O diabinho do corpo
“A mulher é um ser que se veste, palra e se despe”, Voltaire.
“Quanto mais avisado é um homem na profissão, mais tolo é em casa”, dito popular.
Quando Diógenes se masturba em público, fá-lo como reação à imposição comummente aceite do amor como sentimento superior, menosprezando o papel inferior atribuído ao corpo. Contra a afirmação continuadamente repetida de que o homem não era um animal, Diógenes acha demais este sufoco continuado e omnipresente e reponde tirando o seu membro para fora da túnica: e isto é animal ou não?
Esta separação entre o corpo e a alma, entre os sexos, tem sido a fôrma constitutiva da nossa sociedade ocidental, enraizada pelo platonismo, continuada e acarinhada pelo cristianismo.
É no Banquete que Platão vai sugerir como apareceu o amor entre o homem e a mulher. Segundo ele, inicialmente o humano era um ser perfeito que se bastava a si próprio, um andrógino redondo com quatro pernas, quatro braços, duas caras e com órgãos sexuais dos dois sexos. Não admira que este ser sempre tão contente consigo próprio (eis o monstro inicial narcísico) despertasse ciúme aos deuses, que resolveram como punição serrá-lo ao meio. Às metades chamaram Homem e Mulher, ficando ainda condenadas a passarem o tempo à procura da outra metade que lhes faltava para compreenderem a lição que a parte não é o todo e que o homem não é deus. Só com a ajuda de Eros poderão possivelmente virem a encontrar a parte que lhes restitui o humano perdido.
O platonismo reconhecia a beleza do corpo como guia da alma para se alcançar a experiência absoluta da verdade. Como sempre, nada disto é para ser levado à letra: como seria possível considerar perfeito um ser a que lhe faltava beleza, um ser redondo com oito tentáculos que possivelmente nem em pé se podia ter? Mais, como será possível admitir que a separação ao meio de um corpo perfeito mas sem beleza possa vir a originar a beleza do corpo humano, que propicie o sentido de um amor ardente até aí impossível de existir no polvo narcisista? É como se só após a divisão em dois, os corpos pudessem finalmente abraçar uma volúpia amorosa.
Se a tudo isto juntarmos a prática da sociedade ateniense onde as mulheres eram excluídas de todas as atividades públicas, banquetes, academias, e onde nas reuniões entre homens estes se sentiam manifestamente como seres completos, quer espiritual quer até sexualmente; onde o que os fazia vibrar num amor muito para além do resultante da união com a mulher era a busca do conhecimento, da verdade, constituindo como que comunidades homossexuais de grandes experiências bissexuais em que procuravam alcançar aquele fluido erótico entre mestre e discípulo que permitisse a abertura da porta para o conhecimento de si próprio, uma libertação da consciência através dos diálogos comungados, então tudo isto vai fazendo que o amor da sabedoria se vá tornando cada vez mais assexuado, fazendo com que a filosofia passasse a sofrer de problemas de potência, acabando por se transformar com o cristianismo numa organização de eunucos.
Claro que este erotismo idealista, quando transportado para o universal, irá aparecer a todos os que não pertençam a esse círculo, como irracional e repressivo, um sermão de espiritualização forçado.
A reação a este estado de coisas vai ser protoganizada pelos cínicos de Diógenes que chegam, a sugerir em ar de gozo,que se deus pôs os órgãos sexuais à altura das mãos era para que pudessem ser masturbados. Curiosamente, os movimentos feministas atuais, defendem o onanismo como meio de emancipação, como o direito a um prazer que não se deve a ninguém. Não pode é ser em público. Mas pode-se pagar para ver.
Outra reação a que devemos estar atentos é a das mulheres, que nos chega escondida no meio de histórias contadas, como a da cortesã (como não havia corte era mesmo puta) Phyllis por quem Aristóteles se apaixonou loucamente, submetendo-se a todos os caprichos. Há uma xilogravura de 1513 (A Beleza dá o chicote à Sageza) onde se reproduz um dos caprichos da dita Phyllis e, que consistia em passear sentada sobre a garupa de Aristóteles que, posto a quatro, servia de cavalgadura à sua senhora. Várias são as conclusões que se podem tirar: “o corpo triunfa sobre a razão; a mulher nua triunfa do intelecto masculino; o entendimento não tem nada a opor à convincente força dos seios e das ancas”. Como bem nota o ditado popular: “Quanto mais avisado é um homem na profissão, mais tolo é em casa.”
O que também se aplica a Sócrates que, casado com Xantipa vê o seu casamento degenerar num inferno sobre a terra, a tal ponto que Xantipa deixou de ser um simples nome próprio para se converter num nome genérico para nomear as mulheres tirânicas e quezilentas. Ou seja, o maior dos pensadores, ou não conseguiu prever o caráter da mulher, ou necessitava de uma mulher assim para ser pensador, ou ela se transformou pelo seu contacto com o pensador que mesmo não a apreciando a suportava para toda a vida. Seja qual for a hipótese há uma grande dose de cegueira por parte de Sócrates.
Esta relação não assumida, escondida, entre a moral instituída e o sexo transita plenamente para a representação cristã, claramente visível na virgindade anunciada de Maria, que já anteriormente tivera filhos, e que fica grávida por obra e graça do Espírito Santo. Sem qualquer intervenção sexual-animal do ser humano. De certa forma trata-se de uma condenação do corpo e do prazer.
Mas nem sempre foi assim no cristianismo.
A Igreja levou séculos a combater aquilo que considerou como desvios da ortodoxia, para conseguir afirmar uma doutrina e moral comum. Pode-se mesmo dizer que a vitalidade do cristianismo poderia ser medida pelo aparecimento de inúmeras seitas, cada uma com os seus rituais, sem contudo deixarem de serem cristãs. Problemas como o da virgindade de Maria, de Cristo ter a mesma substância que o Pai, o que comer e não comer em dias de festa, perduraram ao longo de muitos séculos após o concílio de Niceia onde se instituiu o Credo.
Reuniões com um intrínseco princípio de prazer físico só podem ser entrevistas na Ceia Sagrada e na Ceia da Páscoa. Especialmente nesta vemos oferecer-se à carne crente uma hipótese para ressuscitar. Várias seitas do cristianismo primitivo celebravam estas reuniões como Ceia de Amor. O sacerdote cristão Epifânio, numa carta dirigida ao bispo de Alexandria, relata-lhe uma dessas cerimónias, conforme se efetuavam numa seita gnóstica do Próximo-Oriente no século IV, e cuja reprodução se pode ler no livro de J. Attalli, L’Orde cannibale, Paris, 1979, pp. 52-53:
“Põem as mulheres em comum, e, caso algum estranho apareça, quer os homens para as mulheres, quer as mulheres para os homens, têm um sinal de reconhecimento; dão as mãos e acariciam a palma, o que quer dizer que o recém-chegado pertence à sua religião. Mal assim se reconhecem, começam logo a banquetear-se. Servem pratos requintados, comem carne, bebem vinho, mesmo os pobres. Quando estão bem saciados e, por assim dizer, encheram as veias com um excesso de poder, passam ao deboche. O homem deixa o lugar ao lado da sua mulher e diz-lhe: “Levanta-te e consuma o ágape (a união de amor) com o irmão.” Os desgraçados põem-se então a fornicar todos juntos e embora eu core só a ideia de descrever as suas práticas imundas, não teria vergonha de as dizer, pois eles não têm vergonha de as fazer. Portanto, depois de se terem unido, como se esse crime de prostituição não lhes baste, erguem ao céu a própria ignomínia; o homem e a mulher recolhem na mão o esperma do homem, avançam de olhos postos no céu e, com a ignomínia nas mãos, oferecem-no ao Pai, dizendo: “Nós te oferecemos este dom, o corpo de Cristo.” Depois, comem-no e comungam todos do próprio esperma, dizendo: “Eis o corpo de Cristo, eis a Páscoa pela qual sofrem os nossos corpos, pela qual confessam a paizão de Cristo.” Fazem exatamente o mesmo com o menstruo da mulher. Recolhem o sangue da sua impureza e comungam dele da mesma maneira, dizendo: “Eis o sangue de Cristo.” Mas ao mesmo tempo que praticam estas promiscuidades, ensinam que não se deve procriar filhos. É por pura vontade que praticam estes atos vergonhosos. Consumam o ato voluptuoso até à saciedade, recolhem o seu esperma para o impedir de penetrar mais adentro e depois comem o fruto da sua vergonha […] Quando um deles, por engano, deixa a sua semente penetrar demasiado e a mulher fica grávida, escutai o que fazem ainda mais abominável. Extirpam o embrião logo que conseguem agarrá-lo com os dedos, pegam nesse aborto, esmagam-no numa espécie de almofariz, misturam-no com mel, pimenta e diferentes condimentos bem como óleos perfumados para conjurar o nojo, e depois reúnem-se – verdadeira comunidade de porcos e de cães - e todos comungam com os dedos dessa pasta de aborto. Acabada a “refeição”, terminam com esta prece: “Não permitimos ao Arconte da volúpia que troçasse de nós, mas recolhemos o erro do irmão.” Isto é, aos seus olhos, a Páscoa perfeita. Praticam ainda toda a espécie de abominações. Quando, nas suas reuniões, entram em êxtase, esfregam as mãos com a vergonha do seu esperma, espalhando-o bem e, com ambas as mãos assim conspurcadas, e o corpo inteiramente nu, oram para, por esta ação, obterem o livre acesso junto a Deus.”
Cerimonial ou não, distorcido ou não, estamos perante uma manifestação religiosa de corpos nus, de cristãos que celebravam o s seus desejos. Aspetos ‘perversos’ de comportamento que fazem concessões à religião cristã ou, uma orgia cristã. Perante a denúncia, o bispo de Alexandria excomunga oitenta gnósticos.
Se Stanley Kubrick tivesse lido esta denúncia, quão diferente teria sido o "Eyes Wide Shut".