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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Corn flakes e a masturbação

A masturbação, esse assassino silencioso da noite”, John Harvey Kellog.
Massagens de recolocação pélvica para induzir o paroxismo em doentes afetadas por histeria”, Mortimer Granville.

 

Os fins do século XIX e princípios do século XX foram precursores da veneração que a ciência passou a ter nas mentalidades das gentes, com a sua extensão a todos os campos do saber e não saber. A fé no progresso, o acreditar que todos os aspetos da vida poderiam ser aperfeiçoados e melhorados pela utilização de processos que se acreditavam serem racionais e científicos, levou a que as ideias e projetos dos mais loucos, se validados pela ciência, passassem a serem tidos como os únicos corretos, possíveis e úteis. As teorias raciais e eugenísticas nazis encontraram a sua justificação na ciência desta época, com os efeitos devastadores que conhecemos. Mas está também na origem do aparecimento de inúmeras personalidades excêntricas, de alguns autênticos visionários, muitos deles hoje totalmente desacreditados em nome da mesma ciência que julgavam seguir. Vejamos três casos muito interessantes no campo da saúde, com grande aceitação e expansão generalizada na época.

 

Licenciado em medicina e seguidor zeloso da Igreja Adventista do Sétimo Dia, John Harvey Kellog (1852 – 1943) acaba por se distanciar da sua comunidade religiosa devido à sua visão da ciência como saber que lhe permitiria ultrapassar os dogmas tradicionais. Nomeado diretor do afamado sanatório de Battle Creek vai aplicar métodos holísticos, dando especial ênfase à nutrição vegetariana, ao exercício e ao uso terapêutico de frequentes banhos de rádio e clisteres de iogurte (simples e inteiro). Entre os seus clientes figuravam Henry Ford, Thomas Edison, Bernard Shaw, Sara Bernhardt, Amelia Earhart, Richard Halliburton e Johnny Weismuller.
Condenava acerrimamente a masturbação, responsabilizando-a por provocar câncer cervical, doenças urológicas, impotência, epilepsia, insanidade e outras doenças mentais. Entre as medidas drásticas que recomendava para erradicar tal “vício” incluía a mutilação para ambos os sexos. Aconselhava também que se deveriam atar as mãos às crianças antes de irem para a cama, proteger os genitais, costurar o prepúcio ou aplicar choques elétricos. A circuncisão fazia também parte do seu receituário, a ser contudo feita por um cirurgião sem recurso a anestesia, pois que “o breve momento de dor durante a cirurgia terá um efeito saudável na sua mente, especialmente se for ligada à ideia de punição”. Às mulheres recomendava a aplicação de ácido carbólico puro (fenol) no clitóris, “como excelente maneira de acalmar as excitações sexuais”. Julgo que nem o EI propõe tal solução. Talvez por ignorância.


E foi devido à sua preocupação com a masturbação que inventou a manteiga de cacau e os cereais que, produzidos na sua fábrica, ainda hoje levam o seu nome: Kellog’s Corn Flakes. Eles faziam parte de uma dieta que deveria reduzir o apetite sexual e por conseguinte, a masturbação, vício que destruía a vontade e a saúde, o “assassino silencioso da noite”. Pelo sim pelo não, o melhor é não o darem aos vossos filhos e netos ao pequeno-almoço. E também não o comam.

 

Um dos livros que deveria ser obrigatório ler nas disciplinas de educação sexual e de cidadania deveria ser o Nerve-Vibration and Excitation as Agents in the Treatment of Functional Disorder and Organic Desease, onde o doutor Joseph Mortimer Granville (1833 - 1900) descrevia minuciosamente o efeito provocado por um massajador eletromecânico de sua invenção, quando aplicado em certas zona do corpo das mulheres suas (im)pacientes para o tratamento da histeria. Era então ideia dominante que a histeria fosse a doença típica e que mais afetava as mulheres, estimando-se que uma em cada quatro dela padeciam. O tratamento recomendado era uma massagem na zona pélvica que terminaria com um “paroxismo histérico”, como era na altura referido o orgasmo. Já sem mãos para tantas massagens, Granville idealizou esse aparelho e anotou as diferentes reações sentidas em função da zona do corpo em que era aplicado e da variabilidade da velocidade de rotação.
Diz-se que o seu consultório estava sempre cheio e que as pacientes, para bem da sua saúde, nunca faltavam aos tratamentos. Há um filme inglês que aborda esta questão e que, sabe-se lá porquê, está a passar num dos pacotes da nossa e vossa televisão. Realizado em 2011 por Tanya Wexler, chama-se precisamente Hysteria ou Boas vibrações. O aparelho eletromecânico de Granville acabou por ficar conhecido com o nome de “vibrador” e era na altura anunciado com a maior inocência, como se pode ver na reprodução abaixo.

 

 

 

vibrador.jpg

 

Já o doutor Sérge Voronoff (1866 – 1951), interessado em saber como as secreções das glândulas sexuais influenciavam o nosso organismo, dedicou-se à castração de animais e ao seu implante posterior noutros seres, utilizando técnicas aprendidas com o prémio Nobel, Alexis Carrel. Num estudo que fez no Egito sobre os eunucos (1896 – 1910) concluiu que todos eles eram gordos, com pouco desenvolvimento muscular, voz flauteada, envelhecimento precoce, sendo normalmente cobardes, indolentes, sem energia e muito limitados intelectualmente.
Para universalização desta sua tese vai servir-se do exemplo de Abelardo, que, segundo ele, a partir da altura em que foi castrado, nunca mais escrevera nada com interesse. Não sendo isto verdade, uma vez que a produção intelectual de Abelardo se tornara muito mais importante a partir do seu infeliz acidente com a prima, tal afirmação só poderá ser compreendida pela intenção de querer fazer prevalecer a todo o custo a sua tese, segundo a qual, se a retirada das glândulas sexuais dava origem a seres limitados, moles e envelhecidos precocemente, então a adição de hormonas sexuais estimularia a energia muscular, a atividade cerebral e a “paixão amorosa”.


Para levar à prática as suas teorias, inicia um programa de transplantes de tiroides de chimpanzés para seres humanos. Passou depois a utilizar para o transplante, testículos de criminosos logo após terem sido executados. Tendo a procura aumentado, acabou por se decidir pela utilização de tecido de testículos de macaco.
O seu primeiro transplante de glândula de macaco para um ser humano foi feito em 12 de junho de 1920. Este seu tratamento entrou na moda ao longo dos anos 20. Em 1923, 700 dos cirurgiões mais afamados reunidos no Congresso Internacional de Cirurgiões em Londres, aplaudiram o sucesso obtido por Voronoff no seu trabalho em prol do “rejuvenescimento” de homens mais velhos. Nos princípios de 1930, só em França já tinham sido enxertados mais de 500 homens, a juntarem-se aos mais de mil operados em todo o mundo, nomeadamente numa clínica especial em Argel. Devido à proibição da caça de macacos decretada pelo governo francês, e dada a enorme procura registada, Voronoff acabou por instalar na Riviera italiana uma quinta para criação de macacos.


Mas não se esqueceu das mulheres, e nos seus últimos trabalhos incluiu o transplante de ovários de macacas em mulheres. Experimentou também o transplante de um ovário humano em macacas, tentando em seguida inseminá-lo com esperma humano.
Toda esta enorme reputação que teve, bem como o meio em que se movimentou, deram origem a vários romances, novelas e contos, dos quais cabe destacar o famoso Coração de Cão de Mikhail Bulgagov, escrito em plena União Soviética em 1925. Fica-nos também o método publicitário das fotografias da mesma pessoa antes e depois do tratamento, amplamente utilizado por Voronoff.

 

Só nesta pequena amostra descobrimos algumas hipocrisias ou contradições dentro da mesma sociedade. Se por um lado impunham regras tão draconianas relativamente à exibição de potência sexual (a masturbação), por outro viam com bons olhos (haja dinheiro para os óculos) o enxerto de glândulas de macaco para aumentar a potência sexual dos homens adultos. Provavelmente quando se acabassem os macacos, passariam aos africanos negros, mito rácico que ainda se mantém. Se eu estivesse na situação deles há muito que teria começado a dizer que tal era mentira, exibindo miniaturas de cores escuras. Desta vez foram salvos pelo Viagra.


Outro problema interessante é o que é posto pelo anúncio do vibrador: um século passado, vivendo numa sociedade que se acredita ser tão permissiva, seria impossível a colocação de um tal retrato como angariador de clientes. O máximo permitido são os do Paulinho com as suas boazonas penduradas em cada um dos braços, com um jogo de futebol a decorrer em fundo, garantindo-nos que depois é que vai ser bom, com o tal endurecedor fast, que em português do acordo quer dizer fast. É claro que a verdadeira pornografia é hoje constituída por toda a programação comunicacional, pelo que há que dar um ar de seriedade e moralidade que pretensamente proteja os bons costumes, algo que o governo está sempre atento até para justificar a sua existência, pelo que o tal anúncio do vibrador seria “censurado”.
Para além de todas estas curtas e singelas interpretações, o problema base vem da apropriação da ciência feita pelos grandes grupos económico-financeiros, transformando-a cada vez mais em tecnologia. O sistema económico no seu esplendor: se dá lucro, é correto, verdadeiro e moral. Até a imperfeição do homem, com a sua memória curta, joga a favor. Se de facto o homem foi assim feito é porque havia razões para que assim fosse: para não obviar ao desenvolvimento do sistema económico. Donde …

 

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