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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

O cinema que temos

 “O público é um examinador, mas distraído”.

As imagens em movimento tomam o lugar dos nossos pensamentos”.

Em vez de um espaço preenchido conscientemente pelo homem, permite-nos um outro espaço preenchido inconscientemente”.

Cinema como imitação da realidade”.

 

Falemos então um pouco sobre cinema.

Por opção ou não, quando decidimos sobre a forma de expressão que vamos utilizar (escrever, pintar, fotografar, filmar, fazer teatro, música, etc.) para exprimir o que pretendemos transmitir, ficamos sempre dependentes do seu meio, das suas limitações e possibilidades. É diferente escrever ou pintar, pintar ou fotografar, fotografar ou filmar. Daí que as limitações do meio nos aparecerem por vezes como prisões que intentamos quebrar.

 

 

Uma das características do cinema (que por um lado constitui uma sua limitação e que curiosamente por outro lado faz parte do seu sucesso) é o facto de a sucessão de imagens projetadas perturbarem o processo de associação daquele que as observa: as imagens em movimento tomam o lugar dos nossos pensamentos. A velocidade de passagem dos fotogramas não nos deixa tempo para pensarmos sobre eles. Como resultado, a forma tende a impor-se ao conteúdo, o valor de exposição ao valor de culto, o que faz com que o cinema esteja particularmente apetrechado para contar histórias que absorvemos natural e acriticamente. Como alguém dizia: “O público é um examinador, mas distraído”.

Alguns realizadores, conscientes desta limitação, tentam por vários meios superá-la, o que só abona a favor das suas intenções, mas não do produto obtido, exatamente pelas limitações próprias do meio. Torna-se necessário um grande equilíbrio e domínio, especialmente nos casos onde não há história ou naqueles onde a história é “construída” ou mais “construída” que o normal.

 

Outra característica muito importante do cinema é a capacidade que tem de nos retirar das coisas que parecem aprisionar-nos (dos nossos escritórios, dos nossos quartos mobilados, das nossas ruas, das nossas estações de metro, das nossas fábricas, das nossas relações, das nossas rotinas, etc.), fazendo-as desaparecer e permitindo-nos viajar calma e aventurosamente até por entre os destroços espalhados. É assim que, por exemplo, uma ampliação nos permite acreditar na revelação de estruturas completamente novas; o ralenti, permite-nos sobrevoos deslizantes para fora do espaço verdadeiro. Em vez de um espaço preenchido conscientemente pelo homem, permite-nos ‘viver’ um outro espaço preenchido inconscientemente.

 

Avancemos. O cinema passou por várias fases, cada uma com características próprias. Para as reproduzir vou aproveitar-me do estudo de Gilles Lipovetsky, L’écran global, por considera-lo o mais abrangente, explicativo e atual.

O cinema mudo corresponde a uma primeira fase que se convencionou chamar de modernidade primitiva (não é o mesmo que primária). Sendo um modo de expressão capaz de mostrar o mundo de uma forma radicalmente nova, como nunca fora até aí possível, começou por se apoiar nos espetáculos forenses, nas pequenas cenas do quotidiano e no pequeno teatro. Complexificando-se, passa a abordar o romance literário.

A inexistência de som leva, por parte dos atores, a representações com uma mímica hipertrofiada e a um estilo melodramático. Rapidamente surge a necessidade de cenários próprios, guarda roupas e maquilhagens excessivas, que juntamente com as imagens saltitantes fazem parte desta primeira fase primitiva. E, contudo, ela foi capaz de produzir obras como Intolerância, Vento, A Aurora, ter realizadores como Griffith, Sjöström, Lang, e criar através das suas imagens valor de ícones (as ‘estrelas’) como Valentino, Dietrich e Garbo.

 

Dos princípios dos anos 30 a finais dos 50 entramos numa segunda fase que se convencionou chamar de modernidade clássica. É a chamada época de ouro dos estúdios, em que o cinema se converte no divertimento popular mais favorito dos americanos e de todo o mundo.

Sem dúvida impulsionado pela introdução do som que só por si vai revolucionar o que seriam apenas simples representações de peças de teatro filmadas, tal vai também obrigar ao aparecimento de uma nova linguagem e gramática. Seguem-se algumas inovações técnicas como o aparecimento dos filmes a cores a partir de finais de 30, maiores écrans panorâmicos e o cinemascópio. Tudo isto contribuiu para um mais ‘adequado’ tratamento da realidade, transformando-o no idealizado e desejado pelo público: Hollywood como máquina produtora de sonhos cujos valores eram encarnados pelas suas ‘estrelas’ (da divina e inalcançável Garbo ao viril e indestrutível John Wayne).

É a época de um cinema padronizado no que respeita aos géneros, temas, estética e moral, com recurso a cenários, cabeças de cartaz e produção em estúdios. A finalidade é entregar um produto fácil de entender pelo espetador, através de uma história ou intriga que tenha um desenvolvimento lógico e progressivo, sem qualquer ambiguidade, onde nada se interponha à compreensão do final. Uma história que se encaminha desde o princípio para um fim. Narrativa simples, nada de alterações de tempo com recurso a passados que não estejam já inscritos na história: o tempo decorre do princípio para o fim.

Ao privilegiar a filmagem em estúdio serão os cenários os encarregues de gerarem a atmosfera do filme. Como as características psicológicas das personagens são tipificadas, a utilização de vedetas ‘estrelas’ são a garantia de sucesso popular. Ao realizador cabia a função meramente técnica de ‘fotografar’ o filme para que o enredo fosse percetível, dentro das coordenadas de tempo e dinheiro disponibilizado pelo estúdio.

 

De finais dos anos 50 até aos anos 70 surge uma nova fase que se convencionou chamar de modernidade modernista e emancipadora. Começara já anteriormente com a emancipação de alguns realizadores face às exigências dos estúdios. É o caso de Jean Renoir que, já em 1930 começa a filmar no exterior e a captar o som em direto. É assim com Orson Welles que em 1941 com o seu Citizen Kane desconstrói e fragmenta toda a estrutura narrativa contínua até então seguida, abrindo caminho ao cinema moderno.

A rutura estética acentua-se com o neorrealismo italiano assente na realidade da miséria do pós-guerra. A nouvelle vague, não só de jovens realizadores como de novas vias fora do cinema clássico, aparece em França em finais de 50, estendendo-se pelos 60. O free cinema que surge na Inglaterra, o cinema contestatário na Europa de leste, e o cinema novo no Brasil vão fazer estremecer Hollywood e o seu sistema padronizado.

Contrariamente ao ilusionismo mussoliniano que projetava uma imagem rosa da sociedade, uma representação idealizada dos indivíduos, sem dificuldades económicas, sem conflitos de classe e em que todos os comboios chegavam ao horário (lembram-se que ‘carga’ transportavam e para onde iam?!), o neorrealismo italiano faz descer os filmes à terra mostrando a vida real de desempregados, camponeses explorados, pescadores, jovens engraxadores, sendo Roma cidade aberta o seu exemplo maior. Inserem-se nesta modernidade Bergman, Visconti, Antonioni, Pasolini, Fellini, Buñuel, Losey, Resnais, Godard, Truffaut, Bresson, Tati, que, embora diferentes, todos eles procuravam explorar a representação da realidade por novos caminhos.

São “obras abertas” como tão bem caracterizou Umberto Eco, devido à sua ambiguidade, indeterminação e polivalência, que obrigavam o público a um trabalho de reflexão para as entenderem: Hiroxima meu amor, A Aventura, O Criado, 2001 Odisseia no espaço, Providence. Era Godard e os seus puzzles narrativos que pulverizavam a intriga. Antonioni que fazia desaparecer a intriga na lentidão da procura que se perdia no nada. Resnais que a escondia por trás dos seus labirintos mentais.

Surgem temáticas novas: a solidão, a incomunicabilidade, o silêncio, o passar do tempo, o casal, a liberdade, a memória, a violência, a vagabundagem, o aborrecimento. Difícil esquecer Anna Karina a dizer monótona e repetidamente em Pedro o louco: “O que é que vou fazer? Não sei o que vou fazer.” A personagem perde o seu caráter definido, estável passando a indeciso, flutuante, incerto quanto à sua aparência. À sua volta o mundo torna-se dificilmente explicável reduzido a um presente sem espessura caído no seu imediatismo. A banalidade, o insignificante, os tempos mortos passam a ter um lugar até aqui negado, os acontecimentos são conduzidos pela sorte, boa ou má. É uma fase eminentemente reflexiva e de desconstrução na qual o cinema de autor reivindica o estatuto de obra de arte por oposição aos produtos descartáveis do cinema comercial. É nesta fase que aparece o conceito de cinefilia.

 

Contar a história de outra forma, não utilizar cenários, filmar na rua, quebrar as normas da montagem, abandonar a teatralidade dos diálogos e sua interpretação por atores novos, independentizando-se do jugo da produção, são farpas lançadas a Hollywood. Tal como se passava na moderna sociedade individualista de consumo, a juventude e o seu espírito rebelde, a liberdade, os prazeres, a felicidade, a autenticidade, o sexo e a recusa das normas convencionais são impostos como valores.

Hollywood tenta resistir abrindo-se a um psicologismo com a integração de Freud nos seus argumentos, na procura e exposição dos segredos íntimos e da libido. Abre-se tenuemente a via da libertação estilística, narrativa e temática que progressivamente levam à desconstrução do clássico.

A partir dos anos 70 uma nova geração toma conta de Hollywood: Copolla, Spielberg, Lucas, De Palma. Utilizando o seu sentido de grande espetáculo e fazendo uso de todas as tecnologias de vanguarda vão recuperar para Hollywood a condução do cinema. Esta ‘neo Hollywood’ ficou muito a dever à geração europeia que a precedeu, como reconheceu Spielberg em 1977 ao chamar Truffaut para realizar o seu filme Encontros do terceiro grau.

 

A partir dos anos 80 a globalização vem alterar (ou acelerar) radicalmente a vivência ao nível da economia, cultura, consumo, estética, tecnologias e dos media. Como tudo se produziu ao mesmo tempo, podemos dizer que estamos perante uma mutação. Nas fases anteriores do cinema, as inovações técnicas que lhe estiveram na origem, apenas afetavam sectorialmente o universo cinematográfico. Agora, todo esse universo, criação, produção, promoção, difusão e consumo, foram atingidos e alterados simultaneamente. Entramos numa nova fase de cinema que Lipovetsky vai chamar de hipercinema.

 

A globalização económica e a internacionalização dos investimentos financeiros andam de mãos dadas, daí que grande parte das maiores empresas de cinema de Hollywood tenham passado para o controlo de grandes grupos europeus, australianos e japoneses, o que fez com que os filmes americanos fossem os que obtivessem maior financiamento por capitais estrangeiros. Esta internacionalização de financiamento vai conduzir a um cinema planetário, transnacional, cada vez mais mestiçado, multicultural, na tentativa de alargar continuamente o seu mercado, não excluindo nenhum tipo de identidade e de experiência.

Digitalização, ciberespaço, tecnologias genéticas, fluxos financeiros, megacidades, mas também pornografia, condutas de risco, desportos extremos, performances, happenings, obesidade, dependência, tudo em grande escala, tudo extremado, tudo vertiginoso, para além dos limites: esta é a espiral hiperbólica de escalada da vida económica, social e individual que caracterizam a sociedade a partir dos anos 80. Lógica de modernização exponencial que o cinema segue.

 

As invenções tecnológicas, o vídeo a partir de 80 e o digital a partir de 90, vão permitir uma alteração na abordagem da conceção das cenas, da realização e da montagem, reduzindo ou suprimindo o palco, retocando as imagens, inscrevendo os atores em ambientes de síntese, captar os movimentos por computador para os restituir sob forma animada, realizar personagens sintéticas ou puramente virtuais, exemplarmente mostrados em filmes de grande sucesso e impacto (Titanic, Parque Jurássico, O Senhor dos anéis).

A digitalização do som, quer dos filmes quer das salas de cinema, bem como a criação de sociedades de efeitos especiais vão fazer literalmente ‘vibrar’ o novo espetador, não só já pelos acontecimentos, mas pelos efeitos de cores, sons, formas e ritmos levando-o a sentir sensações diretas e imediatas daquele instante de imagens excessivas.

 

Os custos de produção, de publicidade e dos vencimentos das estrelas também se hiperinflacionam. O Titanic custou 247 milhões de dólares em 1997, o Homem Aranha 3 ultrapassou os 300 milhões em 2007. A ‘financeirização’ que constitui a coluna vertebral do mundo económico contemporâneo terá de estar presente no cinema: é assim que o Deutsche Bank suporta com 600 milhões de dólares metade da produção da Universal e da Sony Columbia, o Goldman Sachs financia com mil milhões a Weinstein Company.

O pagamento aos atores também cresce enormemente: Brad Pitt, Tom Cruise, Julia Roberts, Nicole Kidman recebem 16 a 20 milhões por filme, Tom Hanks recebeu 25 milhões pela atuação no Código Da Vinci. A isto devemos acrescentar os ganhos pela participação nas campanhas de publicidade. Mas, seguindo o padrão do sistema económico vigente, este enriquecimento dos mais famosos não é seguido por um aumento proporcional dos outros profissionais: assiste-se ao reforço das desigualdades entre categorias e géneros.

Quanto às campanhas de publicidade, enquanto em 1940 o máximo a que se assistiu foi a utilização de 7% do total previsto para a realização do filme, hoje o normal cifra-se em 30%, e em alguns casos mesmo mais de 50%. Em 1985 os gastos médios em publicidade com um filme eram de 6,5 milhões de dólares passando para 39 milhões em 2003. O objetivo é o da criação de um mega-acontecimento mediático que leve as pessoas a acorrerem à sua apresentação, o que vai implicar que a maior parte das receitas se obtenham nas primeiras semanas em que o filme sai (80% das receitas são obtidas nas quatro primeiras semanas).

 

As novas tecnologias, particularmente a digitalização, favorecem os géneros que maior consumo façam de efeitos especiais: filmes de ação, de ficção científica, de aventuras, de horror, filmes para crianças. Sem elas seriam impossíveis transpor para o cinema o universo fantástico do Senhor dos Anéis de Tolkien, nem os vários Matrix.

Se acrescentarmos à imagem o som das salas de cinema em que os graves tocam diretamente o corpo e o seu sistema sensorial obteremos um efeito/estado de imersão alucinatório dos sentidos. Simulação do real, de um novo mundo, através da modificação e desestabilização das perceções, numa espécie de trip sensorial: ‘realidade’ virtual.

 

Este cinema de sensações visuais e sonoras conduz a um ultra movimento de imagens mostradas a um ritmo infernal, a um efeito em que a velocidade se torna por si própria um fim. A duração média dos planos passa a ser de dois segundos: esta repetição acelerada transforma-se num autêntico bombardeamento visual. Montagem nervosa, diálogo curto e abreviado, multiplicação das cenas de perseguição, acentuação sonora. A velocidade passa a ser a estética de referência, exportada e/ou importada da televisão, dos jogos de vídeo, da publicidade. Cada vez mais o espetador não suporta tempos mortos ou de espera, quer cada vez mais emoções, mais sensações, mais espetáculos, mais coisas para ver e sentir que o arranquem da banalidade dos dias. A velocidade da imagem torna-se como que uma droga hipnótica e exaltante. A velocidade é o belo.

 

É também um cinema de profusão: de cores, cada vez mais cores, de imagens, cada vez mais imagens, de sons, cada vez mais sons. Mas, contrariamente ao barroco de Fellini que fazia da profusão de um sem número de imagens de personagens, cores e barulhos, um espetáculo, o cinema contemporâneo faz do espetáculo uma profusão. É a profusão pela profusão. São os efeitos especiais constantes, as perseguições, as explosões, as lutas. E quando um herói já não for suficiente, acumulam-se e repetem-se como em 2004 no caso de Van Helsing que se defronta no mesmo filme contra três adversários: Drácula, Frankenstein e lobisomem.

Mesmo quando as melhores obras declinam esta posição excessiva, não conseguem fugir a este tempo de desregulamentação, de saturação, e de horror ao pouco. Daí a opacidade labiríntica de David Lynch, a violência cada vez mais complexa de Cronenberg, a exuberância de Pedro Almodóvar.

 

É também um cinema no qual a violência é filmada por ela própria. Na anterior fase a violência era mostrada integrada num conjunto de adolescentes revoltados, de gangsters e da mafia, de conflitos sociais ou da selva urbana. Tudo isso começa a mudar em 1974 quando Sam Peckinpah realiza um filme centrado numa cabeça cortada, Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia.

Em 1979 é a vez de Copolla com o Apocalypse Now juntar a violência à estética. De referir o precursor da junção da estética a uma cultura da violência pura: Kubrick e o seu Laranja Mecânica de 1971.

Hoje, a violência nada tem a ver com a estética ou tema do filme. Ela existe por si mesma. O exemplo acabado é o de Kill Bill onde durante vinte minutos a heroína decapita e mata de variadíssimas formas um exército de oponentes de sabre. É a violência por ela mesma, que acaba por criar os seus próprios géneros. Um dos seus últimos produtos mais refinados é o do serial killer onde se encontram desde as loucuras assassinas ao canibalismo (O Silencio dos Inocentes) até ao ‘excesso’ de mortes horríveis ligadas aos sete pecados capitais (Seven). Não falando já sobre o horror da crucificação de Cristo do filme de Mel Gibson, dos costumes bárbaros dos Maias (Apocalypto) e dos modos de matar híper-sádicos dos Saw 1,2, 3…6 e 7.

 

O mesmo acontece com o sexo. Longe vão os tempos da sensualidade pretensamente chic de Emmanuelle e do cruzar de pernas de Sharon Stone que no Basic Instinct incendiou o planeta (e não só). Não há hoje um filme de grande audiência que não tenha uma cena de sexo e orgasmo. Progressivamente, o que era reservado aos filmes pornográficos passou a ser considerado normal. Troca de casais, sodomia, masturbação, copulação, felação, são mostrados em direto. Não se trata já da transgressão, mas da exacerbação pura e ilimitada dos órgãos e suas combinações eróticas, sem qualquer tipo de sentido ou de afetividade: há que ver e mostrar tudo como mera função performativa. E não só mostrar, mas também tudo dizer, e assim comprometer o espetador com a vulgaridade e a obscenidade das palavras. De homens e de mulheres.

 

Seria atribuir muita importância ao cinema ou à lógica comercial a culpabilização por este crescendo exponencial do sexo. Grande parte destas transformações têm que ver com as modificações dos costumes e com o desaparecimento de muitos tabus na sociedade a partir dos anos 60. Esta mistura entre velocidade e profusão, entre velocidade e sexo, é hoje aceite como corrente e legítima. O excesso não é hoje percebido como excessivo, o que já fora previsto por Pasolini no Salo e utilizado atualmente por Cronenberg no Crash ao reunir velocidade, violência e prazer.

De igual maneira, limitar o cinema contemporâneo apenas ao marketing, às grandes produções de Hollywood concebidas com a simplicidade necessária para que sejam acessíveis ao maior número de pessoas e onde as personagens são definidas como estereótipos (com comportamentos simples e identificáveis como a fleuma de Indiana Jones ou a coragem e força de Rambo) é ver apenas a ponta do icebergue.

Também não podemos ver como sendo filmes de autor toda aquela produção de filmes que não caibam nesse esquema de blockbusters ( que constituem 98%). É que mesmo que a enorme maioria desses filmes continuem a reproduzir um esquema simples quase clássico, entrou-se numa fase de mundialização acelerada em que todos os países, mesmo pequenos, pretendem utilizar o cinema como vetor de diferenciação e afirmação cultural, daí o aparecimento na distribuição ocidental de filmes sírios, iraquianos, cazaques, tajiques, albaneses, islandeses, lituanos, angolanos, malgaxes, etc.

O que se temia, que a globalização conduzisse a uma homogeneização dos produtos e culturas, a uma americanização do mundo, pode não ser tão linear. O sincretismo daí resultante pode antes vir a ser um cinema transnacional, para além de qualquer território específico e plural. Exemplo: Radu Mihaileanu, romeno de nascimento, filho de pai judeu imigrado na Roménia, muda de nome e emigra para o Ocidente, apátrida por momentos até ter a nacionalidade francesa, conta a história de uma criança na Etiópia que a mãe faz passar por falasha, emigrada em Israel numa família de judeus sefarditas que falam francês. O filme, Babel, será rodado pelo mexicano González Iñárritu que Hollywood atraiu para o realizar.

 

Tudo isto foi conduzindo a uma desregulamentação estética dos filmes, começando pela narrativa. Ao não distinguirem entre a ação principal e ações acessórias, a narrativa que contava uma história com princípio, desenvolvimento e fim é posta em causa. Depois a própria estrutura é posta em causa quando o acessório passa a ser tão importante como o principal. Começou com Easy Rider, mais tarde com Thelma e Louise e Sideways. A estrada, que era o acessório, passou a ser o principal, num discurso descontínuo, fragmentário e até caótico.

O mesmo se passou com o cinema de ação: a racionalidade da história é preterida a favor da exibição de uma cascata de imagens/sensações que fazem vibrar o espetador. Quando nos anos 50 e 60 se ia ver Hitchcock esperávamos sempre por uma explicação que nos permitiria entender o filme. Quando vamos ver A Orquídea Negra de Brian de Palma saímos sem compreender grande coisa, o que face às imagens apresentadas até nos dá um certo prazer. O prazer da sombra da dúvida. Mas David Lynch vai ainda mais longe: ele recusa qualquer explicação, é o mistério que tem sentido e não o sentido que tem mistério.

Voltando ao Sideways: eis um bom exemplo de como o insignificante, o pormenor, se pode ir desenvolvendo em cenas que valem por elas mesmas sem necessidade de uma narrativa central. É o pequeno prazer do primeiro copo de vinho que leva a falar-se de tudo e de nada, do grande e do pequeno, do simples e do complexo, ficando-se sem se saber qual seria o verdadeiro assunto.

 

Apesar de Elvis Presley e o rock estarem na origem do aparecimento da juventude como valor maior na sociedade, o cinema só vem a introduzir filmes que se debruçavam exclusivamente sobre jovens, tratados como jovens, com Os Quatrocentos Golpes de Truffaut em 1959. Na fase clássica as histórias eram normalmente centradas em personagens de idade média, nem muito jovens nem muito velhas. Seguem-se Fúria de Viver e Rock around the Clock.

A partir daí todos os grupos etários e seus problemas são incluídos, com pares amorosos de idade avançada (Jack Nicholson e Diane Keaton do Tudo pode acontecer, Clint Eastwood e Meryl Streep nas Pontes de Madison), papéis especialmente criados para a terceira idade e interpretados pela terceira idade (Danielle Darrieux com 89 anos na Nouvelle Chance) e realizadores centenários (Manoel de Oliveira realiza com 99 anos o Belle Toujours, um filme homenagem a Belle de jour de Buñuel em que vai buscar 40 anos depois os mesmos atores que nele participaram, Michel Piccoli com 82 anos na altura).

 

A partir dos anos 70 assiste-se quase a uma invasão de filmes sobre mulheres e com mulheres, numa panóplia de situações que iam para além do considerado como seus papéis típicos: megera, puta e amante. Executivas (Working Girl), detentoras de poder (O diabo usava Prada), ocupando atividades destinadas a homens (Million Dollar Baby), super heroínas (Catwoman, Elektra) são alguns exemplos.

Mais importante: equiparam-se aos homens ao nível do comportamento sexual, utilizando o sexo como puro prazer sexual. O dinheiro, o sexo e a carreira passaram a ser questões comuns a homens e mulheres. Nada lhes é interdito: desde a iniciativa a avanços sexuais (Glenn Close na Ligaçao Fatal em 1987), até ao rirem-se delas próprias e dos homens (como o faz Bridget Jones). Anote-se também nesta época, a entrada das mulheres para a realização, domínio até aí quase exclusivo dos homens: entre 1900 e 1980 não existiam mais de vinte realizadoras em todo o mundo; em 2004, só em França apareceram 68 filmes realizados por mulheres.

De igual forma assistimos a uma quase inversão dos papéis para além dos tradicionais atribuídos aos homens, ligados à perca do poder viril, à impotência, à pedofilia. Há um recentrar de nova personagem do homem, de que são exemplos o aparecimento do strip-tease feito por homens (The Full Monty) e o escândalo de uma cidade mineira perante o desejo de o filho de um operário em querer ser bailarino em pontas (Billy Eliott).

A homossexualidade é hoje totalmente legitimada no cinema, sendo mostrada no seu contexto, fora da condenação moral ou da sua apresentação boçal. Não há já qualquer comparação entre a timidez d’A Gaiola das Loucas de 1978 com My Beautiful Laundrette, Philadelphia, O Segredo de Brokeback Mountain: a homossexualidade impõe-se agora até na sua diversidade. Também a homossexualidade feminina começa a ter presença no grande ecrã: Charlize Theron em Monster e A Tentação de Jessica.

 

Estamos perante uma procura e uma afirmação mais ou menos ansiosa que diz respeito a todas as categorias sociais, sejam elas sexuais, de idade ou de cultura. Não se trata já de uma busca de libertação sexual. O cinema aparece como uma visão expressa do “magma desorganizado” que, através de hibridações culturais, de desregulamentação dos papéis sexuais e da particularização do perfil dos seres, constitui o estado social individualista contemporâneo.

 

Há, contudo, um aspeto extremamente interessante do cinema.

Durante muito tempo ele estava associado com uma saída em família e com as salas de cinema. Entre 1930 e 1944 quase todos os americanos iam uma vez por semana ao cinema. Depois do aparecimento da televisão e do vídeo, a frequência das salas de cinema diminuiu drasticamente. Em 2002 os americanos iam ao cinema 5,4 vezes por ano, os europeus 2,4 vezes por ano. Os mais assíduos eram jovens entre os 15 a 24 anos, que iam em média 7 vezes por ano. A visualização do cinema desregulamenta-se: os filmes passam a poderem ver-se pela internet no quarto ou qualquer outro local com net, em qualquer leitor portátil, nos telemóveis, em viagem nos aviões e comboios em pequenos ecrãs individuais onde se pode optar pela língua falada. Não mais salas escuras, dias e horários programados. Pode-se até construir uma própria cinemateca pessoal que se poderá ver quando e como se entender.

Assiste-se, pois, a uma erosão da frequência das salas, a uma visualização nómada e a uma desmultiplicação dos pequenos écrans. Pareceria que o cinema tinha perdido a sua posição hegemónica face a toda esta situação e perante a ‘concorrência’ dos novos écrans eletrónicos.

Mas é exatamente nesse momento que o cinema triunfa como media predominante, não o seu dispositivo material, mas o seu dispositivo imaginário constituído pelo grande espetáculo, o cuidado com a imagem e o star-system. Televisão, jogos de vídeo, espetáculos desportivos e culturais, todos eles pretendem imitar o espírito do cinema que influencia gostos e comportamentos quotidianos.

 

Filmar, enquadrar, visionar, registar os movimentos da vida e da nossa vida, através de telemóveis ou outros meios, fazem de todos nós atores e realizadores de cinema,  esquecendo assim que sempre fomos realizadores e atores da nossa própria vida . Cinema como imitação da realidade. E também, intencionalmente, alegremente, tristemente, por vezes, realidade como imitação do cinema.

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