiência sensorial é anulada, reduzindo-a a um mero sinal elétrico de transmissão de uma série de 0 e 1. Com isso pretende-se obter uma experiência “simulada” da realidade que se confunda completamente com a “autêntica” realidade.
Esta tentativa de criar outras realidades dentro da realidade ocorrera já noutras obras cinematográficas, como por exemplo no filme (1953) de George Seaton As 36 Horas. Nele se conta a história de um oficial americano (James Garner) conhecedor dos planos da invasão da Normandia, que é aprisionado pelos alemães poucos dias antes do Dia D. Aproveitando-se do fato do oficial continuar inconsciente devido à explosão que levara à sua captura, os alemães resolvem fazer uma réplica de um pequeno hospital americano, para que quando despertasse, o convencessem que estava no ano de 1950, e que a América tinha ganho a guerra, tendo ele vivido todos aqueles anos com perca de memória. O objetivo era que ele lhes acabasse por revelar os planos da invasão.
No filme (1998) TheTruman show de Peter Weir, Jim Carrey julga viver o seu dia-a-dia numa cidade que afinal não passava de uma construção dentro de um enorme estúdio de televisão. No livro (1984) Starship de Brian Aldiss, uma tribo inteira vive num mundo fechado dentro de uma enorme nave espacial, desconhecendo a existência do universo fora do túnel onde viviam.
Já no Matrix é muito mais elaborada a justificação para existência desse megaordenador (o Matrix) que cria uma rede que vai estruturar a nossa realidade, confundindo a “verdadeira realidade” que se esconde atrás de tudo. A justificação para a sua existência é dada por Morfeu: “As coisas não vão bem, há oportunidades que se perdem, há continuamente algo que falha”.
Ou seja, acredita-se que existe uma realidade “autêntica” para além da nossa realidade quotidiana que depende desse Matrix. Mas podia ser pior: imagine-se que tudo o que existisse fosse gerado pelo Matrix; neste caso não haveria uma realidade última, apenas uma série de realidades virtuais. E podia ser ainda muito pior: basta imaginar que todas as realidades geradas fossem reais; neste caso, quando elas se encontrassem, desintegrar-se-iam, dando provavelmente origem a um novo universo (receios amplamente manifestados perante a experiência da aceleração e colisão de partículas para encontrar o bosão de Higgs).
Os críticos, sempre atentos aos pormenores, têm tendência a apontarem algumas incoerências ao argumento do filme, nomeadamente quando Neo começa a ensinar às pessoas que estão prisioneiras como se podem salvar, quebrando as leis físicas, dobrando metais, voando pelo ar. E explicam que tudo isso só poderia ser possível se nos continuássemos a manter dentro da mesma realidade virtual criada pelo Matrix, pelo que continuaríamos sempre a ser escravos dele.
Vejamos: a solução utilizada pelo Matrix foi a de, ao mesmo tempo que nos reduzia à condição passiva de sermos seres humanos levando uma vida claustrofóbica em cubas cheias de líquido e mantidos vivos só para produzir a energia elétrica que o alimenta, ter dado a cada megaordenador a função de dissimular a incoerência e incompletude da realidade. Ou seja, uma das maneiras para ocultar esta nossa realidade incompleta, incoerente e sem saída, é admitirmos que por detrás dela existe uma outra realidade completa, coerente e possível. O Matrix funciona assim como “um ecrã que nos separa da realidade para que possamos suportar o vazio do real.”
Assim, talvez esses momentos apontados como de falta de coerência sejam aqueles que melhor nos descrevam a verdade da nossa experiência social onde a realidade surge cada vez mais como perturbadora do princípio do prazer (a realidade como fonte de desprazer, onde não queremos estar), e onde a liberdade só seja possível dentro de um sistema em que ela própria se torna um obstáculo para a sua realização (teríamos de nos ver livres desta ‘liberdade’ que temos e gostamos, para alcançar a verdadeira liberdade).
Nas nossas vidas individuais e nas nossas sociedades, todos conhecemos casos em que se criaram, voluntária ou involuntariamente, realidades fora da realidade. Foi assim com Lenine, que nos últimos dois anos de vida só leu edições especiais do Pravda propositadamente feitas para ele, que Estaline mandava imprimir, e onde não figuravam quaisquer notícias referentes a lutas políticas internas, com a justificação que Lenine não deveria ser perturbado, de forma a assegurar o seu descanso. Foi também assim com Hitler quando no fim da Guerra comandava do seu bunker exércitos inexistentes, dirigindo batalhas que não tinham qualquer relação com o mundo real.
Foi assim com Salazar após ter caído da cadeira. Tendo ficado incapaz para governar, sendo substituído por Marcelo Caetano, continuou no entanto a despachar os assuntos da nação com alguns dos Ministros que a isso se prestaram, sendo tratado como se continuasse a ser o Presidente do Conselho.
Referindo-nos a acontecimentos importantes que pretenderam criar uma outra realidade, lembremos a encenação do ataque a navios americanos no golfo de Tonquim e que originou a guerra do Vietnam, e a encenação sobre as armas químicas de destruição de massa que deu origem à guerra do Iraque.
A nível individual, temos a tentativa de criação de outras realidades com as viagens, as férias, a ida a espaços de divertimento, o esconder de certas doenças e outras situações quotidianas.
Ao utilizar estes casos não pretendo nem ser exaustivo, nem parcial, nem moralista. Pretendo apenas chamar a atenção para as razões de ser que estão na origem de tais comportamentos. É que, conforme referia Morfeo, “as coisas não vão bem, há oportunidades que se perdem, há continuamente algo que falha”. É por a realidade ser incompleta, incoerente e sem sentido que se recorre ao Matrix. O problema é que ela só é assim porque somos nós que somos incompletos, incoerentes e sem sentido, e é com isso que temos de saber viver. Vá, vão lá para as férias! Entrem depressa no ecrã do Matrix antes que as retirem!