Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Quem corre por gosto ...

Milton Friedman acreditava que quando a economia se encontrava muito distorcida, a única maneira para se alcançar o estado anterior era a de infligir deliberadamente dolorosos choques.”, Naomi Klein.
Hoje, a sociedade neoliberal não opera com ameaças mas por estímulos positivos.”
“I like it.


Como bom representante da sua época, o psiquiatra canadense Donald Ewen Cameron (1901 – 1967), acreditava que as doenças mentais eram contagiosas e que o seu contágio acabaria por se transmitir aos genes, pelo que grupos de pessoas com essas doenças deveriam ser colocadas em isolamento e estudadas como portadoras de doença social contagiosa.
O que não o impediu, ele que foi presidente da Associação Psiquiátrica do Canadá e das Associações Psiquiátricas Americana e do Mundo, de ter sido o primeiro a levar à prática o conceito inovador de “porta aberta” e de “hospital do dia”, segundo o qual os doentes estavam autorizados a deixar o instituto quando quisessem e que lhes era permitido regressarem todos os dias para receberem tratamento.


Contudo, o seu nome vai acabar por ficar ligado à participação que teve (1957 – 1964) no programa de controle da mente (MKUltra) financiado e dirigido pela CIA, e que conduziria à publicação do KUBARK, Manual de Interrogatório da Contrainformação. Conforme relatório do Supremo Tribunal dos EUA, a finalidade do MKultra era “a pesquisa e desenvolvimento de materiais químicos, biológicos e radiológicos capazes de serem empregues em operações clandestinas para controlarem o comportamento humano”. O programa era constituído por 194 subprojectos que a Agência contratava com várias universidades, fundações de pesquisa, e instituições similares. Pelo menos participaram 80 instituições e 185 investigadores privados.


Aí, num dos seus laboratórios, Donald Cameron, sem prévio conhecimento dos pacientes, administrava-lhes intensos e desproporcionados choques elétricos (30 a 40 vezes sobre a dosagem normal) e drogas experimentais, incluindo LSD, chegando ao ponto de provocar um estado comatoso permanente em alguns deles.
A finalidade era de através dos choques dados conduzir os pacientes a um estado caótico, a partir do qual poderia então vir a ser feito o “renascimento” de um cidadão modelo. Para lhes retirar a memória, submetia-os a um mês de violentos choques elétricos, ao mesmo tempo que lhes dava drogas para alterar a consciência e induzia o sono. Eram apenas acordados para comer e defecar. Para evitar que se confrontassem com a sua própria imagem, os braços dos pacientes eram envolvidos em tubos de cartão. Não havia qualquer tipo de contacto pessoal. O pessoal do hospital estava proibido de falar com os pacientes.


Naomi Klein no seu livro A Doutrina de Choque, vai apontar Cameron como o principal contribuinte, não para as pesquisas relacionadas com o controle da mente e da lavagem de cérebro, mas antes para a “criação de um sistema científico com a finalidade de extrair informações a ‘fontes resistentes’. Ou seja, de tortura.” Chama-o de “Doutor Choque”, porquanto a sua teoria para alteração do comportamento das pessoas baseava-se na aplicação de fortes eletrochoques iniciais que as fizessem entrar num estado de aniquilação dos conteúdos psíquicos, de vazio de alma, de medo, a partir do qual elas se acolheriam a qualquer coisa que lhes oferecesse um mínimo de referências, de segurança.


Ao nível da economia, Naomi Klein vai juntar-lhe o nome do economista Milton Friedman (1915 -2006), o teólogo do mercado neoliberal, para quem o estado social de choque em que se encontravam as populações após uma catástrofe (exemplo dos golpes militares no Chile e na Indonésia) oferecia uma oportunidade única para que se tentasse uma nova impregnação neoliberal da sociedade. Oportunidade que teria de ser aproveitada enquanto a sociedade ainda estivesse paralisada, traumatizada, ao ponto de se submeter voluntariamente a uma reprogramação radical. Friedman “acreditava que quando a economia se encontrava muito distorcida, a única maneira para se alcançar o estado anterior era a de infligir deliberadamente dolorosos choques.


Não está aqui em causa se essas políticas económicas neoliberais preconizadas contribuem para o aumento das disparidades e das desigualdades, ou se elas são apenas uma capa ideológica para a acumulação de capital pelas corporações multinacionais.
O importante é apercebermo-nos de que estas terapias baseadas no choque e apontadas por Naomi Klein como sendo características do neoliberalismo, correspondem eminentemente a técnicas disciplinarias, e que como tal, já não servem para definir a atual sociedade neoliberal.

Hoje, a sociedade neoliberal não opera com ameaças mas por estímulos positivos. O que se pretende é que o fluxo de dados se faça o mais rapidamente possível, aumentando assim a quantidade recebida (big Data), pelo que quaisquer ações que levem à sua interrupção ou atraso são encaradas como negativas.
A positividade desejada é contrária a tudo aquilo que se oponha ao fluir dos dados: ameaças, ‘abanões’, ‘acidentes’, ou ‘choques’, constituem entraves a esse fluxo.

Para que tudo (o fluxo de dados) corra bem, há que lisonjear, há que seduzir. Se se conseguir ‘adivinhar’ os anseios, as necessidades e desejos, em vez de os desincentivar, adiantando-se a eles, melhor ainda. Em vez de submeter, procurar envolver, cativar, agradar. É a política tranquilizante e libertária do “Eu gosto”, “I like it”, apesar de ser essa a única alternativa que aparece no programa.


Esta é a nova psicopolítica neoliberal inteligente, em que todos corremos por gosto e pelo gosto de virmos a ser empreendedores e artistas, evidentemente de sucesso ou com fortes possibilidades de, ou até mesmo sem possibilidades nenhumas. Preciso é correr por gosto, não importa de quem nem porquê. Deixar correr e não levantar obstáculos. “I like it”.

 

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2025
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2024
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2023
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2022
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2021
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2020
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2019
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2018
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2017
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2016
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2015
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub