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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

O perigo dos equívocos da técnica moderna

A técnica moderna  trás consigo três grandes equívocos que nos podem vir a ser fatais. Eles são: a ilusão da liberdade, a ilusão da felicidade e a ilusão da companhia.

 

A concorrência globalizada faz com que a história avance independentemente da vontade dos homens, e pior, sem garantias que seja no sentido correto.

 

O verdadeiro problema não reside no facto do mundo poder ser secretamente guiado por alguns “poderosos”, mas no facto de ele nos escapar a todos, incluindo aos poderosos.

 

É facto que não escapa à observação de ninguém que, devido à concorrência generalizada hoje existente, todas as empresas e laboratórios científicos, são forçados a aumentar constantemente a sua produtividade, os seus conhecimentos, as suas aplicações, para que o consumo dos seus produtos cresça, a fim de não serem ultrapassados pelos concorrentes.

Quer lhes agrade ou não, as empresas vêem-se obrigadas a lançar, pelo menos uma vez por ano, novos produtos, novos computadores, novos sistemas operativos, telemóveis, televisores, jogos, ligações à internet. Quem não o fizer, quem ficar para trás, desaparece.As marcas que não acompanharem a “inovação”, desaparecem. Torna-se um imperativo para a sobrevivência.

O progresso que se vem verificando em quase todas as empresas e laboratórios científicos, não tem outro objetivo senão fazer com que se mantenham na corrida com os outros concorrentes. Esta concorrência globalizada faz com que a história avance independentemente da vontade dos homens, e pior, sem garantias que seja no sentido correto.

 

Como Margarida Amaral exemplarmente resume:

 

“A técnica é um processo sem finalidade, desprovido de qualquer espécie de objetivo definido: no limite, já ninguém sabe onde nos conduz o curso do mundo, porque ele é mecanicamente produzido pela competição e não dirigido pela vontade consciente dos homens agrupados coletivamente em torno de um projeto, no seio de uma sociedade, de uma causa comum”.

 

É, exatamente por considerar que é a técnica que está subjacente a toda a evolução que tem conduzido a um universo desprovido de sentido e que se nos escapa por todos os lados, que Heidegger nos chama a atenção para o problema que a técnica põe. O que o preocupa é que com esta técnica nos estejamos a afastar cada vez mais das promessas feitas, segundo as quais iríamos poder fazer finalmente a nossa história, termos uma palavra a dizer sobre o nosso destino para tentar melhorá-lo.

Para ele, o verdadeiro problema não residia no facto do mundo poder ser secretamente guiado por alguns “poderosos”, mas no facto de ele nos escapar a todos, incluindo aos poderosos.

E isto porque, devido à competição globalizada, o progresso científico deixou de visar “fins exteriores e superiores” a ele para se tornar um fim em si mesmo, como se o poder ou o domínio dos homens sobre o universo se tornasse ele próprio a sua finalidade.

O “progresso” torna-se assim um processo “automático, sem finalidade e autossuficiente”, o que faz com que a época atual nos apareça como “sacralização de um universo liberal votado ao não-sentido”.

Está-se, portanto, perante um caso nítido do desaparecimento dos fins em proveito da lógica única dos meios, uma vitória total da técnica.

 

Face a este problema que a técnica moderna põe, há os que aceitam passivamente o caminho que ela segue, e há os que a diabolizam, repudiando-a.

Para os que a aceitam (visão otimista), consideram que a técnica não é mais do que um conhecimento prático que permite alterar a Natureza, sem, contudo, constituir um atentado contra ela. Dentro destes, podemos ainda distinguir aqueles que partilham de um otimismo total, “otimismo cego”, (o que representa um perigo, na medida em que impede o aparecimento de um pensamento crítico), e os que pretendem uma certa visão lúcida entre o otimismo cego e a diabolização.

Para os que a diabolizam (tecnofóbicos), a técnica é entendida como um “demónio” que ameaça permanentemente o valor contido na dimensão espontânea da Natureza, impossibilitando um mundo futuro.

 

Para nos posicionarmos perante o problema, convém não esquecermos que a ciência e as suas aplicações tecnológicas mudaram o modo como vivemos a nível planetário, trazendo-nos benefícios e desvantagens.

Do lado dos benefícios podemos considerar a melhoria da qualidade de vida (para quem dela pôde beneficiar), uma libertação das tarefas rotineiras, um aumento de produtividade e riqueza (mesmo que não tenha sido igualmente distribuída), uma melhoria nos cuidados de saúde, um aumento da esperança média de vida, novas fontes e novas formas de energia, a possibilidade de um maior acesso à informação e à cultura, e a possibilidade de recuperação de espécies em risco de extinção.

Do lado das desvantagens podemos considerar a poluição, a exploração desenfreada de recursos naturais, o forte desequilíbrio dos ecossistemas, o desemprego, um maior número de acidentes, uma maior desigualdade entre ricos e pobres, a sua aplicação à guerra e a possibilidade de provocar danos irreversíveis não previstos nem acautelados.

Paul Virilio (1932-), na obra Un paysage d’événements, chama-nos ainda a atenção para um outro problema ligado aos progressos da técnica:

 

Inventar o navio é inventar o ‘naufrágio’, inventar a máquina a vapor, a locomotiva, é inventar o ‘descarrilamento’, a catástrofe ferroviária. Também para a aviação, os aviões implicam o ‘embate’ com o solo, a catástrofe aérea. E, sem falar do automóvel e dos ‘choques’ em cadeia a grande velocidade, da eletricidade e da electrocução, nem sobretudo dos ‘riscos tecnológicos’ maiores resultantes do desenvolvimento das industrias químicas ou nucleares […] cada período da evolução técnica traz, juntamente com os seus instrumentos e máquinas, o aparecimento de acidentes específicos, reveladores «em negativo», do desenvolvimento do pensamento científico.

 

Mas, para além da enumeração de prós e contras referidos, a técnica moderna trás consigo três grandes equívocos que nos podem vir a ser fatais. Eles são: a ilusão da liberdade, a ilusão da felicidade e a ilusão da companhia.

 

 A ilusão da liberdade

 

A produção em série, apanágio da técnica moderna, onde as máquinas têm cada vez mais lugar, acabam por possibilitar ao trabalhador mais tempo livre. Teoricamente, este tempo em que o trabalhador permanece livre do tempo de produção, seria um tempo de liberdade. Mas ele só será um tempo de liberdade se o trabalhador estiver livre do ciclo de produção e consumo, para a realização de outras atividades.

O que acontece, é que o trabalhador, mesmo fora do tempo de produção, continua submetido ao ciclo de produção e à necessidade de consumo. Quando à ‘hora do almoço’ vai com o colega de trabalho, fala de trabalho; quando vai ao Centro Comercial para ‘não perder tempo’, continua dentro do ciclo de produção e consumo. Esta necessidade de consumo insaciável esgota praticamente todo o nosso “tempo livre”, restando pouco para outras atividades.

Por isso, a liberdade é, no contexto do aumento do tempo livre possibilitado pela automação, uma ilusão e, enquanto tal, contribui para o equívoco de que há hoje maior liberdade”.

 

A ilusão da felicidade

 

O bem-estar é hoje considerado como um estado em que é possibilitado às pessoas uma satisfação instantânea e máxima das necessidades criadas numa sociedade de consumo. A técnica possibilita um bem-estar que é interpretado como sendo felicidade. A sedução do consumo.

Gilles Lipovetsky aborda este tema da sedução do consumo no seu livro A Era do Vazio, fazendo notar que o elogio da sedução (procura do prazer instantâneo) se verifica porque  os produtos nos seduzem muito mais em nome do hedonismo do que em nome da construção do mundo. Segundo ele, tal sedução promove a homogeneidade – a indiferenciação das “nossas” escolhas -, o individualismo – o auto-centramento narcísico que surge obscurecido pela ilusão da companhia -, o ruído – a ausência de silêncio necessária para a tranquilidade do pensar -, e a neutralidade que até invade a nossa linguagem.

Se entendermos por felicidade uma satisfação que perdure no tempo, então o consumo de uma sociedade de consumidores, que corresponde a uma perpétua insatisfação por ambicionar uma abundância sem fim que nunca poderá ser concretizada, o mais que poderá alcançar será uma ilusão de felicidade.

A incompletude (do consumo) reporta-nos, antes, a uma satisfação imediata e instantânea que, demasiado repentinamente, se abandona em nome de um outro desejo que a futilidade da vida atual depressa descobre”.

 

A ilusão da companhia

 

O apelo ao consumo que leva os indivíduos a lugares de aglomeração, e os meios técnicos que favorecem a socialização, são duas características da sociedade de consumo atual que favorecem o encontro alargado entre pessoas que, na grande maioria dos casos, nem se conhecem. Trata-se de “um encontro indiferenciado potenciado pelo consumo”.

Somos os narcisos que convivem em nome do consumo e que, em tais circunstâncias, olham os outros não como seres plurais e relacionais em ato ou em potência, mas como iguais a si e, na pior das hipóteses, igualmente como produtos prontos a consumir num breve instante”.

 

É vulgar ouvirmos dizer que a técnica moderna propicia hoje mais encontros entre os indivíduos. O problema que se põe é o de saber se a técnica que é inerente à sociedade de consumo atual e que parece favorecer um encontro indiferenciado, permitirá um encontro efetivo entre os indivíduos ou, se pelo contrário, o contraria?

Esta dúvida, esta ilusão, vem da confusão estabelecida entre acompanhamento e verdadeira companhia. Este é o terceiro equívoco da técnica moderna.

O perigo desta ilusão é ela tender a fazer-nos esquecer o seu contrário: o individualismo contemporâneo e o auto-centramento narcísico.

 

Estas são as ilusões que nos têm vindo a ser vendidas. Estas são as ilusões que nós, alegre e incautamente, temos tendência a comprar. Algoritmo do futuro presente.

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