Pintar a ternura
“Em geral, as coisas visíveis não desaparecem na obscuridade e no silêncio; desvanecem-se antes no mais visível”, Baudrillard.
“Vivo daquilo que os outros não sabem de mim”, Peter Handke.
Quando entrei, reparei que atrás da porta, encostado à parede estava um quadro, possivelmente para vir a ser colocado em lugar de destaque. Quando me sentei fi-lo propositadamente de forma a ter o quadro à minha frente, porquanto algo nele me chamou a atenção.
Ao longo da semana fui meditando e elaborando sobre o porquê dessa atenção. Um crítico de arte pronunciar-se-ia sobre a técnica, o estilo, influências. Como crítico da arte interessa-me muito mais o mundo e sentido contido na obra que vá para além da capacidade técnica de construção. Interessa-me muito mais tornar compreensível a mensagem escondida, tendo sempre presente que na leitura de uma obra, é o mundo da obra que se lê que terá de ser interpretado e não o autor que se encontra por trás dela, nem a intenção que o levou à feitura da obra.
Vejamos:
Quando a obra opta por um velamento que toda a percorre com a utilização de cores não luminosas, está implicitamente a retirá-la do contexto atual do valor de exposição. A expressão fugaz de um rosto humano transmite esse valor de resistência à uniformização imposta pelas regras atuais, introduzindo-o como um valor de culto: a melancolia do ser humano presente. E detém-se exatamente no ponto em que a sua interioridade poderia vir a ser comprometida pelo olhar do outro. Estamos perante uma ternura para consigo através do olhar do outro, o que é muito interessante. Há como que uma vergonha e distanciamento próprios, mais um indício de resistência aos valores de exposição.
Estamos perante uma obra que quase parece ter sido concebida como um manifesto anti exposição, obra eminentemente intimista e como tal deverá ser tratada. A sua colocação num espaço de recolhimento em que não aparecesse como estando exposta seria aconselhável.
Teorizemos:
Na sociedade atual as coisas não têm valor só por existirem. Elas só têm valor quando são vistas. Para serem vistas têm de ser expostas, logo convertidas em mercadorias. E contudo, é muito mais importante as coisas existirem do que serem vistas. Só assim se explica que muitas das imagens religiosas permaneçam veladas quase todo o ano, saindo raras vezes para exposição ao público. Ou seja, o valor de culto depende da sua existência e não da sua exposição.
Na sociedade atual o valor de culto desaparece em favor do valor de exposição. Na exposição tudo está voltado para fora, descoberto, despojado, exposto. Trata-se de uma mercadoria que se entrega, sem segredo, pronta a ser consumida de imediato. A exposição entrega tudo à visibilidade, renunciando a toda a peculiaridade das coisas. E as coisas, como notou Baudrillard, não desaparecem pela obscuridade, mas pelo excesso de iluminação.
Mas a exposição vai ainda obrigar a uma valorização do exterior e do visível. Daí ela depender do aspeto do belo, em que a beleza não aparecerá como junção entre o encobrimento e o encoberto (os modelos atuais não transmitem valor interior, mas apenas medidas exteriores!), aparecendo antes com o fim de maximizar o valor de exposição. E como o invisível não tem qualquer valor de exposição, explora-se o visível, através da superfície brilhante. Se o quadro for brilhante, nada mais se pergunta, pois não tem nenhuma estrutura de compreensão profunda.
O juízo de gosto não contém atualmente qualquer reflexão estética, sendo esta substituída pelo simples “gosto/não gosto” de uma contemplação apressada, em virtude também das imagens inundadas de valor de exposição não mostrarem qualquer complexidade. É que a complexidade torna mais lenta a comunicação (se se tiver de fazer a comunicação do sentido, tudo seria muito mais lento), daí que tenha de ser reduzida, para que a chamada hipercomunicação tenha lugar. Mesmo que essa hipercomunicação seja vazia de sentido.
Para que tudo seja mais fácil e rápido de comunicar, de acelerar, é necessário que tudo seja igual, não criando assim resistências que possam perturbar e atrasar a comunicação. Tudo deve ser imediato de forma a tornar-se maquinal (um mundo onde só circulem informações que nada o perturbem e que de preferência não excedam os 140 caratéres), operacional, não dando lugar a qualquer ambivalência. As imagens devem aparecer libertas de toda a profundidade hermenêutica, de todo o sentido, para que se estabeleça um contato imediato entre a imagem e o olho (há quem chame a este imediatismo de pornografia).
Só que um mundo assim, todo ele convertido num espaço de exposição, será impossível de habitar. Se habitar significar estar satisfeito, estar em paz, a permanente coação introduzida pela exposição, pela visibilidade permanente, não o permite. Vai impedir-lhe o acesso ao oculto, ao inacessível, ao misterioso. A alma humana necessita de ter locais em que possa estar em si mesma sem o olhar do outro.
Por isso mesmo se torna também impossível (e até indesejável) o conhecimento do outro em absoluto. Não para o afastar, mas para permitir o aparecimento de algo que o mundo da exposição não consegue transmitir, nem eliminar por completo: a ternura. A ternura é o respeito pelo outro que limita o direito a perguntar em virtude do direito do segredo. É aquele pressentimento que se tem do outro em que, para além do último revelado exista ainda um último não revelado, mas que se não toca, que se venera, como local de recolhimento do outro.