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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Onde o denso flutua e o leve afunda

O equívoco é o facto fundamental da existência”, Peter Sloterdijk.
Porquê viver, se por 10 dólares já se pode ser enterrado?” Anúncio publicitário americano.
Precisamente pelo facto de a nossa vida estar privada de sentido é que se justifica o seu grande apreço”, interpretando Heidegger.

 

Normalmente, tudo o que pensamos sobre o mundo, todo o nosso pensamento, encontra-se balizado entre o que é sujeito e o que é objeto, sendo que o sujeito se encontra sempre referido como um eu intelectualmente pensante. Mas então e quando esse sujeito não for intelectualmente pensante e for antes o “sujeito” que é resultante da banalidade do seu modo de ser quotidiano, que faz da superficialidade e da trivialidade, do falar por falar, do equívoco, da indigência e da decadência intelectual, o seu pensamento? Se pretendermos levar a sério este sujeito resultante desta banalidade e erigi-lo em teoria, isso irá significar ter de pensar independentemente do bem e do mal, pensar para além do bem e do mal e portanto para cá da metafísica. É o que acontece na nossa época desencantada, secularizada e tecnológica.


Este “sujeito impessoal” é o que, de certa maneira, representa o que se tem em comum com todos os outros, é o meu eu público relativamente ao qual a mediocridade tem sempre razão, que quer facilitar tudo a si próprio, cingindo-se à aparência convencional; nada tem de si mesmo ou para si mesmo. O que ele é são os outros que lhe dizem e lhe dão. É como se andasse perdido no mundo, distraído, sendo antes o mundo que o encontra. Ele limita-se a participar no “falatório” universal, no “diz-se, diz-se”, consumindo e propalando ‘notícias’. Entrega-se à curiosidade e à novidade do momento. Abandonando-se a esta comunicação do momento, não trata de a compreender, bem pelo contrário, o que ele quer é evitar a compreensão, evitando mergulhar sobre o que é o autêntico Estar.

Mas com distinguir entre o que “aparece como” e o que verdadeiramente “é assim”? Como distinguir entre o autêntico e o inautêntico, entre o expresso e o não expresso, entre o determinado e o indeterminado? Como diz Heidegger (e é dele que temos estado a falar):

Tudo aparece como verdadeiramente compreendido, apreendido, dito, e no fundo não o é – a menos que apareça como não o sendo e no fundo o seja”.

É aqui que vamos ter de nos socorrer da hermenêutica, a arte de compreender o sentido, para se poder articular o sentido da aparente ausência de sentido.
Visto por fora, o “autêntico” não se distingue do “inautêntico”. Torna-se necessário ver no ser uma “outra dimensão” que se esquiva à demonstração por não pertencer às “coisas” demonstráveis. É o que “aparece como” que é o essencial, o verdadeiro, o autêntico. O que faz do equívoco o facto fundamental da existência.


Este “sujeito impessoal” que se encontra desde o seu nascimento lançado no mundo (“ser-no-mundo”), apesar de se convencer que leva uma vida autêntica e plena por se projetar sem reserva na agitação da quotidianidade que o rodeia, tende a permanecer sempre em queda. Permanecer em queda é encontrar-se circunscrito a um mundo de ocupações que, enquanto tal, nos limita a viver uma vida inautêntica.
Contudo, este permanecer sempre em queda desde o começo, apesar de lhe provocar um sentimento de estranheza e alienação, não remete para a comparação com a possibilidade de existência de um ser inicial mais elevado, mais essencial, sem alienação ou estranheza. Heidegger não atribui qualquer sentido valorativo, seja ele de maldade, negatividade ou falsidade, ao “ser-no-mundo”. É apenas uma constatação sobre o que somos. A vida na sua autenticidade é desprovida de fins, pelo que não há objetivos radiosos no futuro e “nenhuma instância nos encarrega de sofrer hoje por um grande amanhã”.
Sendo certo que o futuro da existência é a morte, o homem pode contudo suspender a sua queda resultante de ser um ser-no-mundo. Como o fará? Suspendendo a queda em que se encontra no mundo das ocupações, resistindo à sua tentação, para que possa encontrar-se consigo mesmo. Assumindo a sua máxima autenticidade.

Diz-nos Heidegger:


O ‘-se’ não deixa surgir a coragem da angústia da própria morte

Segundo ele, perante a morte ocorrem duas atitudes: ou temor ou angústia. Temor, se se vir a morte como mero fim biológico, temendo assim o facto de se deixar de viver. Esta é a posição assumida enquanto se vive na inautenticidade, enquanto se permanece um ser em queda. Fugimos de nós mesmos e do facto de não enfrentarmos sermos “seres-para-a-morte”.
Já nas raras vezes em que se adota uma vida autêntica, assumindo a consciência da nossa finitude, surge-nos a angústia que conduz a uma reflexão sobre nós mesmos, da nossa possibilidade de projeção num futuro em aberto. A angústia coloca-nos perante a morte como sendo um limite a um futuro onde todas as possibilidades se colocam. Há aqui um poder-ser que se baseará no reconhecimento, na tomada de consciência da sua queda e no desejo de recuperar-se dela, que faz com que se assuma como um ser que se interessa por si mesmo, que reúne o seu passado, o seu presente e o seu futuro trazendo-os á sua presença para que possa projetar-se no futuro como um poder-ser em sentido próprio.
Esta construção consciente do autêntico vai desembocar no “ser-para-a-morte” como enfrentamento assumido sobre a “sua” morte. Não mais as teorias sobre a ideia de evolução, sobre revolução, sobre seleção, luta pela vida, sobrevivência dos mais aptos, progresso e raça, sempre a contarem, todas elas, com o que se passava com os outros, com o declínio dos outros. Não mais o “morre-se”, mas o “eu morro”.


Uma das dificuldades para este enfrentamento da morte reside na imensa “distração” providenciada a este sujeito impessoal pela militarização total da sociedade em que vive, que diariamente o vai narcotizando e sussurrando sobre a destruição que aí virá. Será apenas uma questão de tempo. Exatamente o tempo da sua distração.
A distração provocada por esta “constante tranquilização sobre a morte” em que está imerso e em que vive o “sujeito impessoal” não deixa surgir a “coragem da angústia da morte”. A sociedade militarizada, a sociedade do constante rearmamento, substitui esta “coragem” por uma empresa militar, a indústria da morte, que nos ocupa todo o tempo, até que a morte chegue desapercebida. “O sujeito impessoal rearma-se, distrai-se, morre”.

A privação do sentido da nossa vida pode conduzir ao desespero e ao pesadelo, mas pode também, e exatamente pela sua falta de sentido, conduzir à sua valorização, conduzindo antes a uma vida criativa, a um reconhecimento da minha posição perante o mundo, a um pensamento de que sou eu que espero a minha morte no fim do meu tempo, a uma abertura para o futuro.
Para se ser “autêntico” temos de saber o que somos. Temos de aprender a conhecer conscientemente o ser-para-a-morte como instância suprema do nosso poder-ser; é na angústia que ele nos ganha, e chegou a nossa hora se tivermos coragem suficiente para resistir à grande angústia. Mas Heidegger sabe que:


Com a supremacia do decair e ser-público […] a angústia “autêntica” é rara”.


Ou seja, a autenticidade é coisa para um pequeno número, o que é uma escolha elitista. A elite perfeitamente apolítica dos realmente existentes. Mas que vai acabar por se refletir, ganhar expressão e encaixar-se no campo social e político. O próprio Heidegger cai na armadilha ao vir a considerar o nacional-socialismo como o renascimento para a autenticidade a partir do decair, da resolução e do ser-heroico-para-a-morte.


Tudo aparece como…” escrevera ele. O problema estava no “como” e como apareceu.
Heidegger insta-nos a levar uma existência autêntica, mas não nos diz como. A sua única resposta é “conscientemente”. É um faz o que quiseres, faz o que tens a fazer, mas fá-lo em plena consciência do que fazes. O “Tu-deves” moralista e categórico é substituído pelo amoralismo moral do “Tu-podes”.


Todos os grandes filósofos têm a tendência para desenvolverem sistemas coerentes e lógicos para explicarem a totalidade do mundo das pessoas. O que se tem verificado é que todos esses sistemas têm acabado por serem refutados, rejeitados, abandonados, e contudo, a consideração pelos grandes filósofos tem-se mantido, porquanto há sempre pequenas ou grandes partes dos seus pensamentos que foram e são importantes para a compreensão do mundo em que vivemos.
Heidegger não foge a esta constatação: embora o seu sistema global possa não ter resolvido os problemas que ele se pôs, o facto é que é impossível compreender-se a sociedade contemporânea sem a utilização de alguns dos seus conceitos. Não é possível entender o nazismo e a sociedade de hoje sem os conceitos de “sujeito impessoal”, “poder-ser” e “ser-para-a-morte”. Revemo-nos ainda quando ele fala sobre as escolhas que o homem pode fazer diante da abertura do futuro dizerem respeito à sua existência, e na “distração” relativamente à necessidade de pensar a política que é hoje traduzida numa “dormência” favorecida pela própria política, agora só preocupada com as questões da vida assética (“vida nua”).


Dentro de um pouco mais de dez anos, completam-se cem anos sobre a publicação do “Ser e Tempo” (1927) de Martin Heidegger. É isso: fazem-nos andar distraídos.

 

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