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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Poemas da Colónia de Férias, 1971.

 “Quanto custa, afinal quanto custa uma quinhenta de amendoins do negrinho de faces tatuadas de ranhos seco?”.

 

“Zita mulata com três recrutas, mas ela ficou a Zita mulata com três filhos”.

 

“E o machimbombo amarelo e vermelho esgota-se de xipamanines de olhos até ao estribo”.

 

Agora que no mês de agosto gozamos quase todos das férias que nos foram generosamente ‘concedidas’, em que o calor aperta e nos afasta de leituras elaboradas aproximando-nos mais das notícias das TVês 24, que de tanto repetidas nos dão o conforto de um qualquer conhecimento prévio que nos aparece como inerente e “déjà vu”, lembrei-me de reproduzir, ao longo destas quatro semanas, alguns poemas que faziam parte de uns caderninhos de folhetos artesanais, “Caliban”, que circulavam num restrito meio intelectual moçambicano, em 1971. Em Lourenço Marques, evidentemente.

 

 

De José Craveirinha:

 

 

 

Zita Mulata com Três Recrutas

 

Mas ela ficou

a Zita mulata com três filhos

voluntários irrecuperáveis a vinho das cantinas

com indústria de pernas “self-service” platónico às dúzias

um por um às vezes seis maridos em hora e meia de núpcias

sorte de inguavana na percentagem dessa noite

enquanto um chofer negro dormita

inexorável ao taxímetro

lá fora.

 

 

Nossa Cidade

 

Nossa cidade

esquisita na bilharziose das compridas

noites amansadas como gatas de estimação ronronando

aos pés do dono e sobre as citadinas

coxas de pedra entreabertas no lençol como

uma mulher saciada à segunda vez.

 

E nas ilhargas

da cidade os malditos meninos

de rostos tatuados de ranho seco

todos como pássaros fisgados no cajueiro dos malefícios

todos com os olhos amarelos de gemadas longínquas de sol africano

todos em carne viva sem sulfas de um naco de pão

todos a castanha de caju mastigada nos molares antropófagos da rua.

 

Nossa cidade

cemitério de mortos antes de o serem

e deserto povoado de um José-mulato jipe de carícias

nos joelhos nus das raparigas esfomeadas

também de angústias de cio

fêmeas e machos abotoados de ociosidade

devorando-se entre um boato e os relatos de futebol

ou enclausurando o universo no automóvel a prestações

os dentes em riste de quem tange as violas

em ritmos a rebate nos pomos de alvenaria

mas quanto custa, afinal

quanto custa uma quinhenta de amendoins

do negrinho de faces tatuadas

de ranho seco?

 

 

Quistos à janela

 

Hálitos de cimento

nos parietais da cidade agachada ao sul

com felpudos gatos de sol aguçando as garras

amarelas no enjoado ventre das ruas coaguladas

de sangue escuro.

 

E na tarde

às mãos cheias de céu exausto de cais

o tédio traz o odor lá dos caniços

agatanha as nucas das loiras e o vento

malandro como um dedo

insinua-se-lhes sub-reptício no meio das coxas.

E lá os tectos de quatro chapas

em varíolas de zinco em segunda mão

capulanas desamarradas nos quadris intensos

de máquinas descalças contraindoos abdominais

no acto que faz dois pães e um

pequeno gajo para inchar as costas da mãe

enquanto nos três tijolos a chaleira

ferve.

E o machimbombo amarelo e vermelho

esgota-se de xipamanines de olhos até ao estribo

(quistos cem por cento espremidos às janelas)

e qualquer dia desde as sintonias do útero

os meninos sentirão nojo de nascer.

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