Sobre viagens e férias
“O mundo é um livro e aqueles que não viajam leem apenas uma só página”, Santo Agostinho.
“Só depois de conhecido a superfície das coisas nos podemos aventurar a procurar o que está por baixo. Mas, a superfície das coisas é inesgotável”, Ítalo Calvino.
“Sábio como és agora, senhor de tanta experiência, terás compreendido o sentido de Ítaca”, Constantin Cavafy.
Segundo nos conta J. K. Huysmans, em 1884 o duque de Esseintes vivia só num grande palacete nos arredores de Paris, passando os seus dias a ler os clássicos, colecionando pensamentos sobre a humanidade. Das poucas vezes que saíra para ir a uma aldeia vizinha, depressa começara a sentir um sentimento de repulsa, que o levara a não mais querer afastar-se de casa. “Para evitara fealdade e a estupidez”. Até que, talvez por influência do que lera de Dickens, um dia acordou com o enorme desejo de conhecer Londres.
Mandou os criados fazerem-lhe as malas, vestiu-se à inglesa, fato de tweed, chapéu de coco e capa de inverno, e eis que parte para Paris no primeiro comboio. Dispondo de tempo até apanhar o transporte que o levaria para Londres, foi a uma livraria comprar o Guia de Londres de Baedeker, o que lhe permitiu sonhar com os passeios que procurava vir a fazer. À hora do almoço, entrou numa taberna inglesa da rua de Amsterdão, perto da Gare Saint Lazare. Local tipicamente inglês, escuro e cheio de fumo, um grande balcão e filas de torneiras de cerveja de barril, pequenas mesas de bancos corridos onde se sentavam “robustas inglesas de traços masculinos, com os seus dentes grandes como espátulas, as suas faces afogueadas como maçãs, e as mãos e os pés enormes”. Comeu sopa de rabo de boi, rosbife com batatas, dois pintos de cerveja e queijo de Stilton.
Quando por fim chegou a hora do transporte para Londres, Des Esseintes sentiu-se subitamente muito cansado só de antever que teria ainda de se pôr a caminho da estação, disputar um bagageiro, subir para o comboio, dormir numa cama estranha, apanhar frio, pôr-se em bichas só para visitar afinal os lugares que o Baedeker tão minuciosamente descrevia.
“Para que se há-de mover quem pode fazer viagens maravilhosas sentado na sua cadeira? Não estaria ele já em Londres, cujos cheiros, clima, população, pratos de cozinha sem que faltassem sequer os talheres, o rodeavam? Que mais poderia esperar para além de tudo isso, a não ser novas deceções?” Des Esseintes pagou a conta, saiu da taberna, e com os seus baús, os seus sacos, os seus fatos emalados, guarda-chuvas e bengalas, apanhou o primeiro comboio de regresso, e nunca mais saiu de casa.
Bem sei que Desseintes pertence aquela categoria para a qual a realidade não pode deixar de ser dececionante. Charles Tomlinson acrescentava que “os melhores dias são aqueles em que não se tem de ir a nenhum lado”
.
O que nos leva a pôr a questão: porque viajamos? Para Jack Kerouac, porque “a estrada é a vida”; para Bill Bryson, “para experimentar as coisas pela primeira vez”; para Mark Twain, porque é um antídoto contra “o preconceito e a intolerância”; para Santo Agostinho, porque “o mundo é um livro e aqueles que não viajam leem apenas uma só página”.
Como é Verão, está muito calor e é tempo de férias (“féria” era o dia em que, devido a uma prescrição religiosa, se não trabalhava, daí a primeira feira, segunda feira, até à sétima feira, em que a primeira feira foi substituída pelo dia do Senhor –Dominicus dies -, o Domingo, e a sétima pelo Sábado, dia em que os primeiros judeus cristãos se reuniam para orar, o que faz da tradição portuguesa única no mundo por ainda a conservar; talvez seja interessante lembrar que se por férias entendermos o tempo em que se não está ocupado, tal já há muito se vinha verificando, por exemplo, sempre que aparecia o Inverno obrigando as pessoas a recolherem-se em casa sem nada para cultivar nos campos; lembrar também que as primeiras verdadeiras férias em todo o mundo só apareceram em 1936 quando o governo Francês da Frente Popular decretou duas semanas de férias pagas a todos os trabalhadores – três semanas em 1956, quatro em 1969 e cinco em 1981), não vou falar sobre o significado das viagens, dos descobrimentos, dessa primeira tentativa de “unificação da Terra através do dinheiro em todos os seus avatares, como mercadoria, como texto, como conta, como número, como imagem, como notoriedade”, dessa primeira globalização realizada pelas descobertas marítimas cristo-capitalistas e implantada politicamente pelo colonialismo dos Estados-nação da Europa.
Nem tão pouco vou falar da real relacionação entre viagens e férias. Ficarei apenas pela superficialidade da viagem e das férias como aventura, tendo em atenção o que Ítalo Calvino nos dizia: "Só depois de conhecido a superfície das coisas nos podemos aventurar a procurar o que por baixo. Mas, a superfície das coisas é inesgotável”.
Assim, deixo-vos aqui Ítaca, um poema do grego CAVAFY, Constantin, 1986, Constantin Cavafy, 90 e mais quatro poemas, versão portuguesa, prefácio, comentários e notas de Jorge de Sena, 2ª Edição, Centelha, Coimbra, que espero vos acompanhe em todas as vossas viagens e férias.
Quando partires de regresso a Ítaca,
deves orar por uma viagem longa,
plena de aventuras e de experiências.
Ciclopes, Lestrogónios, e mais monstros,
um Poseidon irado – não os temas,
jamais encontrarás tais coisas no caminho,
se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime
teu corpo toca e o espírito te habita.
Ciclopes, Lestrogónios, e outros monstros,
Poseidon em fúria – nunca encontrarás,
se não é na tua alma que os transportes,
ou ela os não erguer perante ti.
Deves orar por uma viagem longa.
Que sejam muitas as manhãs de Verão,
quando, com que prazer, com que deleite,
entrares em portos jamais antes vistos!
Em colónias fenícias deverás deter-te
Para comprar mercadorias raras:
coral e madrepérola, âmbar e marfim,
e perfumes subtis de toda a espécie:
compra desses perfumes quanto possas.
E vai ver as cidades do Egipto,
Para aprenderes com os que sabem muito.
Terás sempre Ítaca no teu espírito,
Que lá chegar é o teu destino último.
Mas não te apresses nunca na viagem.
É melhor que ela dure muitos anos,
que sejas velho já ao ancorar na ilha,
rico do que foi teu pelo caminho,
e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.
Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.
Sem Ítaca, não terias partido.
Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.
Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.
Sábio como és agora, senhor de tanta experiência,
Terás compreendido o sentido de Ítaca.