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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Pipilemos. Um Mundo de Artistas.

 “Vendem-se: sapatos de bebé, nunca usados”, atribuído a Hemingway.

Nunca emprego o pronome pessoal na primeira pessoa, nunca expresso nenhuma emoção subjetiva, tento ser mecânico. Converti-me num copista, não escrevo textos originais, copio textos que já existem”, K. Goldsmith.

A nova escritura consiste em não escrever e a nova leitura consiste em não ler.”

A missão do poeta hoje é a de não escrever poesia.”

 

Se defendêssemos acerrimamente o acordo ortográfico, qualquer que ele fosse, e se tivéssemos tido a capacidade para ‘inventar’ aquele meio de comunicação social a que muito portuguesmente chamamos de Twitter, que alegremente nos permite enviar tweets, então, para mantermos o mesmo conceito que lhe inspirou o nome, deveríamos antes chamá-lo de Passarinho, que nos permitirá pipilar até 140 carateres.

 

A ideia de comprimir a linguagem, de reduzir circunstância complexas a um só enunciado, há muito que tem vindo a ser feita: ideogramas chineses, telegramas, títulos de imprensa, slogans publicitários, poemas concretos, ícones no nosso computador. À medida que a informação se move com mais velocidade e nos defrontamos com cada vez maiores quantidades de informação, somos atraídos para fragmentos de escrita cada vez mais pequenos.

Em princípio, esta autolimitação do número de carateres, invalidaria a sua utilização para devaneios literários. Só que,  em 1906, Félix Fénéon publica, num jornal francês, ‘novelas’ comprimidas em três linhas, com base numa mistura de telegramas e de cabeçalhos de periódicos.

A moda pega. Em 1917, durante uma reunião de amigos mais ou menos etilizados, diz-se que Hemingway apostou com eles que conseguiria escrever um conto com apenas seis palavras. Pegou num guardanapo e escreveu: “For sale: baby shoes, never worn” (Vendem-se: sapatos de bebé, nunca usados). Aposta ganha.

Só que a história sobre Hemingway nunca aconteceu. Insere-se no campo da lenda literária. Como quase tudo na vida, a autoria pertence a outro, desconhecido. Mas era plausível, pois Hemingway já mostrara a sua capacidade de síntese em textos como “A Banal Story” com 634 palavras, e “The Revolutionist” com 500 palavras.

Esta mania ‘do conto mais breve do mundo’ passou a inscrever-se na tradição da microficção americana, tendo como expoente Frederic Brown: “The last man on Earth sat in a room. There was a knock on the door” (O último homem sobre a Terra está sozinho sentado num quarto. Eis que batem à porta).

Ainda em 2006 a revista Wired promoveu um concurso entre uns trinta escritores americanos, pedindo-lhes para escreverem um conto com apenas as tais seis palavras. As respostas não se fizeram esperar: Steven Meretzky conta que “Confundido, leu o seu próprio obituário”; Bruce Sterling escreveu que “Era muito caro continuar sendo humano”; Bem Bova, “Para salvar o mundo, voltou a morrer” e Margaret Atwood, “Acharam cadáver incompleto. Médico compra iate”.

Seja como for, esta deriva insere-se ainda naquilo que se entende ser um conto, não só porque conta histórias, como por ser “um relato que encerra sempre um relato secreto”.

 

Uma outra faceta foi a que surgiu com John Barton Wolgamot quando em 1929 publica o livro Em Sara, Mencken, Cristo e Beethoven Havia Homens e Mulheres, quase todo ele só com títulos e nomes. Um pequeno exemplo:

Nas suas melodias realmente grandiosas Johannes Brahms, Sara Powell Haardt tinha chegado mui heroicamente e alegoricamente entre os seus realmente grandiosos homens e mulheres a Clarence Day Jr., John Donne, Ruggero Leoncavallo, James Owen Hannay, Gustav Frensen, Thomas Beer, Joris-Karl Huysmans e Franz Peter Schubert muito titanicamente.”

Walgamot disse que, embora tivesse passado dois anos a inventar nomes para o livro, levara muito mais tempo, dez anos, para conseguir estabelecer as ligações entre eles.

Também Gertrude Stein tentou em 1934 esta via da proliferação de nomes no seu livro Ser norte-americanos, explicando-nos que: “Os nomes podem-se repetir de distintas formas […] mas agora e sempre a poesia cria-se ao nomear nomes como os nomes de algo os nomes de alguém os nomes do que quer que seja […] Pensa no que fazes quando fazes isso quando amas o nome do que quer que seja realmente amas o seu nome.”

 

O facto é que os nomes, quando impressos, tornam-se tão atrativos que, apenas pela sua simples enunciação, mesmo que não se diga nada sobre eles, a sua acumulação leva os leitores a folhearem várias páginas em busca de algo que lá não está. “A situação chega ao extremo de que ver uma página de um periódico ou revista que não tenha uma certa quantidade de nomes, de preferência famosos, torna-se dececionante. Em resumo, os nomes famosos são as cartas altas do periodismo.”

 

O próximo passo vai ser dado por David Markson (1927 – 2010) ao conjugar nas suas novelas uma prosa muito compacta com milhares de fragmentos da história da arte, compondo uma narrativa fragmentada, e que normalmente não ocupava mais de uma ou duas linhas. Um precursor do Passarinho.

JamDelmore Schwartz morreu de um ataque de coração num sórdido hotel de Times Square. Só ao fim de três dias é que apareceu alguém para reclamar o corpo.

James Baldwin era antissemita.

 

Mas são dois escritores canadianos, Darren Wershler e Bill Kennedy, que ao juntarem esta forma de escritura comprimida com nomes próprios a buscadores da Internet vão abrir as portas do futuro da literatura. Através da criação de um programa de extração de dados, rastreiam sítios web das redes sociais, acedendo também a todas as atualizações sobre o usuário, incluindo evidentemente o seu nome, nome que será depois retirado e substituído de maneira aleatória pelo nome de um qualquer escritor falecido. O resultado:

Shel Silverstein vai jogar um pouco de Tomb Raider antes de ir trabalhar. Jonathan Swift tem bilhetes para o jogo de hoje à noite. Arthur Rimbaud também conseguiu por fim empregar a palavra ‘arcobotante’”.

O programa produz sem parar um poema que aparece na nossa página web cada dois minutos. Pode-se fazer clique em todos os nomes próprios da página, que nos conduzem para um arquivo com todas as atualizações do estado desse autor (não esquecer que o autor não é o autor, mas apenas o substituto do usuário cujo nome foi retirado).

Em 2001, Wershler e Bill criam um sítio web com o nome de Apostrophe Engine (www.apostropheengine.ca), que na sua página inicial apresenta um poema chamado “apostrofe” escrito por Bill em 1993, onde cada linha começa com “You are” (Tu és). Fazendo um clique em qualquer linha, cria-se um poema. E avisam “Por favor, sê paciente. Os nossos robots estão a trabalhar o mais rapidamente possível. Se estiveres perdido, confuso ou desapontado com o teu poema ou desejes voltar para o Kansas, faz clique para voltares ao início”.

Carregando na linha, entra em ação um buscador de Internet, que vai produzir uma série de páginas web. Depois, cinco robots virtuais revêm a lista, colecionando frases que começam com “tu és” e que terminam com um ponto. Depois de terem recolhido um certo número de frases ou de terem revisto um certo número de páginas, os robots param. De seguida, a Apostrophe Engine regista e edita as frases recolhidas, compila os resultados e apresenta-os como um poema, com a linha original como título e em que cada nova linha é uma hiperligação.

Assim, a qualquer momento, a versão do poema é potencialmente tão grande como a Internet, e como o conteúdo da Internet está constantemente a mudar, também o conteúdo do poema vai mudando. Obtém-se assim o que chamam de ‘poema vivo’, que se rescreve conforme se atualiza a Internet, e que continua a crescer mesmo que ninguém o leia.

Posteriormente, Wershler e Bill reaproveitaram a abundância de material fornecido pela Apostrophe Engine e resolveram fazer uma publicação. Para isso, viram-se forçados a expurgar a versão on line de muitos dos sinais e ruídos desnecessários, normalizado o espaço, retirando os números e as linhas mortas. Por exemplo, quando se fazia clique na linha que dizia “you are so beautiful to me” (canção de Joe Cocker) aparecia na versão on line:

 

You are so beautiful (to me) hello, you either have javascript turned off or na old version of adobe’s flash player* you are so beutiful to me 306,638 views txml added1:43 kathie lee is a creep 6288.573 views everythingisterrible added2:39 you are so beatiful 1.441.432 views caiyixian added0:37 reptile eyes* you are so beautiful (to me) 0* yyou are so beautiful 79.971….

 

Na versão impressa:

 

Tu és tão bela*tu és tão bela*tu és tão bela*tu és tão bela artista: Babyface*tu és tão bela*tu és tão bela, sim és para mim tão bela és para mim, não vês? *tu és tão bela as letras são propriedade dos seus autores*tu és tão bela*tu és tão bela*tu és tão bela artista: Ray Charles* tu és tão bela*tu és tao bela*tu és tão bela….

 

Eis o que Kenneth Goldsmith, escritor, Poeta Laureado do MoMA, criador da plataforma UbuWeb, diz:

A versão impressa é uma maravilha de ler, cheia de ritmos dispares e musicalidade repetitiva […] Inclui uma disposição cuidadosa de diferentes tipos de conteúdo como a advertência dos direitos de autor, que aparece repentinamente quando estamos já a sentir-nos enfadados pela repetição das frases. Os nomes próprios a negro escuro reforçado – Babyface e Ray Charles -, precedidos da frase – ‘tu és tão bela artista’- estão suficientemente afastados para não interferirem entre si, o que produz um texto perfeitamente equilibrado.”

 

Mais do que ‘pôr’ um computador a escrever poesia (o que já fora feito), a ideia é fazer com que os escritores usem os buscadores da Internet para acederem às redes sociais e demais linguagens que lhes irão servir de fontes de texto, passando a utilizarem esta linguagem gerada pela Internet, quer na sua forma aleatória quer na sua forma mais elaborada, misturada e reprogramada, para criarem obras novas e originais.

Goldsmith vem tranquilizar-nos, fazendo notar que:

A colagem e o pastiche sempre existiram na literatura. Podia-se aproveitar uma frase ou um verso e compor outra coisa, mas agora com um par de toques no teclado pode-se copiar não já um livro inteiro, mas as obras completas de Shakespeare, que de repente se convertem em tua propriedade”.

A escritura não deve ser criativa. Jamais emprego o pronome pessoal na primeira pessoa, nunca expresso uma opinião subjetiva, tento ser mecânico. Converti-me num copista, não escrevo textos originais, copio textos que já existem.

Donde, logicamente, vai concluir que:

A nova escritura consiste em não escrever e a nova leitura consiste em não ler.

Goldsmith, que se intitula como “poeta contemporâneo”, explica-nos que “a poesia é um espaço morto de que temos de nos apoderar, sendo a rede o lugar onde há mais possibilidades para isso se verificar. Na realidade, sendo rigorosos, a missão do poeta hoje é a de não escrever poesia”.

 

De tudo isto uma coisa parece ser certa: continuem a pipilar, pipilem furiosamente no Passarinho garantindo com isso a possibilidade de virem a figurar como artistas anónimos na próxima Bíblia (não a de Gutenberg) da Google em atualização permanente, distribuída pela Amazon, alegremente comprada, obrigatoriamente imposta em todas as nações verdadeiramente livres (e há outras?).Por fim, um mundo de artistas.

 

Corolário 1: Não percam tempo a pensar, vão à Internet.

Corolário 2: Ficam assim, com mais tempo para não pensarem.

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