Pai Natal com maiúsculas
A ‘nossa cultura’ é o nome que damos a todas as coisas que fazemos sem acreditar verdadeiramente nelas, sem as levarmos realmente ‘a sério’. Por isso, a nossa cultura não é fundamentalista.
“Eu sei o que estou a fazer, mas, não obstante continuo a fazê-lo…”, Peter Sloterdijk.
“… porque não sei em que creio”, S. Zizek.
É este não querer ver, que origina a verdadeira destruição do “património cultural” da humanidade: o homem.
É com o Iluminismo, que a religião ligada à imposição de dogmas, rituais e regras, que eram aceites por serem prescritos por uma autoridade terrestre e, ou, por uma autoridade divina (como foi o caso do Judaísmo e do Cristianismo), vai ser submetida a uma crítica racional que acabará por levar à rejeição de rituais e dogmas, nomeadamente os da existência da alma como substância peculiar, como se tratasse de um ser espiritual, mas real.
A Razão não entende que a alma tenha uma atividade própria não determinada pelas condições materiais, e que pudesse continuar a existir após a morte do corpo, ou mesmo que o ser humano fosse considerado como uma dupla unidade constituída por alma e corpo.
Era o que de outra forma dizia Kant: apenas conhecemos os fenómenos, a aparência, e mesmo assim só através das categorias do nosso pensamento. Tudo o que fique fora disto, não se pode conhecer, o que faz com que a Metafísica não possa ter lugar no nosso sistema de conhecimento.
O que vai levar ao aparecimento na sociedade, de duas tendências opostas: uma, apoiada no moralismo universalista kantiano, e outra, apoiada num sentimento puramente interior, numa “espiritualidade profunda”.
A primeira destas duas tendências vai conduzir à tentativa de substituir a religião pela ciência, e a segunda vai conduzir à tentativa do ressurgimento da religião como abertura à alteridade que nos permitirá acolher uma dimensão desconhecida.
Só que a ciência foi-se fechando num pequeno círculo de iluminados, com conceitos e linguagem muito próprios, nunca conseguindo capturar a imaginação das massas, não tendo assim podido substituir-se à religião. Por outro lado, a própria religião também já não conseguia desempenhar essa função de ligação social que fora sua, porque tinha perdido esse seu poder anteriormente detido, de influenciar não só os cientistas e filósofos, como ainda o círculo mais vasto das pessoas comuns.
Foi com a modernidade que se começou a verificar esta perca de poder por parte da religião. Antes, a religião integrava completamente a ordem social e a vida cultural da sociedade, o que implicava que numa comunidade só pudesse existir uma religião.
Lembremos a Paz de Ausburgo de 1555 que, para ‘acabar’ com as guerras religiosas, decidiu que a religião de cada região seria a que o príncipe dessa região tivesse (princípio que ainda agora é seguido por muitos sistemas eleitorais), obrigando à conversão dos súbditos ou à sua mudança para outra região.
Mas é, curiosamente, esta perca de poder hegemónico da religião, que lhe vai permitir sobreviver. Ao infiltrar-se em culturas diferentes, vai fazer com que em todos os países do mundo, se vejam hoje cristãos, muçulmanos, budistas e outros.
Só que esta ‘globalização’ teve um preço: a religião deixou de comandar o funcionamento da totalidade social, deixou de ser hegemónica, remetendo-se para uma função terapêutica ou crítica, ajudando as pessoas a integrarem-se cada vez melhor na ordem existente, ou erigindo-se numa posição crítica apontando o que está errado nessa ordem, o que a faz aparecer como se fosse uma heresia.
Por tudo isto, na nossa sociedade atual, já não se crê verdadeiramente. Limitamo-nos a seguir alguns dos rituais e dos costumes religiosos de acordo com o estilo de vida da comunidade a que pertencemos.
Fazemo-lo, não porque acreditamos, mas porque tal faz parte da “nossa cultura”. Mesmo não acreditando no Pai Natal, em todas as nossas casas existe um pinheiro no mês de dezembro, e escrevemos pai natal com maiúsculas.
“A ‘nossa cultura’ é o nome que damos a todas as coisas que fazemos sem acreditar verdadeiramente nelas, sem as levarmos realmente ‘a sério’”. Por isso, a nossa cultura não é fundamentalista.
Exatamente por isto é que não conseguimos entender os crentes fundamentalistas, que achamos estranhos por acreditarem verdadeiramente, por “levarem a sério as suas crenças”.
São “bárbaros” e inimigos da cultura, por não terem qualquer distanciação relativamente à sua própria cultura.
Apesar de não acreditarmos na divindade de Buda, ficamos indignados por os talibãs terem destruído as antigas estátuas de Buda em Bamyan, por o EI ter destruído as estátuas do império assírio e o que se lhe seguirá, vendo nisso uma total falta de respeito pelo “património cultural” do deu próprio país e da humanidade.
O problema é que eles estão completamente imersos na crença da sua religião, não tendo por isso sensibilidade para o valor cultural dos monumentos de outras religiões: para eles, as estátuas de Buda, as do império assírio e outras, não passam de falsos ídolos, não são “tesouros culturais”.
Há, contudo, várias vantagens que a nossa sociedade tem em não ser fundamentalista. Fica, desde logo, afastada a hipótese de uma guerra religiosa. Já não acreditamos o suficiente para que ela seja possível. Já não morremos em nome dela.
Por outro lado, devido ao nosso estado de descrença generalizada, a memória tende a diluir-se por não ser necessária. O que é bom para enfrentar os tempos em que vivemos.
Mas, antes que seja tarde e a memória se dilua e sem, portanto, querer recuar muito, só nas duas Grandes Guerras porque passámos, a destruição de “tesouros culturais”, de monumentos, edifícios, catedrais, de cidades inteiras habitadas, foi enorme, sem paralelo na história da humanidade. E, convém lembrar, já então não eramos fundamentalistas: americanos, ingleses, alemães, russos, franceses, italianos e outros, faziam todos parte desta mesma cultura.
Não sermos fundamentalistas sob o ponto de vista cultural, religioso, tem também a vantagem de não querermos ver (a imagem fica obscurecida, difusa) o fundamentalismo económico que nos permite ser assim.
Enquanto nos entretemos com as estátuas de Buda, dos maus dos nazis, dos maus dos comunistas, dos maus dos islamitas, dos degenerados negros e mexicanos, do Hitler, do Churchill, do Putin, etc., nunca falamos sobre a economia das Guerras, quem com elas beneficia, para onde vai o dinheiro, como vai, em que mãos fica.
É este não querer ver, que origina a verdadeira destruição do “património cultural” da humanidade: o homem.
Mas não há guerra. Pelo menos para nós. É o que nos permite sobreviver: vivemos morrendo aos poucos, ou morremos sem estar vivos.