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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

O reino do Céu na Terra

O poder de Deus incluía o direito a negligenciar, suspender e anular qualquer ordem por Ele anteriormente dada, exatamente porque esse poder era absoluto.

A ordem legal repousa numa decisão e não numa norma”, Carl Schmitt.

 “Acabou a salvação pela sociedade”, Peter Drucker.

A sociedade não existe, há apenas indivíduos e famílias”, Margaret Thatcher.

 

 

            Porque nos deixamos conduzir tão facilmente para situações sobre as quais não temos nenhum controle? Dito de outra forma, de onde vem e onde reside a fonte do poder e da soberania a que nos sujeitamos?

Citando muito sucintamente alguns dos mais conhecidos pensadores que se debruçaram sobre este problema do poder/soberania, pode-se dizer que para Maquiavel, Hobbes e Hegel a soberania residia no poder do governo, para Bodin na Supremacia Divina, para Rousseau, Locke e Paine no povo, para Montesquieu e Locke na constituição, para Kant na lei como ditado da razão, para Stuart Mill no indivíduo e para Simone de Beauvoir no corpo feminino.

 Mas, não nos estaremos a tentar iludir ao não querermos ver o verdadeiro fundo tão superficial da estrutura humana subjacente a todas essas conceções?

 

Talvez Carl Schmitt, o juiz politólogo querido do regime nazi (e não só), através da abordagem que fez a este problema na sua obra de 1922, Teologia Política (que dez anos mais tarde aparece com o nome de O Conceito da Política) nos consiga esclarecer sobre a verdadeira fonte a partir da qual tudo começou.

 

Para Schmitt, é linear: ‘soberano’ é aquele que tem o poder para impor regras, bem como para as suspender ou torná-las nulas.

 Por isso, “a ordem legal repousa numa decisão e não numa norma”. E, acrescenta ainda, quase em jeito de conclusão, comparação, explicação, que a exceção em jurisprudência é análoga ao milagre em teologia.

 

Para percebermos o que ele pretende dizer, necessitamos de recorrer ao Livro de Job (um dos Escritos Sapienciais da Bíblia Hebraica, integrado no Antigo Testamento Cristão).

Dirimia-se então a questão, embora já definida para os Judeus, da existência dum Deus único, omnipotente e omnipresente, criador de todo o universo. Uma das dificuldades para a sua aceitação residia no facto de Israel estar situado num território geograficamente rodeado de povos onde a existência de um Deus único não fazia qualquer sentido, perante um panteão de deuses servindo para tudo o que acontecia e para todos os estados de alma, e que tudo justificavam.

 Outra dificuldade para a imposição do Deus da religião monoteísta era que ao ter o poder absoluto, tal deveria também responsabilizá-lo, igualmente em absoluto, por tudo o que de mau pudesse acontecer. O poder absoluto não poderia servir de desculpa.

Só que o Livro de Job apontava, aparentemente, noutro sentido:

O Senhor dá, o Senhor tira, abençoado seja o Seu nome”.

 Ou seja, nada de responsabilização, apenas obediência resignada, sem perguntas e sem debates.

 

Ouçamos os rogos de Job, exemplar e virtuoso servidor de Deus, mas por Ele impiedosamente castigado:

 “Dizei-me simplesmente, e eu escutarei em silêncio: mostrai-me onde é que eu errei … Porque é que me fizeste isto, e porque é que fui eu o alvo escolhido?” (Job 6: 24; 7: 20).

Esperou em vão por uma resposta de Deus. E Job continua:

 “De fato tenho como verdade, que nenhum homem pode ganhar o seu caso perante Deus. Se um homem decidir argumentar contra ele, Deus não responde … Apesar de eu estar certo, não obtenho nenhuma resposta … Sem culpa, digo eu … Mas é sempre o mesmo; por isso eu digo: Ele destrói de igual modo os que não têm culpa e os culpados” (Job 9: 2-3; 9: 15, 22).

Aliás, é Deus que, ignorando as questões postas por Job, o interroga:

 “Porta-te como um homem; sou Eu que faço perguntas, e tu quem respondes. Será que negas que sou Eu que estou certo e tu que estás errado?” (Job 40: 6-9).

 

 As interrogações de Job eram inadmissíveis porque ele não tinha o direito de perguntar. Só quem tinha o poder é que podia perguntar. Consequentemente, não era Deus que lhe devia explicações, mas era ele que devia uma desculpa a Deus.

O poder de Deus incluía o direito a negligenciar, suspender e anular qualquer ordem por Ele anteriormente dada, exatamente porque esse poder era absoluto.

 

 A história de Job, tudo o que lhe aconteceu, é a demonstração maior de que não há qualquer regra ou norma a que ele se pudesse agarrar, e que não há qualquer regra ou norma a que o poder superior se encontre vinculado.

Na história de Job, não há qualquer possibilidade de se vislumbrar lógica ou harmonia, causa e efeito. É a evidência maior da história como um fluxo caótico de acontecimentos.

Bem podem os teólogos esforçarem-se para encontrarem ligações entre o pecado e o castigo, entre a virtude e a recompensa, que Deus não os ouve, nem necessita de advogados que intercedam por Ele: não se desculpa e não se explica. A ordem reinante nada tem a ver com uma qualquer norma universal, mas apenas com as decisões tomadas.

 

 

Além do mais, todas essas decisões por Ele tomadas e que ficassem fora de qualquer ordem ‘humanamente entendível’, apareceriam aos homens como milagres.

É por aqui que Schmitt vai tentar conseguir a incorporação da ideia da ordem divina da soberania na ordem legislativa terrena, ao considerar que o milagre estava para a teologia como a exceção para a jurisprudência. E logicamente, “a exceção não só confirma a regra, como a regra como tal, só tem lugar por existir a exceção”. Era agora claro que ‘soberano’ é todo aquele que decide na exceção.

 

 Mais, a decisão do soberano ao ser sempre excecional, será também por isso mesmo arbitrária e pessoal. Daí que a nomeação de um indivíduo como sendo inimigo político nada tenha a ver com o fato de ele ser culpado ou de ter intenções hostis, mas apenas porque em política, no capítulo das ações humanas, torna-se sempre necessário indicar quem é o ‘inimigo’ para que os ‘amigos’ se mantenham juntos.

 O inimigo será sempre ‘o outro’, ‘o estranho’, a quem se declarará guerra.

A objetivação do ‘inimigo’, ou seja, a existência de uma regra que determine quais os atributos ou ações praticadas que devam ser consideradas para que um indivíduo seja definido como inimigo, vai contra o princípio da soberania e da excecionalidade do seu poder.

A objetivação do inimigo nunca poderá ser tida em conta como limitação ao poder do soberano. Tal como a bondade não poderá ser tida em conta como limitação ao poder soberano do Jeová do povo de Israel, como nos mostra o Livro de Job.

 

Não se trata aqui de demonstrar a existência de princípios totalitários contidos nas religiões monoteístas, até porque esses mesmos princípios podem ter aparecido noutras sociedades para além da nossa, ocidental e cristã, religiosas ou não.

 Poderemos inclusivamente concluir como Hannah Arendt sobre a existência de uma “inclinação totalitária endémica” presente em todas as formas modernas de poder de estado. Ou de uma inclinação totalitária intrínseca a todos os indivíduos.

 

O que pretendo realçar é que durante milhares de anos temos sido sujeitos a esta ‘educação’ totalitária, implícita ou explicitamente, que provavelmente nos formou e conformou, e da qual dificilmente nos livraremos e que outros, sempre que podem, quando podem e enquanto podem, usam a seu favor para nos utilizar.

 

Sabe-se que a base de todo o poder político assenta nos medos humanos resultantes da nossa vulnerabilidade e da incerteza a que estamos sujeitos. É com a promessa de proteção contra estes medos humanos que o poder se impõe, reclamando em compensação autoridade e obediência.

 Nas sociedades modernas ocidentais, as ‘forças do mercado’ têm-se encarregado de introduzir os fatores de incerteza e insegurança, transformando-os em lei natural pacificamente aceite como fonte de desenvolvimento (filosoficamente justificadas como necessárias para o desequilíbrio sem o qual não há movimento).

O poder político limita-se a fazer cumprir a lei e a disciplina, legitimando-se na sua promessa de proteção contra a insegurança através do que ficou conhecido como ‘estado social’.

Atualmente, a par da retirada das regulamentações impostas aos mercados e sua consequente liberdade de atuação, assistimos ao desmantelamento progressivo do ‘estado social’. A proteção do estado irá incidir apenas sobre minorias, desempregados e inválidos, que mais tarde acabarão por se transformarem num ‘problema de lei e ordem’.

Tal como Pilatos, o estado lavará as mãos de todas as vulnerabilidades e incertezas oriundas da lógica do mercado livre. Terão agora de ser os indivíduos a tratar disso através dos seus recursos.

 Isto é o que aqueles alguns chamam de ´finalmente o homem livre, valendo só por si’. O que os filósofos e várias filosofias foram sempre em vão tentando, o chegar ao fundo do homem, o chegar ao seu estado puro, original, vai agora ser conseguido pelas forças do mercado!

 

Proclamam os nossos novos velhos próceres, que “Acabou a salvação pela sociedade” e que “A sociedade não existe, há apenas indivíduos e famílias”. Resta o quê para o estado?

Para continuar a legitimar-se vai ter de encontrar outras vulnerabilidades e incertezas, uma vez que as resultantes dos mercados são aceites como lei da natureza à qual não se pode fugir (citando o guião que a toda a hora vem sendo repetido na comunicação ‘sucial’).

 Há que instilar o medo. Estaline já o fizera: na ausência das forças de mercado, era o próprio poder político que se encarregava de produzir artificialmente a vulnerabilidade e incerteza, através de um terror arbitrário e aleatório.

Nada melhor que a luta contra atividades criminosas que visem o público em geral, contra as condutas anti sociais da ‘classe baixa’, ciganos e quejandos incluídos, e acima de tudo contra o terrorismo. Qualquer coisa suficientemente poderosa e dramatizável, podendo até nem ser verdadeira, que inspire medo, muito medo, e que faça passar para segundo plano a insegurança e incerteza das questões económicas, sobre as quais o estado não tenciona fazer nada.

E se for muito bem feito (aumentando e exagerando os perigos da insegurança que correm as pessoas), até mesmo a não materialização dessas ameaças pode ser relatada como um acontecimento extraordinário, sempre devido à atuação, vigilância e boa vontade do governo.

 

Não é de admirar que vivendo num estado de emergência permanente (devido ás constantes ameaças, reais e/ou fictícias), com uma sempre crescente nomeação de inimigos reais ou inventados (muçulmanos, árabes, imigrantes, talibans, al Qaeda, russos, comunistas, mexicanos, negros, turcos, ciganos, etc.), e com as investidas sistemáticas a favor das declarações de um poder de exceção (os ataques ás Constituições), as ideias políticas de Carl Schmitt voltem a ser apropriadas, não que alguma vez tenham deixado de ser aplicadas na prática.

Finalmente livres para obedecer cegamente.

 

           

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