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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Salamaleques

 

“Nós só pagamos o que quisermos”, Tim Cook, presidente da Apple.

 “Não nos digam para pagar mais impostos na Irlanda; vocês deviam era de estar gratos por nós estarmos aqui a ajudar o país.”

 “Há rumores crescentes sobre os esforços das grandes empresas financeiras para, de modo sub-reptício, e através de acordos comerciais, conseguirem fazer aquilo que não poderiam fazer de forma aberta, à vista de todo o público”, Elizabeth Warren, senadora dos EUA.

 

É hoje mais do que evidente para qualquer um, que os governos dos vários países pouco ou nada representam no plano do financeiro. São, utilizando uma expressão muito em voga nos tempos áureos do MRPP, “lacaios” do sistema financeiro.

O passo seguinte, que há muito também tem andado a ser preparado, é a da claudicação dos governos perante o económico. Quero com isto dizer, que passarão a ser as grandes companhias (multinacionais, evidentemente) a disporem dos governos, a mandarem neles conforme for a sua conveniência.

Talvez resida aqui a explicação para o Brexit e para estas movimentações recentes sobre os impostos a “serem pagos” (?) pelas multinacionais, tendo sempre como pano de fundo o escondido Acordo Transatlântico de Comércio Livre (TTIP).

 

 

Após três anos de investigação ao acordo sobre impostos realizado entre o governo da Irlanda e a Apple, a Comissão Europeia decidiu que a Apple deveria pagar à Irlanda 13 milhares de milhões de Euros, referentes a ajudas indevidas recebidas e que terão de ser devolvidas ao Estado irlandês.

De uma forma simples: a Apple, antes desse tal acordo, pagava ao Estado irlandês 500 Euros de imposto por cada milhão de lucro; depois do acordo, a Apple passou a pagar apenas 50 Euros de imposto por cada milhão de lucro. Salamaleques.

Eis algumas das reações que se seguiram, tidas por importantes americanos:

 

Isto é uma maneira fácil da Comissão Europeia arranjar dinheiro, à custa das empresas americanos. Forçando os seus estados membros a aplicarem retroativamente impostos a companhias americanas, a EU está incorretamente a sabotar a nossa capacidade de competir economicamente na Europa, ao mesmo tempo que se apropria de impostos que serviriam para aumentar os investimentos aqui nos EUA”, Charles Schumer, senador democrata sénior.

 

Esta é uma decisão horrível. Atingir uma companhia com um gigantesco pagamento de impostos, anos depois dos factos acontecidos, envia exatamente a mensagem errada para os que querem criar empregos nos dois lados do Atlântico. Além disso, é uma violação direta dos tratados de muitos países europeus. Este é exatamente um caso de impostos imprevisíveis e extremamente pesados, que aniquilam empregos e oportunidades”, Paul Ryan, republicano, presidente da Câmara dos Representantes.

 

Curiosamente, estes foram os dois senadores que propuseram alterações ao código de impostos americano, pretendendo com isso forçar as companhias gigantes, como a Apple, a pagarem mais impostos nos EUA.

 

Uma decisão extraordinária contra as empresas americanas, por uma alteração de legislação sobre o regime de impostos que já estava em vigor”, Orrin Hatch, membro da Comissão de Finanças do Senado.

A Casa Branca, sempre atenta e preocupada, manifestou a sua “preocupação” por aquilo que considerava ser uma “decisão unilateral”.

 

Já o CEO da Apple, Tim Cook, escreveu, como resposta à Comissão Europeia, “Uma Mensagem para a Comunidade da Apple na Europa”, onde passa a historiar todo o processo, tecendo várias considerações. Essa sua “Mensagem” pode ser resumida assim:

 

 “Não nos digam para pagar mais impostos na Irlanda; vocês deviam era de estar gratos por nós estarmos aqui a ajudar o país.”

 

Recordemos que a Apple emprega na Irlanda 6,000 pessoas de uma população de 4,7 milhões, e que os 13 milhares de milhões de euros de impostos considerados devidos, correspondem ao total orçamentado pelo governo irlandês para a saúde e 66 por cento dos gastos com a segurança social.

 

O que nos estão a atirar à cara é que todos nós, europeus e não só, deveríamos estar gratos a estas companhias de topo americanas por terem vindo para a Europa providenciar empregos para os coitados dos pobres locais. E que, só por isso, estas grandes companhias deveriam ser objeto de um tratamento especial. É a chamada ‘teoria do excecionalismo’, tão querida dos que se creem donos do mundo. Sempre assim foi. Salamaleques.

 

Na realidade, até agora, a grande maioria dessas companhias gigantes, têm pago muito poucos impostos nos países europeus onde se instalam, através dos tais acordos que são feitos quase sempre à medida para servirem os seus interesses.

 Só assim se entende que, por exemplo, entre 2008 e 2012, a Starbucks, Amazon, Facebook e a Google UK, tendo tido lucros acima dos 3,1 milhares de milhões de Libras, pagassem apenas 30 milhões de Libras em impostos.

Mas, Tim Cook, vai ainda utilizar um outro ‘curioso’ argumento: o de a Apple ser a companhia que mais impostos paga em todo o mundo, o que, podendo ser verdade é, como ele muito bem sabe, impossível de ser verificado, pelo que se trata de uma afirmação vazia. Salamaleques.

 

O problema destas relações pouco limpas e conturbadas da Europa com grandes companhias multinacionais americanas, não acontece apenas da Irlanda. Por estas e outras razões, é que o Presidente francês, François Hollande dizia, a propósito do Acordo Transatlântico de Livre Comércio (TTIP) que este ano não iria haver qualquer acordo entre a EU e ao EUA. E, Mathias Fekl, ministro francês, corroborava:

 

Os americanos não nos dão nada, apenas migalhas… Não é assim que se fazem negociações entre aliados…. Torna-se necessário por um ponto final nestas negociações, para que se possam voltar a iniciar em boas bases.”

 

A aprovação do TTIP seria o passo final para as companhias americanas passarem a mandar na UE. Segundo Ross Clark, do Daily Express:

 

O TTIP ameaça trazer para a Europa um dos piores aspetos da vida americana: a voraz industria legal.

Será fácil imaginarmos as companhias dos EUA a cilindrarem os tribunais para obterem o direito a dirigirem um hospital Inglaterra; mas será, sem dúvida, mais difícil de imaginarmos um fabricante de automóveis inglês a usar os tribunais para o ajudar a ganhar um contrato para fornecimento de veículos ao Exército dos EUA.

 

Em que consiste então este tão famoso e escondido TTIP (Transatlantic Trade and Investement Partnership)?

 

Em princípio seria um tratado comercial baseado em grande parte na regulamentação económica, com o objetivo de incrementar, agilizar e liberalizar o comércio entre ambos os lados do Atlântico, a maior zona de comércio livre do mundo com uma clientela superior a 800 milhões de pessoas, somando quase metade do PIB mundial.

Tem como antecedentes e preparatórios a Declaração Transatlântica de 1990 (para promover o comércio livre entre os EUA e a EU), a Nova Agenda Transatlântica de 1995 assinada em Madrid, o Conselho Económico Transatlântico criado na cimeira Europeia de 2007 durante o mandato de Durão Barroso com a presidência de Angela Merkel e a presença de George W. Bush, tendo, por fim, sido oficialmente iniciadas as negociações para o TTIP em 2013, com Durão Barroso e Herman van Rompuy na presidência.

Ou seja, o cozinhado há muito que vem sendo preparado, tudo segundo a ordem natural e na senda do desenvolvimento do sistema, com vista à melhoria das condições de vida das pessoas, de algumas mesmas pessoas.

Sempre a bem da harmonização das leis e contra os códigos limitativos da liberdade concorrencial, irá permitir, por exemplo:

 

- Baixar os padrões de qualidade europeus, nomeadamente no que diz respeito ao meio ambiente, ao uso de pesticidas, à experimentação animal em produtos cosméticos, e nos produtos transgénicos.

Este baixar de qualidade acontecerá, dado que uma maior liberalização será sempre feita tendo em consideração o menor denominador comum: a única forma de o fazer será, portanto, debilitando os regulamentos que impõem mais restrições, ou seja, os regulamentos europeus. É, por exemplo, o caso das normas respeitantes à rotulagem dos produtos de alimentação que referenciem certos químicos que a indústria americana não entende como necessária.

- Restringir sistematicamente a liberdade de associação dos trabalhadores na Europa, na sua luta contra o desemprego e a austeridade. O direito à liberdade de associação e das práticas sindicais sempre que as empresas forem consideradas em situação difícil, não é reconhecido pelos EUA, uma vez que não ratificaram algumas normas e regulamentações da Organização Internacional do Trabalho, OIT (entre elas, esta), pelo que o TTIP, ao reformar a legislação laboral europeia por forma a equipará-la à americana, irá impor essa limitação à liberdade de associação.

- Impedir o aparecimento de medidas estatais para favorecer a contratação pública pelas companhias nacionais, ao assegurar que a contratação pública seja aberta à competição estrangeira. O Estado ver-se-á assim impedido de apoiar a economia local para se recuperar da crise financeira.

- Proteger o monopólio de patentes das grandes empresas, como, por exemplo as farmacêuticas, prorrogando-lhes o prazo, o que irá dificultar, entre outros, o acesso aos medicamentos genéricos.

- Que os vários governos possam vir a serem demandados extrajudicialmente pelas grandes empresas, bancos, outras instituições financeiras (em tribunais de arbitragem privados internacionais– os chamados Imperial Court System, ICS - evitando assim o recurso aos tribunais nacionais), sempre que, ao procederem a alterações de legislação e de regulamentos, tais alterações possam ser consideradas como passíveis de vire a afetar lucros futuros dessas instituições e empresas.

 

É, especialmente, esta última regra que irá provocar maiores alterações no sistema atual de relacionamento entre Estados, que acabará por retirar qualquer poder aos governos e Estados face ás grandes empresas.

 

 Três exemplos conhecidos de outros Tratados equivalentes e já implementados:

 

Quando o governo do Egito subiu o salário mínimo dos trabalhadores, a companhia multinacional Veolia, encarregue de eliminar resíduos em Alexandria, intentou uma ação no valor de 116,6 milhões de Dólares nesse tribunal privado de arbitragem, alegando “incumprimento de contrato”.

 Quando o governo de Québec decidiu em 2011 aplicar uma moratória sobre o fracking, a empresa exploradora de petróleo e gás, a Lone Pine Ressources, intentou uma ação de 250 milhões de Dólares contra o governo de Québec, por possíveis percas futuras, apesar de ainda não ter começado a perfurar.

 Quando o governo de Espanha resolveu fechar a instalação submarina de armazenamento de gás da Castor por esta ter provocado perto de 500 sismos em 2013, viu-se obrigada a indemnizar a concessionária em 1.350 milhões de Euros como “compensação” por ter acabado com a exploração.

 

Resumindo: as grandes empresas passam a ter o direito de por os governos em tribunal se eles não protegerem os lucros dos negócios.

O que em vários casos irá comprometer os direitos dos cidadãos se os governos os tentarem proteger. Com a agravante de serem depois os próprios cidadãos a pagarem as indemnizações a que os governos forem obrigados. Como sabemos.

As nações, os países, os governos como os temos vindo a entender até hoje, passam a ser meros clubes desportivos ou associações recreativas sem qualquer poder de proteção relativamente aos seus nacionais. Pior que as Misericórdias.

 

 Mas, mesmo sem o TTIP, as companhias americanas e o capital financeiro dos EUA, têm vindo a penetrar em áreas da economia de vários países europeus que até há pouco tempo eram consideradas como proibitivas para o capital estrangeiro. Vejamos o caso do Reino Unido:

 Em 1970, era impensável a ideia de que companhias americanas pudessem vir a serem donas das empresas britânicas de abastecimento de água, de recolha de lixo, de fornecimento de sangue ao Serviço Nacional de Saúde, e outras.

E, contudo, em 2007, um grupo de fundos de investimento liderado pelo JP Morgan comprou a Southern Water, empresa de abastecimento de água que contava com mais de quatro milhões de clientes.

Também a maior empresa britânica de recolha de lixo, a Biffa, com contratos com 36 municípios, foi comprada pelas firmas de investimentos americanas Angelo Gordon, Avenue Capital e Sankaty Advisors.

Em 2013, o governo britânico vendeu a empresa estatal Plasma Resources UK, a companhia que fornecia sangue ao Serviço Nacional de Saúde, à Bain Capital, firma que pertencia ao candidato presidencial americano Mitt Romney.

Ainda em 2013, o governo britânico fez um contrato no valor de £1,6 milhares de milhões com a firma americana Bristow, para a realização de operações de busca e salvamento que, há mais de cinquenta anos vinham sendo feitas pela RAF e pela Royal Navy.

Atualmente, os nomes e marcas britânicas mais famosos presentes na High Street são propriedade de empresas americanas.

Como foi o caso da Boots, empresa farmacêutica fundada em Nottingham em 1849, comprada pela gigante farmacêutica americana Walgreens. Depois, em 2014, a Goldman Sachs, acionista da Walgreens, pretendeu a relocalização da companhia para a Suiça, a fim de pagar menos impostos. “Deus salve a Rainha”.

 

Que muitas destas grandes empresas, perante o impasse, a demora previsível, e a resistência encontrada por parte da UE aos projetos de liberalização para o qual ainda não se encontrava preparada, tenham optado por prosseguir o seu caminho com a Grã-Bretanha, com a qual se identificava perfeitamente sem quaisquer problemas de maior, incentivando e apoiando assim uma saída da UE, não me parece que seja apenas uma mera hipótese, mas sim um plano perfeitamente coerente. Para quê perder mais tempo com a UE, se podemos, para já, passar bem sem ela? Foi isto que deu pernas ao Brexit.

 

De certa forma, o que o TTIP pretende, é ajustar as instituições ao que considera ser a realidade. E a realidade, consentida, é que entre as 100 maiores entidades económicas do mundo, onde se incluem também países, 69 delas são grandes empresas. As 10 maiores empresas do mundo, onde estão incluídas a Apple, a Shell e a Walmart, têm mais receitas que as receitas combinadas de 180 países do total dos 195 países soberanos existentes no mundo. Salamaleques.

 

Os governos (os seus membros e outros “facilitadores”) têm acarinhado o aumento do poder das grandes corporações, quer através de estruturas de impostos, acordos de comércio e programas de assistência e de ajuda especialmente vocacionados. Agora, são tratados como se fossem uma chafarrica qualquer e levados a tribunal. Pagamos nós, claro. Salamaleques.

 

Logo se seguirão os países. Os nacionalistas e patriotas que tanto temeram e se agitaram contra o Internacionalismo Proletário por este ir acabar com as Nações, devem ver agora com naturalidade o desaparecimento das mesmas pela mão das “invisíveis” (o tal problema da cegueira dos que não querem ver) Internacionais Capitalistas. Ironias do destino. Salamaleques.

 

 

 

 

 

 

 

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