Os nossos muros, muralhas e murinhos
“O medo fundamental é o medo de nós próprios”
“‘Mixofobia’: o medo de se misturar com outras pessoas; sensibilidade alérgica e febril a estranhos e a tudo o que lhe é estranho”.
O conceito subjacente a ‘muralha’ ou ‘muro’ é o de ser algo sólido que nos protege, mantendo os inimigos à distância. A muralha, como barreira que visa impedir a entrada de inimigos é uma prática muito arreigada na humanidade passada, que continua a ter grande expressão e entusiastas nas nossas sociedades atuais. Quando o muro de Berlim foi desmantelado existiam na altura 16 muros (border fences) instalados. Desde então, com a ‘globalização, que preconizava a abolição de barreiras, esse número cresceu para 65.
A muralha de Adriano e a muralha da China são os exemplos mais notáveis do passado. Mais perto de nós temos as fortificações ‘impenetráveis’ que constituíam a linha Maginot em França, o muro de Berlim, o muro de Israel na Cisjordânia, a Zona Verde de Bagdad, o muro entre o México e os EUA, o da Índia à volta do Bangladesh (4.000 km), as enormes bermas de areia que separam Marrocos do Sará Ocidental, o Atlântico para os EUA (até às Torres Gémeas serem atingidas), o Mediterrâneo para os europeus, as vedações-muros da Hungria com a Sérvia, do Quénia com a Somália, da Turquia com a Síria, da Arábia Saudita com o Iraque, e ainda os condomínios fechados, as cidades, os muros da indiferença e muitos outros.
Não sendo todos iguais têm contudo um fundo comum, que se manifesta onde menos esperamos encontrá-los. É o caso de um certo urbanismo.
Há poucos anos eram-nos apresentados como exemplos de vida boa e próspera, aqueles infindáveis bairros de infindáveis pequenas casas com relvados à frente e quintal atrás, sem qualquer vedação a separá-las ou a delimitá-las, em que as portas das casas e dos carros não eram fechadas, e onde os vizinhos se encontravam nas suas lides diárias. Chamavam-se apropriadamente ‘comunidades de vizinhança’.
Hoje, tudo isso desapareceu, sendo substituídos pelo novo ideal que são ‘os condomínios’. São anunciados e vendidos como ‘uma nova forma de viver’, alternativa à deterioração verificada nas cidades e nos seus espaços públicos, e onde são garantidas a separação relativamente às classes consideradas socialmente inferiores, em que a segurança é feita através de vedações e muros altos que circundam todo o condomínio, com controlo de entradas efetivo vinte e quatro horas por dia efetuado por guardas, e demais sistemas de segurança. Na realidade eles não passam de comunidades fechadas que servem para separar mundos, com a finalidade de manterem ‘os outros fora’. Assistimos assim à criação de ‘ghettos voluntários’ dos bem instalados e poderosos e de ‘ghettos involuntários’ para os outros. É que as vedações dividem sempre um espaço uniforme em dois lados, um lado de dentro e um lado de fora.
Após as fugas para os subúrbios e para os condomínios, o marketing imobiliário das cidades tinha de encontrar solução para os ‘seus’ espaços que ficaram desqualificados (aqueles que, apesar de serem vistos como locais perigosos e pouco seguros em que os desmandos neles acontecidos eram notícia constante na comunicação social, precisavam de serem vendidos): para além do aumento de vigilância eletrónica a que sujeitaram os espaços públicos, introduziram subtilmente, através do desenvolvimento de uma inovação arquitetónica/urbanística utilizada em tempos de guerra para impedir o acesso aos inimigos, os chamados ‘espaços de interdição’.
Em vez de se construírem pontes, passagens fáceis, locais de encontro, criaram-se esses ‘espaços de interdição’ com a missão de ‘intercetarem, repelirem ou filtrarem os possíveis utilizadores’, o que em linguagem comum significa dividir, segregar e excluir, por forma a dificultar a comunicação entre os residentes das cidades. A sua verdadeira finalidade é retalhar enclaves no espaço contínuo da cidade, onde possam vir a serem edificadas torres, para que os seus proprietários/utilizadores se sintam independentes, protegidos e isolados da comunidade. Ou seja, é um urbanismo que, em vez de defender a cidade e os seus habitantes contra inimigos exteriores, o que faz é afastar os residentes da cidade mantendo-os separados uns dos outros, como se de adversários se tratassem. É a desintegração da vivência comunitária.
Não é pois de admirar o aparecimento de áreas étnicas e de subclasses cada vez mais homogéneas nas cidades. Sabe-se que quanto mais tempo as pessoas viverem em áreas sociais uniformes, ou seja, em companhia de outros que se parecem a eles e com quem se podem socializar sem correrem o risco de serem vexadas ou mal interpretadas nos seus costumes e falares, maior é o risco de não quererem aprender, praticar, ‘negociar’ a convivência com outros de fora. Não é pois de admirar que, uma vez perdidas ou negligenciadas as qualidades necessárias para viverem com a diferença, elas não estejam na disposição de se confrontarem cara a cara com outros ‘estrangeiros’, sem que estes lhes apareçam ameaçadores e incompreensíveis (‘mixofobia’: o medo de se misturar com outras pessoas; sensibilidade alérgica e febril a estranhos e a tudo o que lhe é estranho).
Estes sentimentos de ‘mixofobia’ aparecem ligados a uma enorme sensação de insegurança, de que sofrem todos aqueles que não sabem o que andam aqui a fazer, desconhecem o que vai ser da sua vida e não reconhecem qualquer saída para ela. Andam para ali e fazem o que os outros do grupo fazem. São exemplos das condições existenciais contemporâneas, pessoas que nasceram e vivem numa sociedade desregulamentada, individualizada, num mundo de mudanças constantes, difusas e aceleradas. São simultaneamente as pessoas cuja ansiedade é facilmente manipulada para atingir outras vítimas, e que acabarão, mais tarde ou mais cedo, por serem elas próprias vítimas.
Por detrás de todos estes muros, sejam eles quais forem, físicos ou psicológicos, vamos sempre descobrir o medo. É agitando o papão do medo que as pessoas ‘decidem’ não se importarem de serem menos livres desde que isso lhes garanta mais segurança. Curiosamente, o medo faz-nos tomar ações defensivas, e sempre que tomamos ações defensivas estas conduzem a um novo sentimento de medo. Há como que uma ‘auto reprodução’ do medo que conduz ao seu movimento contínuo perpétuo.
As extraordinárias e custosas medidas de segurança postas em prática na última década, que deveriam servir para aumentar o nosso sentido de segurança, em vez disso aumentaram antes o sentimento de que agora corremos maiores riscos, maiores perigos. A obsessão com a segurança retira a nossa confiança, aumentando a suspeição. Como resultado reforçam-se fronteiras, evita-se a comunicação com estranhos e com estrangeiros que passam a ser tratados como um problema de segurança, criam-se estereótipos de pessoas a procurar, e mais.
O enfraquecimento e progressivo desmantelamento do Estado-social deixa à rédea solta a lógica dos mercados, aumentando a vulnerabilidade e incerteza das pessoas. Ao admitir que as atividades orientadas para o lucro contribuem para o bem-estar dos povos, o Estado, para se legitimar, vai ter de encontrar outras vulnerabilidades e incertezas a que se ater. Nada melhor que mostrar-se ‘muito preocupado’ com a defesa da ‘segurança pessoal’, atento às ameaças genuínas ou possíveis à integridade física, ao património e locais de habitação dos cidadãos, sejam elas oriundas de pandemias, da má alimentação, de atividades criminosas, de condutas antissociais da classe baixa e do terrorismo. ‘Impõe’ um verdadeiro estado de alerta: quando não são terroristas são imigrantes, ou escolas islâmicas, ou bairros perigosos, ou pedófilos, ou mendigos, ou gangs, ou tudo o resto que vem nos inúmeros correios das manhãs.
É esta barreira de medo que nos impede de contatar com o outro, que nos faz passar pelas pessoas na rua como se elas não existissem, e que nos acaba por fazer passar pela vida como se ela não existisse: o reconhecimento do outro e no outro é uma fase fundamental sem a qual não nos conheceremos a nós próprios. Este é o medo fundamental, o medo de nós próprios. Não explicado, ampliado, instrumentalizado conduz ao estado atual da sociedade.