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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

O "pai primitivo"

 

A humanidade nunca vive inteiramente no presente.

 

Na sua forma mais primitiva, a humanidade vivia sob a forma de clã sujeita à autoridade de um chefe, que era o mais forte, o mais velho, o mais protetor, com poder de morte sobre todos e com acesso à posse exclusiva a todas as fêmeas (o “pai primitivo”).

 

Este ritual coletivo serve para canalizar a agressividade natural que não desaparece com a morte do pai e para reforçar os laços entre os membros da comunidade.

 

 

 

A ideia de que o desenvolvimento das sociedades reproduzia o desenvolvimento do indivíduo, há muito tempo que era apelativa. Basta lembrarmo-nos, na sua versão mais simples, da “evidência” tida que as civilizações, tal como os indivíduos, nascem, crescem, desenvolvem-se, atingem um apogeu, declinam e acabam por desaparecer.

A antropologia cultural da época de Freud considerava que a mesma insatisfação e frustração que acontecia na relação familiar de filhos com pais, também teria acontecido nas sociedades primitivas, levando ao assassinato do pai pelos filhos, para assim poderem aceder às fêmeas da horda.

 

Freud também partilha dessa ideia que pretende estabelecer um paralelismo entre as perspetivas ontogenética (relativa ao desenvolvimento do indivíduo) e filogenética (relativa ao desenvolvimento da espécie), como se pode ler no seu Totem e Tabu:

 

O primeiro resultado do que estabelecemos é muito digno de nota. Se o animal totémico é o pai, então, as duas principais proibições do totemismo, as duas prescrições-tabu que constituem o seu cerne – a saber: não matar e não utilizar nenhuma mulher que pertence ao totem para fins sexuais – coincidem com os dois crimes de Édipo, que matou o seu pai e tomou por mulher a sua mãe; e com os dois desejos originários da criança, cujo recalcamento insuficiente ou cujo renascer constitui, talvez, o núcleo de todas as psiconeuroses. Se esta analogia for mais do que uma brincadeira desorientadora do acaso, ela deverá permitir-nos lançar luz sobre a origem do totemismo em tempos imemoriais. Por outras palavras, deverá permitir-nos tornar plausível o fato de o sistema totémico ter resultado das condições do complexo de Édipo …”

 

Para Freud, o aparelho mental dos indivíduos distribui-se por três regiões não topograficamente localizáveis:

 

 o “Id”, que é inato e que corresponde a um inconsciente, onde os processos não são lógicos, onde tudo é possível, onde não há nem bem nem mal, nem noções de tempo (não há antes nem depois, pelo que a qualquer momento se pode manifestar na consciência), nem de espaço, nem de moral, não tendo assim qualquer julgamento de valor;

o “Ego”, consciente originado pela nossa vida psíquica, que corresponde ao nosso estado de vigília (daquilo que percecionamos, desejamos), que nos acompanha em permanência na procura da razão e do bom senso, procurando as melhores circunstâncias para que as intenções do Id se possam concretizar;

 e o “Super-ego”, que se constrói ao longo da infância por um processo de identificação, interiorizando as ‘regras’ de vida, as restrições morais, atuando como juiz relativamente ao Ego, sendo o responsável pelo sentimento de culpa.

 

            O “Id” está ‘dentro de nós’ desde a nascença. O mesmo não se passa com a ‘consciência’, que só depois vai aparecendo. A amoralidade das crianças, que não sofrem de qualquer inibição quanto aos seus impulsos na procura de prazer, é disso exemplo.

            Também o “Super-ego” não é inato e só se vem a constituir após contacto com um poder exterior, a autoridade paterna. É o Super-ego que ‘vai dizer’ ao Ego “faz assim” (como o teu pai), “não faças assim” (há coisas que são só para o teu pai). É o controlo imposto pelo Pai, razão para que o passado e as tradições vivam nas ideologias do Super-ego. Daí considerar-se que a humanidade nunca viva inteiramente no presente.

 

            No seu desenvolvimento, de alguma forma a criança percebe vagamente a estrutura familiar, sem, contudo, ter disso plena consciência. A criança interioriza coisas que percebe de forma confusa, muito mais que racionalmente. A consciência vai-se formando a partir da pressão que a realidade exerce sobre a vida instintiva impedindo a sua satisfação.

 

Normalmente, a criança estabelece uma relação especial com o pai, com a mãe ou quem os substitui. Por volta dos cinco anos, desenvolve uma relação forte com o progenitor do sexo oposto, relação essa que deseja manter em regime de exclusividade.

Esse desejo vai entrar em conflito com a vida familiar e com a vida do casal, o que não lhe é permitido e origina uma forte censura (a figura paterna). Tão forte é esta censura que acaba por ser interiorizada. A criança renuncia assim aos seus desejos interditos, interiorizando essa interdição.

 A instância psíquica que vai representar essa interiorização é o Super-ego, que herda não só as censuras que lhe foram acontecendo até aos cinco anos, como ainda a cultura que os pais receberam. Depois desta aquisição, o seu desenvolvimento vai-se enriquecendo pelas exigências sociais e culturais que vai absorvendo em resultado da educação que recebe.

 

            Podemos agora perceber minimamente porque é que a base da teoria da psicanálise assenta na perceção da resistência que o doente oferece quando se lhe quer tornar consciente o inconsciente.

Esta resistência é atribuída ao trabalho de repressão exercido pelo Super-ego, e é feita quer por si própria quer pelo Ego em obediência a ordens vindas do Super-ego.

O Ego tem assim um trabalho insano ao ter de satisfazer três patrões: o mundo exterior, o Super-ego e o Id, o que faz com que a vida não seja fácil!

 A terapia proposta por Freud consiste em reforçar o Ego, tornando-o mais independente do Super-ego e apropriando-se de mais zonas do Id.

 

Entende-se assim porque é que Freud considera que a cultura assenta num conjunto de restrições da atividade libidinal que constituem experiências do Ego.

Essas experiências são, por um lado revividas pelo Eu de cada um de nós a título individual, e por outro, se forem suficientemente numerosas e fizerem parte de indivíduos que pertençam a gerações sucessivas, transformadas em experiências do Id, passando assim a estarem sujeitas à transmissão hereditária. Esta é a ponte que estabelece a ligação ao passado.

 

Tal como a criança que tem uma relação ambivalente com o pai (pai como objeto de amor e pai como rival que impede a relação exclusiva com a mãe) também a tribo tem idêntica relação para com o Totem.

Na sua forma mais primitiva, a humanidade vivia sob a forma de clã sujeita à autoridade de um chefe, que era o mais forte, o mais velho, o mais protetor, com poder de morte sobre todos e com acesso à posse exclusiva a todas as fêmeas (o “pai primitivo”).

 A frustração e a rivalidade deste sistema de poder geram uma agressividade que leva ao assassinato do pai pelos irmãos. Não se trata de um comportamento animal, porque se o fosse não deixaria um rasto de remorsos. É por isso que vão reparar a ação cometida.

 

Já vimos que, para reparar o ódio (morte) que tem ao pai, o filho vai criar uma entidade que o substitui, o Super-ego, única forma que tem para conseguir viver em paz com o pai.

O clã, para reparar a morte efetiva do pai, vai organizar uma cerimónia sacrificial que inclui a morte do animal totémico e sua ingestão.

 

 A morte do animal totémico não é permitida ao indivíduo. O animal totémico só pode ser morto na altura do sacrifício e apenas é permitida ao grupo, que assume a responsabilidade por essa morte.

 Segue-se a refeição totémica, onde todos comem a mesma comida (tal qual hoje se processa a refeição da família).

Este ritual coletivo serve para canalizar a agressividade natural que não desaparece com a morte do pai e para reforçar os laços entre os membros da comunidade.

 

 

 

Em tempo 1: notar a extrema elegância e honestidade intelectual de Freud, que sabendo não conseguir demonstrar a sua teoria segundo os padrões cientificamente aceites, não se coíbe de o dizer assim:

“Se esta analogia for mais do que uma brincadeira desorientadora do acaso …”

 

Em tempo 2: o próximo blog terá por título “A desculpa do ‘pai primitivo’”, onde serão abordados alguns casos contemporâneos conhecidos que usaram, como desculpa para os seus comportamentos, a figura do “pai primitivo”.

 

 

           

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