O "faroeste" instalado
Segundo a tradição, sempre que a humanidade, representada pelo povo eleito, se desviava muito dos seus fins (a criação do reino de Deus na Terra), Deus intervinha para nos pôr no caminho certo.
Podemos ter democracia ou podemos ter riqueza concentrada em poucas mãos, mas não podemos ter ambas as coisas”, Louis Brandeis, Juiz do Supremo Tribunal Americano.
“Pobres, são hoje todos os consumidores falhados numa sociedade de consumidores, e onde também se incluem os desempregados e os reformados”.
“Os organismos estatais e paraestatais encarregados de lidar com o problema da pobreza são cada vez mais agências de registo, de vigia e de disciplina, que mantêm os pobres identificados, isolados e separados do resto da sociedade”.
Segundo a tradição, sempre que a humanidade, representada pelo povo eleito, se desviava muito dos seus fins (a criação do reino de Deus na Terra), Deus intervinha para nos pôr no caminho certo. Desde logo começou a Sua intervenção com a criação, primeiro (evidentemente) do homem e depois a da mulher, a que se seguiu o aviso meteorológico a Noé, a destruição de Sodoma e Gomorra, a entrega das pedras dos Mandamentos, e finalmente pela colocação do Seu Filho na Terra, para desgosto do povo eleito.
Muitas foram as interrogações e as querelas relacionadas com estas intervenções: sendo Deus tão perfeito, para que precisava de ter criado o homem? Sentia-Se sozinho? Sendo o universo infinito e criação Sua, para quê preocupar-Se com o homem? Sabendo tudo o que iria acontecer, porque não o criou de forma a impedir os seus desvios? Qual o Seu grau de preocupação com o homem? Quando intervém? Porque teve de mandar o Seu Filho à Terra?
Interrogações como estas, e muitas outras, deram origem a diversas interpretações, heterodoxias, religiões, filosofias, muitas guerras e muitas atrocidades. De certa forma todas elas tinham, contudo, em comum a crença na existência de um Poder superior, que de certa maneira estaria atento ao que se passava cá em baixo, pronto a intervir, muito embora não se soubesse quando, até porque os desígnios do Senhor são insondáveis e não compreensíveis pelas nossas mentes limitadas. Não é possível ao limitado compreender o ilimitado. Há que ter fé.
Como a intervenção divina foi sendo, para além dos casos citados, cada vez mais escassa, esparsa e avulsa, limitando-se a pequenas intervenções localizadas, tal fez com que no início da Idade Moderna os povos se julgassem abandonados e entregues a si próprios.
Segundo a versão idílica, os povos viram-se forçados a preencher esse vazio, substituindo a fé numa intervenção divina por regulamentos normativos, e a insegurança existencial pelo estado de direito, tentando garantir a todos os membros da sociedade uma segurança contra os riscos de vida, protegendo ainda individualmente todos aqueles que fossem menos afortunados.
A Revolução Americana e a Revolução Francesa fizeram parte desse enorme esforço no sentido de construir laços de união entre os seres humanos, lançando as bases para uma solidariedade social.
Segundo a versão mais real, devido às enormes conquistas territoriais e ao aparecimento da indústria para as massas (‘Fordismo’), tornou-se necessário, em nome desses ‘interesses vitais’ da sociedade, a criação de um ‘exército de reserva’ de soldados e trabalhadores que pudessem garantir o funcionamento sem sobressaltos desses sistemas.
Bismarck (1815 – 1898) na Alemanha e Lloyd-George (1863 – 1915) na Inglaterra, favoreceram a solução que iria permitir que os trabalhadores desempregados e os soldados na reserva pudessem vir a serem rapidamente reintegrados, quer nas fábricas quer nos exércitos.
A solução passava pelo pagamento de uma pequena contribuição que permitiria aos trabalhadores e soldados fora de serviço, não passarem fome mantendo-se regulamente alimentados, de boa saúde, e viverem em condições minimamente decentes. Foi assim que se deu o aparecimento do ‘estado social’, que até hoje, em maior ou menor escala, tem estado sempre presente nas sociedades humanas desenvolvidas.
Um estado é ‘social’ quando promove o princípio de comunidade, de segurança coletiva contra o infortúnio pessoal e suas consequências.
Uma sociedade só é uma comunidade se proteger efetivamente os seus membros contra a miséria e indignidade, contra o terror de virem a ser excluídos e de serem considerados como lixo.
Ainda em 2004 se podia ler no programa do partido social-democrata da Suécia:
“Há sempre uma altura em que uma pessoa é frágil. Por isso necessitamos uns dos outros. Vivemos a nossa vida entre o aqui e agora, juntamente com outros, apanhados no meio de mudanças. Todos seremos mais ricos se permitirmos que todos participem não deixando ninguém ficar fora. Todos nós seremos mais fortes se houver segurança para todos e não somente para alguns”.
Hoje em dia, decorridos pouco mais de 12 anos, estas declarações parecem relíquias de um passado longínquo. Hoje em dia, tudo isso está a ser substituído por uma ‘cultura de caridade, humilhação e estigma’.
Os pobres (ou seja, todos os consumidores falhados numa sociedade de consumidores, e onde são incluídos os desempregados e os reformados) são ostracizados por não terem as capacidades que deviam de ter, por serem preguiçosos, e essencialmente por serem um peso para o sistema que assim não pode avançar ou não avança tão rapidamente como poderia fazer se não os tivesse (na linha daquela sinistra teoria levada à prática contra judeus, ciganos, deficientes, comunistas, pretos, etc.).
Os organismos estatais e paraestatais encarregados de lidar com o problema da pobreza são cada vez mais agências de registo, de vigia e de disciplina, que mantêm os pobres identificados, isolados e separados do resto da sociedade.
Como foi isto possível? Para além da habitual e previsível ganância do sistema económico, há um outro fator que tem, sabiamente e sabidamente, andado a ser promovido: a ideia da ‘liberdade de escolha’.
Num recente artigo (Segregação extrema no Estado de Nova Iorque) de Gary Orfield e John Kucsera publicado pela UCLA (Universidade da Califórnia – Los Angeles) conclui que, 60 anos depois da grande vitória legal (Brown x Board of Education) contra a separação nas escolas entre negros e brancos, as escolas americanas estão hoje mais segregadas que há 40 anos, sendo a progressista Nova Iorque o epicentro dessa segregação racial educativa!
Segundo Orfield, “estamos perante um problema legal, político e institucional que determina uma enorme diferença de oportunidades entre uns e outros estudantes” proveniente de uma falta de vontade em assumir essa profunda desigualdade e a ausência de um trabalho sério a favor da integração.
Atualmente, 64% dos estudantes negros de Nova Iorque têm aulas em escolas muito segregadas (uma escola diz-se ‘segregada’ se tiver 50% a 100% de alunos negros; ‘muito segregada’ se tiver 90% a 100%; e ‘escola apartheid’ se tiver 99% a 100%).
Embora o Tribunal tenha dito que a separação escolar por raças não era legal, nada impede que, pela ‘liberdade de escolha’ individual, uma escola possa ter 100% de alunos negros!
A possibilidade de escolher aumenta a segregação. Mas as pessoas sentem-se cómodas com isso. Mesmo sabendo (?) que essa separação conduzirá fatalmente a uma desigualdade. É um regresso à ideia de ‘separados, mas iguais’. Só que a igualdade nunca é alcançada!
Kenneth Galbraight (1908 – 2006) já notara que, à medida que os direitos sociais se foram universalizando, começaram a aparecer cada vez maior número de utilizadores dos direitos políticos que, através dos seus votos, têm tendência a aderirem e a apoiarem iniciativas individuais que vão contra os projetos comuns da sociedade, originando com isso um aumento da desigualdade.
Para esta ‘maioria’ de pessoas contentes com o sistema, com a possibilidade de o poderem cavalgar, confiantes nos seus próprios recursos, o ‘estado social’ aparece-lhes como um estorvo e não como uma segurança.
Esta ‘liberdade de escolha’ erigida como direito fundamental poderá via a dar origem à destruição da liberdade de todos, sempre em nome da proteção aos direitos individuais.
É assim que, em nome dessa liberdade de escolha, vemos com bons olhos, por exemplo, a separação entre os interesses dos negócios e os das instituições socioculturais que os deviam eticamente supervisionar.
Aceitamos pacificamente que os negócios, independentemente de outros valores, devam apenas visar a maximização do lucro sem quaisquer restrições.
E, tal como já se passou anteriormente, os resultados serão os mesmos: aumento rápido da miséria, pobreza, famílias destruídas, esfacelamento dos laços humanos, e o aparecimento de uma nova ‘terra de ninguém’ livre de quaisquer regulamentações e supervisão administrativa, salvo a presença esporádica de um ou outro ‘xerife’ de organismos internacionais interessados exatamente em manter essa ‘ordem’.
Como notara Z. Baum:
“O ´faroeste’ como ideal e espaço de liberdade para quem saiba manejar as pistolas”.
Tomemos outro exemplo mais visível (por estar à vista de todos) dos “paraísos fiscais”, os offshore: muito se caminhou na segunda metade do século anterior e, contudo, nunca foi o suficiente para se resolver o problema.
Com tantas boas vontades, com tantos políticos, economistas, legisladores, inúmeros Organismos e Conferências regionais, nacionais, planetárias, eles aí continuam. O seu número foi sempre aumentando, ‘democratizando-se’: até Portugal tem um na Madeira.
Finalmente, a partir de 2008 começou-se a equacionar o problema da sua regulamentação, muito embora logo nos tenham advertido da dificuldade extrema que o assunto encerrava, notando ainda que qualquer ação só resultaria se todos, mesmo todos (mas todos, quem?), aplicassem as medidas corretivas que se viessem a aprovar.
O véu sobre esses estudos altamente secretos contidos no chamado Trade in Services Agreement (TISA) começa a ser conhecido. De notar que esse acordo é promovido exatamente pelos mesmos governos que instalaram o falhado modelo de (des)regulamentação financeira na World Trade Organization (WTO), que foi a responsável por ter ajudado o aparecimento da crise financeira global.
Com o TISA, o que se pretende é rodear e ultrapassar a WTO, criando um novo modelo de comércio livre (de quê?), em estreita colaboração com a indústria financeira global (que tem sido acusada de, devido ao seu comportamento descuidado e ganancioso, ter ocasionado sucessivas crises).
Os governos que assinarem o TISA, comprometem-se a manterem ou aumentarem os seus níveis de liberalização ou desregulamentação financeira, deixam de ter direito a exigirem que a informação de data fique no seu território, e ficam ainda sujeitos a sanções legais se tomarem medidas que limitem a circulação desses produtos financeiros aprovados.
Ou seja, o que nos propõem (na realidade não nos propõem nada porque não somos nós que os utilizamos; propõem-se para eles que são os que os utilizam, para melhor se imporem entre eles e para não nos prestarem contas sobre algo que é ‘deles’) para acabar com os offshore é globalizá-los, ficando sujeitos a uma aprovação por parte dos governos que se comprometem a deixar de interferir, naquilo que será um pacto de suicídio do próprio Estado.
O que nos propõem é a regulamentação da desregulamentação: um Faroeste já não revisitado, mas instalado para sempre.
Torna-se agora mais fácil de entender a insistência na ‘liberdade de escolha’ como Graal da liberdade: é por aí que está a ser desconstruído o ‘estado social’, sempre em nome da defesa da liberdade individual.