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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

O quinto Mandamento

 

 American Sniper, foi o filme de Clint Eastwood que mais dinheiro deu: com um custo de produção de 58.8 milhões de dólares teve uma receita de 429.8 milhões de dólares.

 

“Pergunto-me se alguma vez isto chegará ao fim? E não, não tem fim, Clint Eastwood.

 

 O direito à vida é mais importante que o direito à vida humana.

 

O monstro anda à solta. Passeia-se pelo mundo. Fugiu do laboratório e está ao serviço de seja quem for que tenha coragem suficiente para lhe dar emprego”, Henry Miller no Tempo de Assassinos.

 

 

Nem sempre o não matar constituiu um preceito, uma obrigação moral, cívica, que se tenha imposto nas sociedades. Até mesmo no campo da religião este ‘pecado’ não era tido por absoluto. Por exemplo, o Antigo Testamento (corpo de leis que guiava o comportamento dos Hebreus), embora desencorajasse a morte de outro ser humano, permitia que em caso de autodefesa, o agredido pudesse tirar a vida ao agressor.

            Radicalmente diferente era o ensinamento de Jesus Cristo, que além de impedir que qualquer ser humano fosse morto, ainda preconizava que nem sequer havia razões para se ficar zangado com quem o praticasse.

 Em vez do antigo “olho por olho, dente por dente” aparecia o “se alguém te esbofetear numa face, oferece-lhe a outra face”, substituindo-se assim a ética antiga baseada na vingança por uma nova ética baseada na não resistência.

Este cunho pacifista tinha que ver com a crença na existência da vida depois da morte, pelo que a morte aparecia apenas como uma perca temporária da existência física.

 

            Quando a Igreja Cristã se torna religião oficial do império romano, quando a governação do Império ou do que resta dele lhe cai nas mãos, obrigando-a a governar, todo esse pacifismo se vai alterar. Juntamente com o aparecimento da doutrina da guerra justa, volta a afirmar-se o princípio da autodefesa como justificativo para a morte de outra pessoa.

 

 É Santo Agostinho quem vai teorizar e reconhecer a legitimidade da lei humana da autodefesa em caso de morte de outra pessoa (para preservar a própria vida, liberdade ou castidade). Sugere, contudo, que quem o faça deverá ser condenado por uma lei superior. Ou seja, não é pelo fato de a lei permitir um certo ato, que tal ato deva ser considerado moral.

Mesmo assim vai isentar de pecado o ato da morte de outra pessoa nos seguintes casos: quando um soldado matar um inimigo, quando um juiz ou seu representante condenar um criminoso à morte, ou quando uma arma que tenha acidentalmente caído das mãos de uma pessoa tenha provocado a morte de outra pessoa.

 

São Tomás de Aquino introduz posteriormente o conceito de intencionalidade, segundo o qual a morte de uma pessoa era permitida por autodefesa, desde que não fosse intenção do agredido matar o agressor.

 Isentava deste princípio a morte intencional de outros feita por agentes públicos, desde que fosse destinada a proteger o bem comum e não por animosidade privada. Clarifica também o uso da força: a força usada para nos defendermos de um atacante não pode ser superior à da ameaça utilizada pelo agressor.

 

            E, no entanto, o “não matarás” inscrito nas pedras de Moisés não previa qualquer exceção ou interpretação. Bem sei que a gravação em pedra era difícil e levava tempo, mas o “não matarás” era o mandamento com menos letras quando comparado com os outros, pelo que propositadamente queria dizer isso mesmo: não matarás, ponto final parágrafo.

            A haver espaço para uma qualquer extensão do conceito, certamente seria relativo à vida como um todo, sem o restringir apenas ao ser humano como parece ter sido. Segundo a interpretação da época, o “não matarás” referir-se-ia apenas ao homem.

 

 E, contudo, não seria despiciente que se tivesse referido a toda a forma de vida. É que a vida, que só apareceu ao fim de milhões de anos da existência da Terra, que já sofreu vários reveses que poderiam ter redundado no seu desaparecimento, que apesar da imensidão dos espaços siderais e da multitude de corpos celestes neles contidos tem grandes possibilidades de só existir na Terra, deve por isso mesmo ser encarada como um bem único, extremamente raro e escasso.

 Só por isto a vida, qualquer vida, deveria ser preservada a todo o custo. Como corolário poderemos retirar que o direito à vida é mais importante que o direito à vida humana, porquanto mesmo que a vida humana desapareça continuará a haver vida.

 

Daqui poderíamos passar para a definição do que é vida, do que é vida humana, e rapidamente entraríamos na discussão sobre a inteligência artificial, robots, a vida dos passarinhos, das árvores, das algas, dos vírus, dos minerais, e acabaríamos por ter de falar do Avatar e do A.I. e outros que não são o filme de que queria falar.

 

Fiquemos com o preceito de que o “não matarás” se refere apenas aos seres humanos. Vimos já que, quer antes quer depois, esse mandamento tão simples foi imediatamente alargado aos casos “práticos” da vida.

 Com a erupção das massas na sociedade e seu aproveitamento para combater nas várias e muitas guerras, foram aparecendo escritores a descreverem os horrores da batalha, em que iam ora questionando, ora glorificando as ações humanas que presenciavam.

O cinema vem depois, apesar das suas limitações, trazer ao conhecimento do grande público o que se passava, através de filmes que pretendiam refletir a guerra, normalmente do ponto de vista individual, do herói, vivo ou morto.

 

O primeiro filme em que o herói era um atirador de elite, um franco-atirador, é o Sargento York realizado em julho de 1941 por Howard Hawks, interpretado por Gary Cooper.

 Baseado no diário do sargento Alvin York, um dos mais condecorados soldados americanos da Primeira Grande Guerra, conta a história de um simples camponês pobre que não gostava do Exército, que era um objetor de consciência religioso por não querer matar, e que acaba por ser recrutado para combater.

Durante os treinos revela-se como atirador exímio. O seu comandante decide dar-lhe umas férias para que ele possa decidir sobre a sua oposição ao Exército. Meditando sobre o assunto, York vê a sua Bíblia ser arrastada pelo vento e quando a vai apanhar ela estava aberta no versículo que falava sobre “dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Apresenta-se no quartel e embarca para a Europa.

 

A 8 de Outubro de 1918 participa na ofensiva de Meuse-Argonne. Impedidos de avançar devido a fogo de metralhadoras inimigas que estavam a fazer imensas baixas, é enviado, com mais alguns homens, a fim de flanquearem os ninhos de metralhadoras.

Durante a ação é morto o sargento que comandava a coluna, pelo que o então cabo York se vê forçado a assumir o comando. Ao ver os seus camaradas serem atingidos, emprega então a tática que utilizava na sua terra para caçar perús: atirar a matar sempre ao de trás, para que os da frente não dessem por isso.

 Mata 28 alemães com 28 tiros. Surpreendidos, sem saber o que se estava a passar, os alemães rendem-se. Com apenas meia dúzia de colegas, York captura 132 alemães, tornando-se um herói nacional, sendo condecorado com a Medalha de Honra. Perguntado porque o fizera, respondeu que estava a tentar salvar a vida aos seus homens.

 

O Sargento York foi um enorme sucesso de bilheteira: tendo custado 1.4 milhões de dólares, rendeu 16,3 milhões de dólares. Talvez tal tivesse que ver com a necessidade sentida pelos americanos por algo que os inspirasse naqueles tempos da Segunda Guerra e pelo ataque a Pearl Harbor (7 dezembro de 1941).

 

Em novembro de 2014 é estreado American Sniper, filme de Clint Eastwood, também baseado num livro autobiográfico American Sniper: The Autobiography of the most Lethal Sniper in U.S. Military History (2012) de Chris Kyle, o franco-atirador que matou 255 pessoas, das quais 160 oficialmente confirmadas pelo Ministério da Defesa, o que faz dele o atirador mais mortífero da história militar dos E.U.A.

Não lhe sendo possível apresentar como herói respeitável alguém que voluntariamente se inscreve nos Navy SEAL para ser sniper, que tem como declaração de princípios escrita no seu livro o “só creio em Deus, na pátria e na família”, e que levava consigo para o combate a lista de “selvagens” a abater, Eastwood tenta deslocar o filme para os problemas que os militares vindos de ações de combate, enfrentam quando do regresso a casa, para se integrarem numa vida familiar normal.

Diz Eastwood numa entrevista:

 

 “Fui uma criança que cresceu com a Segunda Guerra. Era suposto que ela fosse a guerra que acabaria com as guerras. E, no entanto, quatro anos depois, fui recrutado para o conflito da Coreia; depois disso, apareceu o Vietname, e depois outro e ainda outro e mais outro…. Pergunto-me se alguma vez isto chegará ao fim? E não, não tem fim. Por isso, cada vez que nos envolvemos nestes conflitos, deveríamos pensar muito sobre este processo de se ir e voltar, ir e voltar. Julgo que todo este processo tem de ser melhor pensado.”

 

E é exatamente isto que Eastwood não consegue passar para o filme. Para além dos estereótipos que tem de se socorrer (como por exemplo a ocupação do Iraque contada a preto e branco, os bons e os maus; apresentar a personagem sem qualquer complexidade, linear, em que uma vez regressado a casa, a única coisa que desejava era voltar para a guerra para matar os maus e salvar os bons) talvez este seja o filme mais fraco de Eastwood.

 

Mas foi o que mais dinheiro deu: com um custo de produção de 58.8 milhões de dólares teve uma receita de 429.8 milhões de dólares, talvez reflexo de uma identificação nacional com esse matador que desde jovem dividia o mundo em lobos, cordeiros e pastores, em maus e bons.

Após a sua quarta comissão, Kyle regressa a casa, continuando incapaz de se adaptar à vida civil. É convencido pelo psiquiatra a tentar ajudar outros veteranos que precisassem de acompanhamento. A 2 de fevereiro de 2013, é morto por um desses veteranos.

 

O princípio por detrás dos snipers, o do pistoleiro solitário que devido a saber manejar bem o seu colt abre caminho para o oeste selvagem, é o mesmo que se aplica e que torna aliciante o uso dos drones: matar o inimigo sem ele se aperceber, evitar percas humanas do nosso lado.

Os “drones”, são aviões bomba sem piloto, V1 sofisticadas (porque as não sofisticadas eram nazis e caíram sobre Londres), tripuladas à distância, e que segundo a American Civil Liberties Union, desde 2002 são responsáveis pela morte de mais de 6.000 pessoas, muitas delas civis.

Apesar de todos os argumentos legais e filosóficos que visam garantir a justeza e moralidade do emprego dos drones, as Nações Unidas obrigam desde 2013 a que sempre que um Estado utilizar um drone contra outro Estado, invocando o direito de autodefesa pela sua utilização, deverá submeter um relatório ao Conselho de Segurança. Simples. Só que os Estados não o fazem, nem respondem aos questionários sobre os alvos atingidos.

 

É, por isso, terrível, desumano, ridículo, assistir às reuniões filmadas, noticiadas, em que os principais leaders mundiais aparecem numa sala para visionarem em direto os acontecimentos que são as mortes em direto de pessoas que eles selecionaram: eles são os snipers, e sabem que nessa qualidade serão agraciados. Imitação pateta de imperadores romanos no Coliseu.

 

Vivemos num tempo de assassinos, e em todos nós cai essa mancha. Também somos um pouco disso. Todos os dias. Em nome de qualquer coisa: porque a nossa vida é mais importante que a outra, porque a nossa sociedade é mais democrática, porque somos mais civilizados, porque Deus está do nosso lado, sempre por qualquer coisa que nos afaste da nossa interioridade, ou seja, que nos afaste do humano e nos aproxime da besta.

 Como bem notou Henry Miller:

 

O maior pavor do homem é a expansão da consciência. ‘Vivamos em paz e harmonia!’, implora o homem comum.”

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