Os Últimos dos Homens
44,2% das mulheres e 42% dos homens japoneses e solteiros menores de 34 anos são virgens, segundo o censo de 2010 do National Institute of Population and Social Secutrity Research do Japão.
“O sexo é simultaneamente a condição de possibilidade e de impossibilidade do amor”, Derrida.
“Um pouco de veneno de vez em quando provoca sonhos felizes”, Nietzche.
Em 2006, a novelista inglesa nascida em 1920, P. D. James, escreve Children of Men, uma notável distopia passada em 2021 na Inglaterra, onde há 25 anos não nascia nenhuma criança, pelo que a humanidade se encontrava em perigo de extinção. A espécie humana tornara-se infértil. O mais jovem habitante da terra, nascido há dezoito anos, acabara de ser morto em Buenos Aires.
O realizador Alfonso Cuarón, tendo como base o livro de P. D. James, faz um filme com o mesmo título, onde apresenta uma sociedade permissiva e hedonista de um regime despótico, que utiliza novas formas de apartheid como método de controlo da população, num estado de emergência permanente, com forças policiais antiterroristas em perseguições continuas, intensivas e repressivas, de imigrantes ilegais.
O próprio Cuarón explica-nos o que procurara transmitir:
“Muitas das descrições do futuro fazem intervir qualquer coisa do tipo Big Brother, mas penso que isso corresponde a uma noção de tirania própria do século XX. A tirania que hoje ocorre assume novos disfarces, a tirania do século XXI é a chamada ‘democracia’”.
Contrariamente aos governantes imaginados por G. Orwell na novela 1984, que não passavam de meros burocratas de uniformes cinzentos, neste filme de Cuarón, os governantes e administradores aparecerem sempre impecavelmente vestidos, muito bem informados e esclarecidos.
Quando Theo Faren (o ator principal) vai falar com o seu primo, funcionário governamental de topo, para ver se conseguia uma autorização especial para um refugiado (uma mulher grávida), a conversa passa-se num apartamento de luxo, tipo loft, num andar alto de um arranha-céus. O primo recebe-o informalmente junto ao companheiro com quem vivia.
Essa autorização especial permitiria a passagem através dos vários postos policiais para Bexhill on Sea, uma espécie de território libertado, onde ainda se não fazia sentir a opressão do regime.
Tratava-se de um local isolado por uma muralha, governado pelos seus habitantes, todos imigrantes ilegais. Um campo de refugiados onde acontecem atos de verdadeira solidariedade humana a par de manifestações guerreiras de fundamentalistas religiosos. Único local possível para um recém-nascido.
No final do filme, Bexhill on Sea é totalmente destruída pelas bombas da aviação. Para os que gostam de finais felizes, a recém-nascida é salva, colocada num barco que parte, não se sabe para que destino. Provavelmente será mais tarde salva das águas, chamar-lhe-ão de Moisés 2, e tudo recomeçará. Aleluia.
Não sendo um filme sobre a infertilidade a nível biológico, levanta, contudo, alguns problemas interessantes (evidentemente não focados no filme até pela própria limitação do meio que é o ser um filme).
A mercantilização do sexo e o narcisismo são dois desses problemas que se têm vindo a impor ao nível das relações sociais, e que podem vir a conduzir à esterilidade do universo.
O National Institute of Population and Social Secutrity Research do Japão, revelou que 44,2% das mulheres e 42% dos homens japoneses e solteiros menores de 34 anos são virgens, numa proporção que tem vindo a aumentar desde o censo de 2010. O mesmo se passa em Silicon Valley, onde os cérebros tecnológicos, para não perderem tempo, comem comida em pó idêntica à dos astronautas e de sexo estamos conversados.
Segundo cálculos dos investigadores da Universidade de Tihoku, com base no desenho de um algoritmo matemático e nos dados da população e fertilidade, a 16 de gosto de 3766 apenas haverá uma pessoa a habitar o Japão.
Sendo, contudo, o sexo uma necessidade absoluta, se renunciarmos a ele, definhamos, daí que o amor não possa aparecer sem sexo; por outro lado, o amor torna-se impossível exatamente por causa do sexo que o mercantiliza e transforma em objeto de dominação.
O que leva Derrida a dizer que
“o sexo é simultaneamente a condição de possibilidade e de impossibilidade do amor”.
É como se vivêssemos numa sociedade cuja identidade se baseia numa especulação dos contrários, em que o mais importante é sempre, alternativamente ou concomitantemente, as faces da mesma moeda, menosprezando ou esquecendo a moeda em que as faces são cunhadas.
Já há mais de cem anos, Friedrich Nietzsche, abordara este tema quando considerou que a Civilização Ocidental caminhava em direção ao último dos homens (no Assim Falava Zaratustra), um ser apático, sem grandes paixões nem grandes lealdades, incapaz de sonhar, cansado da vida, não assumindo riscos.
Procurava apenas conforto e segurança, com enorme tolerância para com tudo e para com todos:
“Um pouco de veneno de vez em quando provoca sonhos felizes”.
Durante o dia tem os seus prazeres pequenos, e os seus pequenos prazeres para a noite. Tem cuidado com a saúde. E chegada a altura de morrer, para ter uma morte agradável, muito veneno no fim.
“Descobrimos a felicidade, dizem os últimos dos homens, e piscam os olhos”.
As consequências estão agora á vista: nós, no Ocidente, transformámo-nos nos Últimos dos Homens, somente interessados numa vida longa e satisfatória, preenchida pela abundância, e mergulhados em estúpidos prazeres quotidianos, quando comparados com os habitantes do Terceiro Mundo capazes de se dedicarem a uma causa transcendente ou mesmo, como os muçulmanos radicais, dispostos a tudo arriscar numa guerra niilista levada ao extremo da autodestruição.
Qual o habitante do Primeiro Mundo que está disposto a sacrificar a vida por uma causa pública ou universal?
Por outro lado, assistimos cada vez mais ao reagrupamento dos Últimos dos Homens em luxuosos condomínios residenciais fechados, a que as boas e velhas Classes Médias não conseguem chegar. Alguém tem dúvidas sobre quem fica de fora? Alguém tem dúvidas sobre quem tenderá a desaparecer?
Excelente observador da realidade, o filósofo inglês John Gray notara já em 2002, na sua obra Straw Dogs: Thoughts on Humans and Other Animals, que:
“a classe média é um luxo que o capitalismo já não pode permitir-se".