O Estado social dos ricos
“Viaje agora, pague depois”
“O ‘crash’ do crédito representa o grande sucesso do sistema bancário”.
O sistema económico alimenta-se dos próprios filhos.
Em 1975, Jürgen Habermas, no seu livro A Crise de Legitimação explica-nos que o estado ‘capitalista’ serve para que se efetue a transação comercial entre o capital e o trabalho. Para que essa transação possa ser feita, é fundamental que o capital seja capaz de comprar o trabalho e que o trabalho seja ‘vendável’ (suficientemente atrativo para que o capital o queira comprar). Conseguir que estas duas condições aconteçam é a principal tarefa do estado capitalista, donde advirá a sua ‘legitimação’.
Para tal, o estado vai por um lado tentar garantir que não falte dinheiro ao capital, subsidiando-o se ele não tiver o dinheiro suficiente para a compra do trabalho, e por outro lado vai tentar garantir que o trabalho disponível para a venda valha mesmo a pena ser comprado, ou seja, que os trabalhadores sejam suficientemente fortes e saudáveis, adequadamente alimentados, devidamente treinados e comportados para que possam desempenhar e suportar as funções requeridas pelo emprego industrial. Sem estes subsídios providenciados e administrados pelo estado, nenhum empregador capitalista teria dinheiro suficiente para comprar o trabalho.
Embora a ideia central desta visão de Habermas se mantenha válida, de 1975 para cá o capitalismo, que então se baseava numa sociedade de produtores em que o lucro era realizado pela exploração do trabalho contratado, passou a basear-se numa sociedade de consumidores em que o lucro é na sua maior parte realizado pela exploração dos desejos de consumo. A finalidade passou a ser o evitar que haja qualquer necessidade de consumo que não possa ser satisfeita, em que portanto a finalidade da oferta seja a de criar a procura. Do que se trata já não é de assegurar que a transação compra-venda de trabalho seja realizável, mas de subsidiar o capital para que ele possa vender mercadorias e que os consumidores as consigam comprar. E qual será o mecanismo mágico que vai ser usado para que isso seja possível? O crédito. Daí que a primeira função do estado atual seja a de assegurar a disponibilidade contínua do acesso ao crédito.
Segundo Max Weber, a regra de comportamento humano e social que esteve na origem do capitalismo, tinha que ver com o período de espera que considerássemos como necessário para que a satisfação pudesse ter lugar. Ou seja, se desejássemos uma coisa mas não tivéssemos o dinheiro suficiente para a comprar, teríamos de poupar, apertar o cinto, para que mais tarde pudéssemos então adquirir o que desejávamos. Felizmente hoje, graças à boa vontade dos bancos, isto já não se torna necessário. Agora dá-se uma inversão: compre já, pague depois! “Viaje agora, pague depois”, lembram-se? Com o cartão de crédito obtemos as coisas quando as queremos e não quando temos dinheiro para elas.
Só que esta aparente facilidade vai, em grande parte dos casos, converter-se numa fonte permanente de rendimento para os bancos. As facilidades concedidas para dilatação da dívida são tantas e de tantos bancos, que uns cartões vão servir para amortizar outros, sem nunca a dívida ser paga. O não pagamento total da dívida é bem-vindo e bem visto pelo sistema, onde os bancos oferecem mais crédito para se pagarem as dívidas antigas! Isto porque na realidade os bancos não querem que lhes paguem totalmente a dívida, querem é tê-lo como devedor permanente. Chega-se ao ponto que para se terem boas recomendações bancárias tem de se estar a dever dinheiro aos bancos e de não se liquidar totalmente as dívidas. Uma das empresas do sector em Londres chegou mesmo a recusar a reemissão de novos cartões a todos aqueles que tivessem pago totalmente as suas dívidas.
Como diz Baumann “o ‘crash de crédito’ atual não significa que os bancos falharam. Muito pelo contrário, ele “representa o grande sucesso do sistema bancário ao conseguir transformar a grande maioria dos homens, mulheres e jovens numa raça de devedores”, pois foi isso exatamente que procuraram. E, como sempre, o Estado deu uma mãozinha assistencial como por exemplo, quando o Presidente Clinton aprovou leis que permitiriam que quem até aí não pudesse ser considerado elegível para efeitos de concessão de empréstimos, mesmo assim os conseguissem obter desde que fosse para comprar casa própria, o que fez rapidamente aumentar em pouco tempo o número de devedores. Mais tarde diriam que tinham vivido acima das suas possibilidades!
Este enorme alargamento do campo dos devedores tem que ver com uma das principais características do sistema económico: a necessidade constante de descoberta de novos “campos de pastagem” para se manter sadio, campos que devido à sua voracidade são rapidamente desertificados. A procura de novos potenciais devedores atinge proporções inimagináveis. É assim que os estudantes universitários dos países mais desenvolvidos (as futuras elites políticas, intelectuais e espirituais das nações) têm sido encorajados, forçados, a viverem à base do crédito de que só muito mais tarde se poderão vir a libertar, se o conseguirem. Não é de admirar que façam parte do curriculum dos sistemas de educação, disciplinas que ensinem a arte de viver permanentemente em dívida.
A caça foi tão bem feita que, no famoso ano de 2008, as dívidas por pagar dos consumidores Ingleses eram superiores ao produto interno bruto, o mesmo acabando por se vir a verificar no resto da Europa. Contudo, tal como para a indústria de calçado o facto de todos andarmos de sapatos acabaria por constituir uma ameaça, também para os bancos o grande número de pessoas endividadas acabaria por constituir uma ameaça, uma vez que começariam a ficar sem terras virgens para explorar.
Rapidamente o sistema compreendeu que poderia passar sem todo esse esforço de endividamento individual conseguido pelos bancos. Se em vez das pessoas fossem países inteiros a ficar em dívida, tudo se tornaria mais garantido, eficaz, simples e mais fácil de gerir. E foi o que fez, inclusivamente sem se importar com a grande maioria dos bancos. Isto é outra característica do sistema económico: alimentar-se dos seus próprios filhos, se isso lhe for conveniente. Tal como uma serpente, começou agora a comer a sua própria cauda.
Mas será que a cauda se vai regenerar? Pelo menos essa tentativa está a ser feita, através do esforço para recapitalizar os que emprestam o dinheiro e para conceder de novo crédito a quem o merecer, para que o negócio volte a ser o que era, ‘business as usual´. O que convenhamos não abona muito a favor das instituições financeiras e governos, por insistirem em erros de diagnóstico. Como escreveu Simon Jenkins, analista económico do Guardian, “é como se um piloto tranquilizasse os passageiros dizendo-lhes que estava tudo bem com o avião, só os motores é que falharam”.
É bom não esquecer que o famigerado ´estado social´, agora tão criticado e culpabilizado, foi uma criação do capital com o fim de apaziguar o trabalho. Contudo, o seu funcionamento foi tão bom que os ricos resolveram seguir o modelo criando o seu próprio ‘estado social´ onde, sempre que o povo não esteja interessado em “voluntariamente” contribuir para as empresas privadas ou públicas, o estado intervirá através da mobilização de recursos públicos para essas empresas ou pela alienação de património. Desde há muito que isto é feito, mas estas transferências estão a atingir números exorbitantes. É assim que, por exemplo, com a desculpa de salvarem postos de trabalho, o governo americano entregou subsídios no valor de 92 biliões de dólares à Boeing, IBM e General Motor.
Lembro-me sempre de Galbraight mostrar no seu livro Um Nação de Carneiros que se o dinheiro que se tinha gasto até então na guerra do Vietname tivesse sido entregue às populações vietnamitas daria para cada um comprar uma casa totalmente equipada de eletrodomésticos, ar condicionado, um carro e mais uns trocos. Não teriam morrido americanos e, se calhar, tinham ganho a guerra que não perderam. Alguém vai ter de despolitizar o ‘estado social’ dos ricos!