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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Que fazer com as pontas soltas?

 

 “Quem diz a verdade acaba, mais cedo ou mais tarde, por ser apanhado”, Oscar Wilde.

 

“Quando o poder considera útil dizer a verdade, é porque não encontra mentira melhor”, J. P. Sartre.

 

Há que deixar de sonhar com o poder.

 

 

            De vez em quando, sinto necessidade de atar algumas pontas soltas, o que, de certa maneira, me diverte. É o prazer da racionalidade herdada, ensinada, praticada, a sobrepor-se ao prazer da descoberta, à viagem sem destino, ao gozo do maravilhar pela ausência de controlo. Sabendo, intuindo que quanto maior for o número de pontas soltas, maior será a aventura.

 Só que aquilo que outros chamam de vida, de palavra, de escrita, me obriga, para não ficar muito fora do mundo dos outros, a, de vez em quando, dar nós.

 Aprendi, contudo, a ter o cuidado de ao dar nós, deixar que eles fiquem suficientemente laços para que possam, quando entenderem necessário, eles e eu, originar novas pontas soltas. O contrário seria a prisão a uma finalidade a que a racionalidade nos tenta conduzir, em que por vezes me deixo enredar com o gozo antecipado de a saber mera construção humana com um certo interesse, não mais.

           

            Ao longo da vida, vamos sendo chamados a intervir ou a participar na sociedade, ora de uma forma, ora de outra forma. As escolhas que formos fazendo ou não, as posições que formos assumindo ou não, podem ser agrupadas em três conjuntos: ou as que alinham com as intervenções locais e o estado das coisas estabelecido; ou as que visam a preparação para uma possível insurreição revolucionária total; ou as que nos convidam para nada fazer.

 

Comprometimento com o estado das coisas estabelecido:

 

Há uma cena no filme 1900 de Bernardo Bertoluci, em que um grande latifundiário explicava aos camponeses pobres que trabalhavam nas suas terras e que estavam em greve, que teria de lhes reduzir para metade o ordenado, uma vez que devido às más condições meteorológicas, as colheitas tinham ficado arruinadas.

Seguiu-se um silêncio prolongado. Exasperado por essa resistência muda insensível aos seus argumentos “racionais”, o grande proprietário grita para um deles:

 “Será que as tuas grandes orelhas não chegam para me ouvires?

 

 O camponês a quem estas palavras foram dirigidas, tira uma faca da cintura, e de um só golpe, corta a orelha esquerda, oferecendo-a ao proprietário, que, aterrado, foge em pânico.

O significado desta amputação autoinfligida era fazer ver ao patrão que não só não o queria ouvir como ficava surdo para os seus argumentos. Cortava assim radicalmente qualquer possibilidade de comunicação, libertando-se do sistema a que estava subjugado. Com esse gesto, ele passava a ser o sujeito do seu próprio ser. Libertava-se. Não havia mais regresso ao estado anterior.

 

Esta constitui a primeira ponta solta que desde o princípio anda para ser atada: a do ser humano que teima em ser humano.

Se não a atarmos, caímos naquela opção que é a de alinharmos com o comprometimento para com o estado das coisas estabelecido, quase sempre embalados pelas músicas, versos, espetáculos, programas, bem ao tipo do saudoso hino da Mocidade Portuguesa “lá vamos cantando e rindo, levados, levados sim” ou outros semelhantes e mais à moda, menos ingénuos, mas mais sofisticados.

Pelo que quando andarem por essas estradas e campos fora, quando forem a ajuntamentos e às manifestações, verifiquem, por favor, se as pessoas que lá estão têm as duas orelhas. Se todas tiverem, pode dar-se o caso da definição de ser humano estar errada, pelo que o nó ficará sem efeito.

 

Preparação para uma insurreição revolucionária total:

 

Há um ditado popular que diz que “de boas intenções está o inferno cheio”. É uma forma de nos chamar a atenção para a interdependência que existe entre o particular e o universal, que deve ser sempre levada em conta, não podendo ser abordada com ligeireza.

Na prática, é lembrar que há sempre a possibilidade de, ao atuarmos sobre um problema particular, se poder vir a desencadear uma transformação global. O tal problema do bater de asas da borboleta.

Um exemplo ‘clássico’ disto é o que se verificou com o relatório “secreto” que Khruschev apresentou em 1956 ao XX Congresso do PCUS. Com a sua acusação sobre os crimes cometidos por Stalin, Khruschev pretendia demonstrar que eles tinham sido apenas da responsabilidade individual de Stalin, e que uma vez denunciados e eliminados, o sistema voltaria de novo a funcionar bem.

O que aconteceu é que esta denúncia desencadeou um processo que acabou por vir a fazer cair o sistema soviético. A nível individual, Khruschev é deposto em 1964, vindo a dar razão à declaração de J. P. Sartre:

  

Quando o poder considera útil dizer a verdade, é porque não encontra mentira melhor.

 

O mesmo se passou com Gorbatchev que não pretendendo mais do que reformar o sistema para o tornar mais forte, sobrestimou a dose de abertura que o sistema poderia absorver, levando à sua desintegração.

 Como ironicamente já anteriormente notara Oscar Wilde:

 

Quem diz a verdade, mais cedo ou mais tarde, acaba por ser apanhado”.

 

Ou seja, mesmo em casos de situações de crise radical em que, aparentemente, a transformação das estruturas fundamentais da sociedade possa parecer ser a única solução para resolver os problemas, devemos ponderar se esses problemas particulares não poderão ser resolvidos por medidas mais práticas e aplicáveis, ou até se o melhor não será mesmo nada fazer se isso contribuir para evitar a reprodução da ordem existente. Esta é a segunda ponta solta, sempre à espera de ser atada.

 

A política do preferir nada fazer:

 

O poder não é qualquer coisa que exista por aí ao alcance de quem o quiser tomar, e que, se ninguém o quiser, continuará por aí, mesmo que o ignoremos. Mas isto não significa que o poder, só pelo simples facto de ser poder, seja por si poderoso. O poder só subsiste se os súbditos dele fizerem parte, se nele participarem. Ele apenas nos parece poderoso porque o tratamos como tal.

‘Poder’ é a subordinação de muitos a um. Implica, portanto, uma submissão por parte do povo, submissão essa não originada apenas pela utilização da coerção física, ou pela sua ameaça, mas ainda pela mistificação ideológica.

 Essa submissão verifica-se acima de tudo “porque há um investimento libidinal no poder”. Nessa submissão há como que uma forte ligação irracional ou uma solidariedade secreta, que se verifica entre os governantes e o povo.

 É como se o poder produzisse uma forma de gozo inebriante, uma dopagem, que afetasse tanto os que o exercem como os que lhe estão sujeitos. Ambos ‘sonham’ com ele.

 

É o que se passa com aquelas pessoas que, estando doentes ou não, só pelo simples fato de estarem numa sala de espera de um consultório médico, nos desfiam com imenso gozo, aquele sem número de doenças prováveis ou possíveis, que já tiveram ou estão para ter. E que nos recomendam médicos recomendáveis que se fizeram encomendar ou recomendar. Essas pessoas não são médicos, algumas até foram por eles maltratadas, mas gostam daquela ‘importância’ e ‘conhecimento’ que julgam que lhes confere a proximidade do poder.

Como adrenalina viciante, é assim que o ‘poder’ os suborna e os mantém sob o seu jugo. São estes mecanismos invisíveis de sujeição que regulam essa subordinação das pessoas.

 

Se os conseguirmos alterar, toda a estrutura do poder perderá a sua força de atração, dissolvendo-se. E como conseguiremos alterar essa obsessão?

 Por exemplo: reparemos que, enquanto nos desdobramos em manifestações, petições, grandes oratórias, etc., o que estamos na prática a fazer é a entregar o verdadeiro trabalho de assistência, educação, ajuda e acompanhamento, às ‘inefáveis’ Misericórdias do poder político instituído, perpetuando-o.

A recusa a essa atividade obsessiva é que irá permitir suspender todo o encantamento que se tem do poder, deixando-se de sonhar com o poder.

E, quando se deixar de sonhar com o poder, ele deixa de ter qualquer poder sobre nós.

 

É por isso que o “preferir não fazer” é, nestas condições, um ato radical, pois coloca-nos fora do jugo e jogo do poder. Esta inatividade é mais radical que a atividade. Esta não-violência é mais forte que a violência.

E esta é uma terceira ponta solta que ato mais fortemente, tendo, contudo, o cuidado de lhe deixar uma ponta mais comprida. Como convém.

 

 É que, além de tudo isto, há uma importante questão prévia que tem de ser ponderada: porque teremos de escolher?

 

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