O fim do Tempo inglês
“No ano 2100 a hora inglesa terá uma diferença de três minutos relativamente à dos outros países.”
“O que é o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quero explicar a quem me pergunta, não sei”, Santo Agostinho.
“Afrodite, deusa do desejo da união entre o diferente. Até hoje.”
“Cada dia, cada instante é a porta pequena pela qual entra o Messias”, Walter Benjamin.
O rápido desenvolvimento dos meios de transporte e das comunicações originaram grandes confusões com os horários e tempos de espera, instalando o caos nas transações e levando a enormes perdas para as empresas. Tudo isso porque não havia um referencial único a partir do qual se pudesse entrar em consideração com os tempos de percurso. Para resolver tal situação resolveu-se em 1884 promover em Washington, Columbia, EUA, uma Conferência Internacional do Meridiano, onde se decidiu tomar como base para a contagem do tempo, a hora do meridiano que passava por Greenwich, Inglaterra, passando esse tempo a ser conhecido como Tempo Médio de Greenwich (GMT) ou Tempo Universal (UT).
E assim fomos cientificamente vivendo até que devido à introdução dos relógios atómicos (baseados nas 9.192.631.770 oscilações por segundo do átomo de césio-133) se concluiu que a Terra, devido a variações das marés oceânicas, da calote de gelo e na dinâmica peculiar do seu núcleo, tinha tendência a travar o seu movimento de rotação. O dia solar médio atrasava-se um par de milésimas de segundo!
Com base no relógio atómico, a partir de 1967 passou a existir uma nova escala do tempo, o Tempo Atómico Internacional que acabou por dar origem ao tempo de referência mundial atualmente utilizado, o Tempo Universal Coordenado (UTC).
Só que no entretanto continuou a usar-se o Tempo Médio de Greenwich, o que obrigou que a partir de 1972 sempre que o atraso verificado na rotação da Terra fosse superior a 0,9 segundos, se deveria introduzir um segundo intercalar. A introdução desse segundo intercalar ficou à responsabilidade do diretor do Centro de Orientação da Terra do Serviço Internacional de Rotação da Terra e de Sistemas de Referência do Observatório de Paris.
Até agora já foram adicionados 26 segundos, o último dos quais ainda este ano, às23 horas, 59 minutos e 59 segundos do dia 30 de Junho. Julga-se que na próxima conferência a realizar em Genebra, se decida pela supressão definitiva destes acertos, estabelecendo em seu lugar uma escala contínua do tempo de acordo com o UTC. Se os ingleses insistirem em manter o “seu” Tempo Médio de Greenwich, o que lhes acontecerá é que no ano 2100 a sua hora estará desfasada três minutos relativamente às horas dos outros países. Tenham isso em atenção quando lá forem.
Mas a Ciência introduziu ainda problemas adicionais quando, no início do século passado, considerou a possibilidade do tempo não ser único, dependendo da velocidade de deslocação do móvel em que nos encontrássemos, num espaço que também se deformava. Amarrado ao espaço e ao movimento, num universo que se crê multidimensional e em expansão não se sabe para onde, tudo se torna muito mais complicado de entender. Ou seja, explicados os mecanismos, continuamos na mesma sem saber o que é afinal o tempo.
Recuemos até à Grécia Antiga para tentarmos perceber como seria encarado este problema do tempo. Vamos encontrar essa explicação na Teogonia de Hesíodo, onde ele nos conta como para os gregos o mundo se iniciou, o mito cosmogónico helénico.
Tudo começara com o Caos, uma forma sem forma, espaço absoluto que tudo contém mas numa tal confusão e desordem que se tornava impossível discernir o que quer que fosse. O simples facto da consideração da sua existência é muito importante pois é esse simples facto que contraria o nada absoluto. Sem o Caos era o Nada. Daí que tudo seja proveniente do Caos.
Embora fosse chamado de Caos, tal não significa qualquer distinção sexual. Não que fosse ‘amorfo’, porquanto nele existia um ‘impulso’, Eros, para que deixasse de reinar a confusão. É este impulso que vai fazer surgir a partir do Caos a primeira forma real distinta: a Terra ou Gaia. Estamos aqui a assistir ao aparecimento da necessidade de uma qualquer ordem e portanto da possibilidade de um sentido, ou seja, ao aparecimento de uma forma própria de racionalidade, de um ‘logos’.
A criação de outras formas posteriores diferenciadas que dariam origem ao cosmos será feita pela ‘caminhada’ de Eros sobre a Terra, da Terra como Mãe universal. Este ‘impulso’ de Eros sobre a Terra vai gerar Ouranos (o céu) e Pontos (a água que vai preencher todos os lugares vazios da Terra). Ao passo que Pontos ficará sempre íntimo da Terra penetrando-a simbioticamente, o Céu, na medida em que por cima dele não há nada, só se conseguirá expandir para o interior da própria Terra.
E assim o faz. Dessa ‘penetração’ da Terra vão originar-se novas entidades, nomeadamente doze irmãos, os Titãs e as Titânides (Oceano, Cós, Hiperíon, Crio, Jápeto, Cronos e Tétis, Febe, Tia, Euríbia, Ásia, Reia). O mais velho é Oceano e o mais novo é Cronos, o tempo.
Como entre o Céu e a Terra não havia qualquer separação pois o Céu cobria totalmente a Terra, as entidades geradas estavam condenadas ao absoluto das trevas, impedidas de verem a luz do dia, e portanto condenadas a não poderem ser.
Esta prepotência do céu indignava profundamente a Terra, que vai conceber um plano para libertar as suas gerações. Fabrica uma lâmina de metal, uma foice (podemos ver aqui o início mítico de toda a indústria e cultura material, para a qual o martelo não era tão prioritário) que dá ao seu filho Cronos para que ele castre o pai, libertando assim a mãe e os irmãos.
Castrado, o Céu ruge de dor e afasta-se definitivamente da Terra, dando origem ao nascimento de um verdadeiro espaço não só físico, limitado, onde a medida toma o lugar do que era imenso, sem-medida, mas que vai propiciar a possibilidade do desenvolvimento do ser. Nasce ali o sentido do presente marcado pelas gerações de cuja combinação se originaram as presentes, e o sentido do futuro marcado pela possibilidade combinatória das gerações atuais. Uma ordem de movimento que o tempo mede. “A castração do Céu abre o espaço, desbloqueia o tempo”.
Apesar de as nossas mentes científicas e apressadas de agora não se aperceberem da profunda validade estritamente humana desta conceção, ela continua a estar muito presente na nossa sociedade. Se atentarmos bem, ela prevê por exemplo que o princípio de tudo fosse por partenogénese (Caos, Eros, Terra), só depois impondo a filiação como paradigma (Eros, Terra); é nela que aparece a metáfora do “dar à luz”, “ver a luz do dia”; e é ainda nela que aparece a luz como fonte do conhecimento essencial para a afirmação do ser. E se continuássemos a ler o mito, acabaríamos por assistir ao episódio do nascimento de Afrodite: quando Cronos castra o Céu, atira o membro castrado para o mar, e da mistura entre o sémen do Céu e da água do mar vai nascer Afrodite. Por isso ela é a deusa do desejo da união entre o diferente. Até hoje.
Vai ser Aristóteles o primeiro a considerar o tempo como uma propriedade da natureza. Na sua Física, vai defini-lo como a medida do movimento entre um antes e um depois. E vai também ser o primeiro a distinguir a separação do tempo entre o tempo da alma e o tempo da natureza, entre o tempo do homem e o tempo do mundo.
Uma vez que o tempo aparecia expresso por um número, como poderia Aristóteles conciliar a existência destes dois tempos? É exatamente por ser um número que ele só poderá existir na alma, uma vez que os números só poderão ter uma realidade inteligível ou mental na alma. Só portanto o homem enquanto dotado de alma poderá pensar e representar o tempo. O que não impede que o tempo seja uma realidade objetiva. Estava feito o truque.
Até aqui todos estes tempos pressupõem sempre um deslocamento retilíneo para a frente, no sentido de qualquer coisa que lá se venha ou não a encontrar ou estar. De certa forma constitui já um avanço sobre o tempo encarado como cíclico, de um constante regresso ao início, o tempo das estações do ano, o tempo do que nasce, cresce e fenece, seja o humano, sejam as suas instituições.
Não é pois de estranhar que o tempo cristão nos apareça também como um tempo retilíneo, com uma progressão que vai do aparecimento de Cristo até ao apocalipse final. Mas será mesmo assim?
Para grande parte dos seus seguidores, a morte de Cristo e o dia do seu regresso para o juízo final e instauração do seu reino na Terra, foi sempre entendido como um tempo cronológico durante o qual eles aguardavam como eminente a vinda do Messias e o fim dos tempos. Para os seus seguidores foi sempre intolerável o Messias não se ter imposto como rei universal dos tempos do fim, mas ter saído como criminoso lastimosamente executado. Tal só poderia ser amenizado graças ao anúncio de um próximo regresso do Senhor na sua majestade, visível para todos, libertadora para os crentes, tremenda para os adversários.
É por isto que no começo do pensamento histórico cristão encontra-se a transformação do tempo do mundo num tempo de espera, naquele pequeno tempo de espera entre a crucificação e o reaparecimento do Messias.
A primeira geração de cristãos morreu com a pergunta: como se pode entender que Cristo não apareça? A geração seguinte teve de aprender a contar com espaços de tempo maiores e a transferir a parusia para o tempo dos netos e bisnetos. Tornava-se então premente saber se mesmo os cristãos não se deviam meter nos negócios deste mundo. Há medida que o tempo foi passando e o Messias se ia ‘atrasando’, os que assim esperavam foram-se instalando numa organização institucional e juridicamente estável, idêntica a qualquer outra instituição mundana. Com consequências.
Ciente dessa situação, Clemente inicia a sua epístola aos coríntios com a frase: “Da Igreja de Deus que se hospeda em Roma à Igreja de Deus que se hospeda em Corinto”. Não é por acaso que utiliza o termo “que se hospeda”. Como faz notar Agamben, “que se hospeda” (do grego paroikoûsa) significa que essa é uma morada provisória do exilado, do colono ou do estrangeiro, e é exatamente essa a morada do cristianismo no mundo. O termo “hospedagem” nada tem a ver com a sua duração cronológica.
A hospedagem da Igreja na terra pode durar séculos, milénios, sem que isso altere a natureza particular da sua experiência messiânica do tempo. E isto porque o tempo do Messias nada tem a ver com a duração cronológica, uma vez que ele é sobretudo, uma transformação qualitativa do tempo vivido.
Todos aqueles que se instalem, aguardando pela chegada do fim do tempo, perderam a experiência messiânica do tempo que a define e lhe é consubstancial. O importante não é o fim do tempo mas o tempo do fim, o tempo que se contrai e começa a terminar no qual viver as coisa últimas significa viver de outra maneira as coisas penúltimas.
Deve ser este o verdadeiro tempo do cristianismo, “o tempo da parroquia” (“ho khrónos tês paroikias” segundo Pedro, 1 Pt 1, 17), tão diferente do tempo linear e cronológico vulgarmente assumido. Não deixa pois de ter razão Aristóteles ao fazer-nos notar a dualidade ou as polaridades com que o tempo se nos apresenta. Continuamos no entanto sem saber o que é o tempo.
Daí que, apesar de sabermos que o que Santo Agostinho pretendia era realçar a subjetividade do tempo, porquanto a sua preocupação era a tentativa de estabelecer a articulação do tempo com a eternidade para conseguir encontrar respostas para questões que se punha, como por exemplo, o que é que Deus fazia antes da criação, ou se já então haveria tempo, a sua interrogação permanecer ainda hoje viva:
“O que é o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quero explicar a quem me pergunta, não sei”.