O "Futurismo" presente
“Museus: dormitórios públicos onde se jaze para sempre junto de outros seres desconhecidos ou odiosos. Museus: absurdos matadouros de pintores e escultores que se despedaçam furiosamente entre si por cores e linhas e por lugares em paredes!”, Manifesto do Futurismo, Marineti.
“Nós glorificamos a guerra – a única higiene do mundo – o militarismo, o patriotismo, o gesto destrutivo de quem nos traz liberdade, as ideias belas pelas quais vale a pena morrer, e o desprezo pelas mulheres.”, Marineti.
“América Primeiro” e “Fazer de novo a América grande”, D. Trump.
“Hegel observa algures que todos os grandes acontecimentos e personagens da História mundial sobrevêm, por assim dizer, duas vezes. Esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, e a segunda como farsa”, Karl Marx.
Há muito quem diga que “a história se repete”, querendo talvez com isso dizer que o Sol, como sempre tem nascido ao longo da história, irá certamente nascer amanhã. Não era bem com essa intenção que Hegel dizia que a História se repetia incessantemente, mas, mesmo assim, Marx não se escusou de o corrigir n’ O 18 de Brumário de Luís Bonaparte:
“Hegel observa algures que todos os grandes acontecimentos e personagens da História mundial sobrevêm, por assim dizer, duas vezes. Esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, e a segunda como farsa”.
Quando a 20 de fevereiro de 1909, Filippo Tommaso Marineti publicou no francês Le Figaro (http://www.unknown.nu/futurism/manifesto.html) o Manifesto do Futurismo, nada fazia prever o seu posterior alinhamento com o fascismo de Mussolini, sendo antes este seu primeiro manifesto entendido como um hino a favor de um movimento artístico e cultural, uma estética de modernidade com base na visão tecnológica do que a sociedade do futuro deveria ser, uma mudança radical já então possível ao dispor dos corajosos, tendo como finalidade
“libertar este país do cheiro putrefacto da gangrena de professores, arqueologistas, cicerones e antiquários. Já por muito tempo tem a Itália sido um comércio de roupas em segunda mão. Queremos libertá-la dos seus inúmeros museus que a cobrem qual cemitérios.”
Muito embora o Manifesto tenha sido escrito em francês, Marinetti era um profundo nacionalista italiano, que sentia que os valores imbuídos do Renascimento, da Roma antiga e de todo o seu passado clássico, estavam a impedir a Itália de progredir, fazendo-a olhar sempre para o passado, ignorando aquilo que o futuro lhe poderia oferecer.
A começar pelo campo da arte e literatura, para que este seu rejuvenescimento cultural se pudesse concretizar, propunha começar por incendiar todas as bibliotecas, por inundar todos os museus e academias, única forma que via para se quebrarem quaisquer ligações a um passado que entendia pestilento. No ponto 10 do seu Manifesto, lê-se:
“10. Nós destruiremos os museus, as bibliotecas, as academias, combateremos o moralismo, o feminismo, e qualquer cobardia utilitária ou oportunista.”
E, passa a explicitar mais à frente:
“Museus: dormitórios públicos onde se jaze para sempre junto de outros seres desconhecidos ou odiosos. Museus: absurdos matadouros de pintores e escultores que se despedaçam furiosamente entre si por cores e linhas e por lugares em paredes!”
“E, o que é que há para ver numa pintura antiga exceto as laboriosas contorções de um artista que se atira ele próprio contra barreiras que lhe impedem o seu desejo de exprimir completamente o seu sonho?...Admirar uma pintura antiga é como deixar incidir a nossa sensibilidade sobre uma urna funerária em vez de a afastar para longe num violento espasmo de ação e criação.”
Como futurista, ele é um firme crente da componente tecnológica, daí o acreditar na velocidade como necessária à alteração do tempo, à entrada numa nova era de progresso. Anote-se que, em sentido inverso e exatamente na mesma altura, começava Proust a escrever Em busca do tempoperdido(veroartigohttp://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/em-busca-do-tempo-perdido-12502 ).
A exaltação de Marinetti perante a velocidade dos automóveis, dos barcos a vapor e das locomotivas, leva-o a não hesitar em considerar a beleza de um carro de corridas como superior à da famosa Vitória Alada de Samotrácia:
“4. Afirmamos que a magnificência do mundo foi enriquecida com uma nova beleza: a beleza da velocidade. Um carro de corridas com o capô adornado com grandes tubos, quais serpentes com um bafo explosivo – um carro a rugir como se estivesse a expelir metralha é mais bonito que a Vitória de Samotrácia.”
Recordemos que à época até as bicicletas eram consideradas como fazendo parte da alta tecnologia (nos exércitos de então, os esquadrões de reconhecimento avançado eram constituídos por soldados-ciclistas), pelo que não nos deve causar estranheza essa predileção pelos carros de corrida e outros meios de transporte velozes.
É assim que a parada de 600 ciclistas voluntários para a guerra que se realizou em julho de 1915 em Milão, e onde pedalam juntamente com Marinetti outros famosos futuristas como Umberto Boccioni, Mario Sironi, Antonio Sant’Elia e Luigi Russolo, tem de ser vista como uma manifestação de vanguarda.
Com o aproximar da Guerra (agosto de 1914), Marinetti vai ser dos seus primeiros apoiantes, incitando a Itália que se declarara neutral (só se junta aos Aliados em maio de 1915) a entrar nela, porquanto para ele a guerra funcionaria como uma purga que faria com que a Itália e a Europa perdessem o lastro do passado que as impedia de progredir. Como aliás já constava do seu Manifesto:
“9. Nós glorificamos a guerra – a única higiene do mundo – o militarismo, o patriotismo, o gesto destrutivo de quem nos traz liberdade, as ideias belas pelas quais vale a pena morrer, e o desprezo pelas mulheres.”
Há um Manifesto bastante posterior (sempre que Marinetti se queria manifestar sobre qualquer coisa, publicava um novo Manifesto) relativo à guerra colonial que a Itália impôs à Etiópia, em que esta sua posição sobre a guerra fica mais clara:
“Há vinte e sete anos que nós, futuristas, nos manifestamos contra o fato de se designar a guerra como antiestética … por conseguinte, declaramos: … a guerra é bela porque fundamenta o domínio do homem sobre a maquinaria subjugada, graças às máscaras de gás, aos megafones assustadores, aos lança-chamas e tanques. A guerra é bela porque inaugura a sonhada metalização do corpo humano. A guerra é bela porque enriquece um prado florescente com as orquídeas de fogo das metralhadoras. A guerra é bela porque reúne numa sinfonia o fogo das espingardas, dos canhões, dos cessar-fogo, os perfumes e odores de putrefação. A guerra é bela porque cria novas arquiteturas, como a dos grandes tanques, a da geometria dos aviões em formação, a das espirais de fumo de aldeias a arder, e muitas outras … poetas e artistas do futurismo … lembrai-os destes fundamentos de uma estética da guerra, para que a vossa luta possa iluminar uma nova poesia e uma nova escultura!”
Quando a guerra acaba em 1918, os Futuristas passam a um período de intensa atividade política: formam o Partido Político Futurista, (https://it.wikisource.org/wiki/Manifesto_del_Partito_Politico_Futurista_Italiano), e forjam uma aliança com Benito Mussolini.
Logo à cabeça, o Manifesto do Partido político Futurista proclama a intenção do Partido: “Fazer de novo a Itália grande”.
A sua religião era a do “amanhã”, com propostas que iam desde a abolição do senado e sua substituição por homens de ciência, à dissolução da instituição do casamento.
Nas eleições de 1919 em Milão, não chegam a obter 2% dos votos. Marineti decide retirar-se da política parlamentar. Contudo, continua a intervir nos assuntos políticos e a manter relações com o movimento fascista de Mussolini, acentuando-as até depois de 1924.
Muitos dos Futuristas distanciam-se então do movimento, exatamente por isso. Outros não, pelo que muito da arte utilizada pelo regime fascista tem um cunho do estilo futurista. Vejam-se algumas das pinturas do ditador (http://fascionable.blogspot.pt/2012/02/futurist-mussolini.html).
Esta associação com o fascismo acabou por manchar toda a arte futurista, obscurecendo algumas das suas realizações. Mas, a sua permanência e influencia tem-se vindo a fazer sentir até hoje, desde a sua aplicação em cartazes e no marketing publicitário, às gravuras e têxteis, encontrando-se até presente em quadrantes que não julgaríamos possíveis, como nas formas dos automóveis e em moedas, o que nos demonstra a sua forte ligação com a cultura italiana.
Chris Bangle, o projetista-chefe da BMW criador do Z4 Coupé, admite que só conseguiu perceber o que era a quarta dimensão, “a do vento”, através da inspiração que recolheu das esculturas de Boccioni. Foi isso que lhe permitiu fazer com que o Z4 pareça estar a movimentar-se, “mesmo quando está parado” (http://www.smithsonianmag.com/arts-culture/how-futurist-art-inspired-the-design-of-a-bmw-160900416/).
Também a moeda de 20 cêntimos de Euro que hoje circula, tem, numa das faces, a reprodução de uma escultura de Boccioni de 1913, Formas únicas de continuidade no espaço. Além de ter sido um dos expoentes artísticos do Futurismo, a sua escolha tem também certamente que ver com o facto de a sua morte ter ocorrido (1916) muito antes do aparecimento do fascismo, e talvez até por a sua morte não ter ocorrido no campo de batalha, e não ter tido nada de heroica: caiu do cavalo num treino de equitação.
No campo da política, a persistência do Futurismo nos tempos de hoje são por demais evidentes e atuais. Basta lembrarmos Trump e as suas divisas:
“América Primeiro” e “Fazer de novo a América grande”.
Nada que os seus povos não desejem. O problema é como se o faz, e à custa de quem.
Como ao longo do século XX estes ressurgimentos já apareceram quer como tragédia, quer como farsa, é com enorme curiosidade que aguardo o seu desenvolvimento prático, tendo sempre presente aquele nosso ditado de que “quando o mar bate na rocha, quem se dá mal é o mexilhão”.
Nota: O Guggenheim Museum de Nova Iorque fez em 2014 uma grande exposição intitulada Futurismo Italiano (1909-1944). A reconstrução do Universo, onde expôs 360 obras de 80 artistas, algumas das quais se podem ver em https://www.google.pt/search?q=Futurismo+Italiano+(1909-1944).+La+reconstrucci%C3%B3n+del+Universo&client=firefox-b&sa=N&tbm=isch&tbo=u&source=univ&ved=0ahUKEwjEtYyGp-jSAhUHrRQKHcd_DqU4ChCwBAgX&biw=661&bih=710