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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

O Mundo como Livro ou o Livro como Mundo

“Que fazia Deus antes de criar o mundo?”

 

“E depois de o ter criado, o que ficou Deus a fazer?”

 

“Se cada obra for apenas um fragmento, então teremos não apenas um “antes”, mas também um “depois”.

 

“O ‘livro’ é o que não tem lugar nem dentro do livro, nem no mundo e, por essa razão, ele deve destruir o mundo e destruir-se a si próprio”, G. Manganelli.

 

“Nascemos loucos. Adquirimos moralidade e tornamo-nos estúpidos e infelizes. Depois morremos.” Lawrence Durrell.

 

 

A nossa ideia sobre o que é uma obra e a sua criação, está nitidamente influenciada pelo paradigma teológico da criação divina do mundo, onde não se tratou de fazer matéria, mas de criar a partir do nada. A criação é assim entendida como algo que se realiza instantaneamente, sem hesitação e sem repetição, através de um ato benemérito e imediato da vontade, não sendo precedida de nenhuma matéria.

 

 Pelo que se conclui que, antes de criar o mundo, Deus não precisou de fazer quaisquer esboços, nem de tomar notas.

Segundo uma tradição de origem platónica, isto só seria possível porque Deus tinha já no seu espírito as ideias de todas as criaturas que iria ciar. Não sendo um esboço nem um apontamento era, no entanto, já uma qualquer coisa que precedia a criação, um antes preexistindo a obra que viria a ser realizada.

Já segundo a cabala, o facto de a criação do mundo ter sido feita a partir do nada, significava que o nada era a matéria a partir da qual a criação se fizera, donde concluía que a obra divina era literalmente feita de nada.

 

Afinal: Que fazia Deus antes de criar o mundo?

E depois de o ter criado, o que ficou Deus a fazer?

 

Uma das respostas teológicas era que a criação divina não parara ao sexto dia, mas que continuava infinitamente, porque se Deus deixasse por um qualquer instante de criar o mundo, este destruir-se-ia.

Esta e outras dúvidas e interrogações, desde muito cedo começaram a perturbar os teólogos cristãos. A perturbação era tal que até Agostinho respondia, ironizando ameaçadoramente:

 

 “Deus cortava canas para com elas zurzir todos os que se propunham levantar questões ilícitas.”

 

 

A ecdótica é a ciência que se ocupa da edição dos textos, e é usada pelos editores para tentarem conseguir aquilo que sempre foi a sua máxima ambição: a aproximação do texto o mais possível da sua forma original, conseguindo assim a reconstituição de uma edição critica, única, e, na medida do possível, definitiva.

O pensamento que serve de base a esta ambição dos editores e que os leva a focalizarem-se somente na obra acabada, pronta a ser publicada, tem muito a ver com o paradigma teológico da criação divina do mundo. Assim, tudo o que seja esboço, notas, apontamentos, versões possíveis, estudos, não poderá ser considerado como fazendo parte da obra.

 

Este problema põe-se também para o leitor. Como podem ser lidas as páginas que constituem o embrião de uma obra? Comparando-as com o texto acabado em busca de uma linha evolutiva ou, encarando-as como a fonte mágica de onde brota a obra?

E que dizer daqueles fragmentos de escrita que iriam fazer parte de uma obra acabada, mas que não passaram mais do que isso? Exemplo típico são os cadernos da Kafka, repletos de inícios de obras que aí ficaram sem qualquer continuidade. Devemos lê-los tendo em consideração a obra ausente através de projeções que façamos desses inícios ou, devemos apreciá-los por si mesmos?

 

 

O que está aqui em causa é o de considerarmos, ou não, se existe diferença entre a obra acabada e o fragmento.

 O simples facto de se considerar uma obra como terminada pode não ser suficiente para lhe conferir um qualquer estatuto privilegiado. É assim que muitos dos fragmentos e esboços são tidos como superiores à obra acabada, e há quem considere que é por isso mesmo que muitos autores deixam intencionalmente os seus escritos como fragmentos. Relembremos Miguel Ângelo ao deixar ‘inacabadas’ algumas das suas melhores esculturas consideradas acabadas.

Poderemos mesmo admitir que uma obra que se diga acabada, quer devido a interrupção ou abandono, não seja mais do que um fragmento de um processo criativo potencialmente infinito. E, a ser assim, a obra dita acabada só acidentalmente se poderia distinguir da obra dita inacabada.

Cada obra passaria então a poder ser considerada com sendo apenas um fragmento, pelo que passaria a haver não só um “antes”, mas também um “depois”.

Só esta noção é que nos permitirá entender o aparecimento de obras que são rescritas pelos próprios autores, o que pressupõe que os autores possam continuar a escrever livros já por eles anteriormente escritos, como se a obra dita acabada não passasse afinal de um fragmento de uma obra sempre em curso acompanhando o desenrolar da própria vida.

 

Três exemplos notáveis: Agostinho e as suas Retratações, onde, três anos antes da sua morte, vem humildemente emendar defeitos, imprecisões, e esclarecer os sentidos das suas obras; Nietzsche e o Ecce homo, onde vai percorrer os “bons livros que escrevi”, dando indicações não só sobre a sua génese, mas também  dizendo como deviam de ser lidos, explicando-os; e o caso de Bonnard, o pintor que entrava com um pincel nos museus onde as suas obras estavam expostas e conservadas, para as retocar e aperfeiçoar.

 

Há ainda casos mais singulares como o livro Petróleo de Pasolini que contém 133 fragmentos numerados, seguidos de notas críticas e uma carta dirigida a Alberto Morávia, em que ele explicava como tinha concebido aquele romance que “não tinha sido escrito como se fosse um romance normal”. Ou seja, o autor deixa-nos um livro em forma de edição crítica de um romance que ainda não tinha sido escrito! Ainda por cima acabaria por ser póstumo.

Como deveremos ler esse romance não só não publicado como nunca feito: com base nos fragmentos deixados acabados, ou estes em função do romance nunca feito?

 

Mas o grande mestre da indistinção entre obra, criação, fragmento, foi (é) sem dúvida Mallarmé (1842 – 1898) e o seu Livro. O seu projeto (dele sobraram 202 folhas manuscritas, frases nunca terminadas, palavras soltas, números, cálculos, gráficos, instruções sem aplicação prática para a sua leitura, todas elas esforçada e meticulosamente reconstituídas e contextualizadas por Jacques Scherer) era conseguir fazer um livro absoluto, totalmente objetivo, que fosse um reflexo do mundo, um livro concebido como uma estrutura extremamente flexível que conteria “a totalidade das relações existentes entre todas as coisas”, uma vez que “o mundo existe para acabar por ser um livro”.

 

Para que tal livro fosse possível, a condição essencial era eliminar o acaso em todos os níveis do processo literário. Começando pelo autor, uma vez que “a obra pura implica a desaparição elocutória do poeta, que cede a iniciativa às palavras”. Por isso, Mallarmé não se considerava com autor do Livro, mas apenas um simples executante “impessoal”, “uma forma que o Universo Espiritual tinha de se ver e de se desenvolver pela minha interposta pessoa”.

 O próximo passo seria eliminar o aleatório das palavras, uma vez que cada palavra resultava da união de um som e de um sentido. Tal far-se-ia pela inclusão de “vários elementos vocais que acabariam por refazer uma palavra total, nova, estranha à linguagem”.

O próprio formato do Livro teria também de ser alterado. Para conseguir que ele fosse absolutamente coerente, desenvolveu imensos cálculos respeitantes ao número de volumes, dimensões de cada volume relativamente ao conjunto (se empilhados ou alinhados, se vistos de face ou de perfil), número de páginas (igual número para cada volume), número de carateres impressos por página (a mancha da superfície negra da impressão deveria equilibrar-se com a superfície da mancha branca não impressa), e por aí.

 

Para retirar o carater estático normal dos livros, cada volume deveria conter folhas móveis que deveriam ser deslocadas segundo certas combinações de dados, não sendo prescrita qualquer sequência de leitura, o que permitiria que qualquer leitor se colocasse na função de coautor. Se vivesse hoje, certamente Mallarmé seria o primeiro a comprar um smartphone e a navegar nas redes sociais.

 

Para conseguir isso, era sua intenção que qualquer escolha de um conjunto de folhas formasse por si só não apenas um conjunto coerente, mas que pudesse também vir a transmitir um novo sentido à obra sem que com isso viesse retirar qualquer sentido aos conjuntos de folhas anteriores, acrescentando-lhes até mais clareza.

 

 O resultado pretendido seria o da revelação de uma verdade única, mas de múltiplas facetas.

 

Só assim o Livro tornaria um objeto vivo, um teatro. Teatro do mundo, imaginado por Mallarmé a ser representado perante audiências escolhidas. Deveria ser como uma espécie de performance, em que vinte e quatro leitores-espetadores (doze homens e doze mulheres) teriam vinte e quatro folhas diferentes à sua disposição, aleatoriamente distribuídas e (des)ordenadas. A instituição de um culto moderno.

Para além deste livro ser como que a soma de todos os livros existentes, teria ainda possibilidades infinitas de entradas para a sua leitura.

Tudo isto vai fazer com que o livro nos apareça como qualquer coisa muito menos sólida e permanente do que estamos (estávamos) habituados a pensar. Neste aspeto, ele identificar-se-ia plenamente com o mundo.

 

E este é um problema muito interessante: a ser assim, não teria afinal Mallarmé conseguido alcançar a sua intenção de fundir o Livro com o mundo?

Dir-me-ão: mas, não será o projeto de um Livro como este sempre impossível de acabar? A pergunta a fazer deveria ser outra: o que aconteceria ao mundo no qual uma única obra de literatura abolisse toda a literatura que o precedesse, se por acaso fosse possível acabá-lo?

Acabaríamos por estar perante um ‘livro-mundo’ que, com a pretensão de se identificar com o mundo, iria consumir e eliminar tudo o que fosse o livro e o mundo.

 

Como dizia Giorgio Manganelli (Nuovo Commmento):

 “O ‘livro’ é o que não tem lugar nem dentro do livro, nem no mundo e, por essa razão, ele deve destruir o mundo e destruir-se a si próprio”.

 

Um fim do livro do mundo e do mundo livro, em qualquer dos casos sempre bem de acordo com a tradição cristã de fim do mundo. Muito curioso.

 

Escrevia Lawrence Durrell no Monsieur ou o Príncipe das Trevas:

 

 “Nascemos loucos. Adquirimos moralidade e tornamo-nos estúpidos e infelizes. Depois morremos.”

 

 

 

 

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