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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

O caso da deriva das gaivotas lésbicas

 “Não é de estranhar que não haja papéis fixos e determinados entre os seres vivos”.

“Esta enorme variedade de comportamentos, verifica-se também no campo da comunicação, entendendo por comunicação uma classe particular de condutas que ocorrem, com ou sem a presença do sistema nervoso, no operar dos organismos em sistemas sociais”.

“A conduta cultural aparece como um caso particular de conduta comunicativa, o que faz da dinâmica social um fenómeno biológico”.

“Na deriva natural dos seres vivos haverá muitas extinções, muitas formas surpreendentes e outras que podemos imaginar como possíveis, mas que nunca veremos surgir”.

 

 

“A caminhada” era o título que inicialmente tinha pensado para este artigo, só que tal título suporia uma ideia de direção, sentido, finalidade proposta, implicando um fechamento conceitual contrário ao que pretendia. O “caminhar que se faz caminhando” não passa de uma expressão literariamente bonita e moralmente reconfortante, por a todos nos ligar à suposta caminhada do ser humano rumo a qualquer coisa, situada sempre no futuro que ‘terá’ de existir e que por si só acabará por justificar, ou justificará, essa tal caminhada.

O que pretendia era um título que estivesse de acordo com o conceito de algo que vai transcorrendo sem uma finalidade adivinhada ou imposta, resultante de um intenso processo de adaptação inter-relacional entre o ser vivo e o meio, processo totalmente aberto e que, além do mais, decorresse sempre no presente. Uma “deriva”, uma “deriva natural”.

 

Para explicar este conceito de “deriva natural”, vou-me socorrer da analogia que Humberto Maturana, na Árvore do Conhecimento, utilizou para descrever o processo da evolução humana:

 

“Imaginemos uma colina de cimo estreito. Do alto desse cume, lançamos umas gotas de água sempre na mesma direção, ainda que a mecânica do lançamento cause variações no seu modo de cair. Imaginemos que as gotas de água sucessivamente atiradas, deixam marcas sobre a superfície da terra, que servirão como registos da sua queda. Claro que ao repetirmos várias vezes a experiência, obteremos resultados ligeiramente diferentes. Algumas gotas cairão diretamente para baixo, na direção escolhida, enquanto outras encontrarão obstáculos que contornarão de maneiras diferentes, dependendo das suas pequenas diferenças de peso e impulso, desviando-se para um ou outro lado. Mudanças na direção do vento talvez forcem algumas gotas ara caminhos mais sinuosos, afastando-as da direção inicial. E assim indefinidamente. Os caminhos que obtivermos representam adequadamente as múltiplas derivas naturais das gotas de água sobre a colina, resultados dos seus diferentes modos individuais de interagirem com as irregularidades do terreno, dos ventos e assim por diante.”

E, prossegue, ligando agora esta analogia aos seres vivos:

“O cume e a direção inicial escolhida equivalem ao organismo ancestral comum, que dá origem a descendentes com ligeiras variações estruturais. A repetição múltipla equivale às muitas linhagens que surgem a partir desses descendentes. A colina é todo o meio circundante dos seres vivos, que muda segundo o vir-a-ser das linhagens” […] “A analogia mostra-nos que a deriva natural só ocorrerá seguindo os cursos que são possíveis a cada instante, muitas vezes sem grandes variações na aparência dos organismos, e muitas vezes com múltiplas ramificações, dependendo dos tipos de relação organismo-meio que se conservam.

Organismos e meio variam de forma independente: os organismos em cada etapa reprodutiva, e o meio segundo uma dinâmica distinta. Do encontro dessas duas variações surgirão a estabilização e a diversificação fenotípicas, como resultado do mesmo processo de adaptação e da autopoiese, dependendo de quando o encontro acontece: estabilização quando o meio se transforma lentamente; diversificação e extensão quando a mudança é abrupta”.

 

É, portanto, deste jogo entre as condições históricas em que as linhagens ocorrem e das propriedades intrínsecas dos indivíduos que as constituem, que a constância e a variação das linhagens dependem.

Não é, pois, de estranhar que não haja papéis fixos e determinados entre os seres vivos, o que se pode constatar, por exemplo, na divisão de tarefas para a criação dos filhos, nos variados casos de poliandria e poliginia, e ainda na sua dinâmica comunicativa.

 

Em muitos animais que requerem um aparelho sexual para a reprodução, os filhotes precisam de receber algum cuidado dos pais, mormente na sua geração e criação. Os humanos criados numa cultura patriarcal tendem a pensar que o natural é ser a fêmea a cuidar dos filhos e o macho a sustentá-los e proteger. Provavelmente, fundamos essa suposição no facto de sermos mamíferos, em que nos períodos de amamentação a criança precisar de ficar necessariamente ligada à mãe (não existe nenhuma espécie de mamíferos em que a amamentação seja responsabilidade do macho).

No entanto, esta divisão de papéis que parece tão nítida, está longe de ser universal.

Por exemplo, entre os pássaros encontramos uma grande variedade de condutas. A fêmea da Jaçanã, uma ave sul-americana, vai definir um território mais ou menos amplo em que irá preparar vários ninhos, estabelecendo, entretanto, relações sexuais com vários machos (poliandria), tantos como os ninhos preparados. Depois de fertilizada, ela vai colocar um ovo em cada ninho, reservando só um para um ninho dela. Assim, tanto a fêmea como os machos poderão gozar do prazer de criarem os passarinhos.

Já no caso das avestruzes sul-americanas, o macho acasalará com um harém de fêmeas (poliginia), indo depois cada uma delas depositar um ovo dentro de um mesmo ninho, ficando o macho a tomar conta deles todos.

Por vezes, os locais de nidificação tornam-se tão povoados, que algumas gaivotas são levadas a procurarem outros locais. Um grupo dessas gaivotas optou por uma praia afastada, só que o grupo era composto por poucos machos, o que punha um problema, uma vez que para alimentarem os filhotes seriam necessárias duas gaivotas em permanência. Assistiu-se então ao reagrupar das gaivotas com casais de duas gaivotas fêmeas, juntando-se num ninho em que cada uma punha um ovo em que um seria rejeitado. Estava assim assegurada a alimentação do novo filhote.

Os pinguins, que também são aves, resolvem o problema de outra forma. Como se torna necessária a participação dos dois progenitores para que a alimentação dos filhotes seja assegurada, os adultos que ficam em terra permanecem em redor do grupo de filhotes, protegendo-os, formando uma verdadeira creche.

 

Também nos peixes deparamos com variedades de conduta, algumas até surpreendentes. No caso do esgana-gata, é o macho que constrói o ninho, seduz a fêmea e a expulsa logo a seguir à desova. Expulsada a fêmea, o macho passará dias a sacudir a cauda cuidadosamente, para fazer circular a agua à volta dos ovos, até aos peixinhos nascerem. Depois, dedica-se a cuidar dos filhotes até eles se tornarem independentes. A sua relação com a fêmea dura o tempo da corte e da desova.

 

Os insetos sociais tendem a resolver o problema de outra forma, evidenciando um maior grau de rigidez e inflexibilidade, uma vez que eles se organizam com base numa armadura exterior de quitina, movimentada por músculos interiores. Esta arquitetura impõe um limite máximo ao tamanho dos insetos, e, por consequência, ao tamanho do seu sistema nervoso. Daí que os insetos não se distingam individualmente pela sua variedade comportamental e pela sua capacidade de aprendizagem.

No grupo bastante estudado das formigas mirmiceas, as formas dos vários indivíduos participantes diferem consoante as atividades que realizam na colónia. Com exceção de uma, todas as outras fêmeas são estéreis, realizando tarefas que vão da coleta de alimentos, a defesa, o cuidado dos ovos e a manutenção do formigueiro. Os machos nunca saem, ficando reclusos no interior, ao serviço da única fêmea fértil, a rainha. A reprodução está, pois, restrita à rainha e aos machos. Contudo, todos os indivíduos do formigueiro se encontram ligados numa estrutura fisiológica.

Como se consegue este ‘mecanismo’ que permite a ligação entre as formigas do formigueiro? Através de um intercâmbio de substâncias químicas, oriunda de um fluxo contínuo de secreções entre os membros da colónia: trocam os seus conteúdos estomacais cada vez que se encontram, o que podemos ver quando observamos uma fila de formigas.

Este intercâmbio químico contínuo (trofolaxes) resulta na distribuição por toda a população, de uma certa quantidade de substâncias, entre elas hormônios, que são responsáveis pela diferenciação e especificação de papéis. A rainha é o que é, não por hereditariedade, mas pelo modo como é alimentada. Se a retirarmos do seu lugar, provoca-se de imediato um desequilíbrio hormonal que irá provocar uma mudança na alimentação de algumas larvas que se desenvolverão como rainhas.

 

Os vertebrados, que possuem já um esqueleto interno revestido pelos músculos, não sofrem uma limitação tão severa de tamanho, sendo ainda capazes de um crescimento prolongado. Tal permite-lhes organismos maiores, com mais células, com maiores sistemas nervosos, o que possibilita uma maior diversidade de estados e de condutas.

Por exemplo, com os antílopes, que vivem em terrenos montanhosos, verificamos que animais distintos cumprem funções distintas, permitindo que os membros do rebanho se relacionem em atividades que não lhes seriam possíveis como indivíduos isolados. Se nos tentarmos aproximar do rebanho, vamos verificar que todo ele foge, tentando alcançar um topo mais elevado, de onde ficam a observar o intruso.

Mas, se tiverem de passar por um vale que lhes impeça a visão do intruso, então o rebanho desloca-se todo com o macho dominante à frente, seguido das fêmeas e filhotes. A fechar, seguem os restantes machos do rebanho, um dos quais fica para trás, sobre o topo mais próximo, vigiando o intruso enquanto os demais descem. Logo que eles chegam à nova elevação, junta-se a eles.

 

Já no caso dos babuínos das savanas africanas, em que a ligação intergrupal tende a estabelecer uma hierarquia de dominação entre os machos, quando o grupo migra, os machos e fêmeas dominantes vão no centro, junto com os filhotes, enquanto os outros machos e fêmeas se posicionam estrategicamente à frente e atrás.

Contudo, outros grupos de primatas, revelam modos e estilos de interação diferentes, como são os exemplos das hamadrias do norte de África, habitualmente muito agressivas, com hierarquias de dominação bastante rígidas e dos chipanzés, que têm uma organização grupal muito mais fluída e variável, criando grupos familiares extensos que permitem uma maior mobilidade individual.

 

Esta enorme variedade de comportamentos, verifica-se também no campo da comunicação, entendendo-se por “comunicação, uma classe particular de condutas que ocorrem, com ou sem a presença do sistema nervoso, no operar dos organismos em sistemas sociais”.

 

Vejamos alguns casos: Os pássaros que habitualmente vivem nas selvas, como dificilmente podem manter contacto visual, comunicam-se através do canto: macho e fêmea encontram-se e acasalam estabelecendo um canto comum. Inicialmente parece que cada ave canta uma melodia completa, mas, pela análise mais detalhada, o que se verifica é que cada pássaro constrói uma frase que o outro continua, ou seja, cantam um dueto. Tal melodia é exclusiva de cada par, e assim se vai manter. Até os filhotes de cada par, quando acasalarem, darão origem a melodias que serão diferentes das dos seus pais.

Quando em Inglaterra foram introduzidas as novas tampas de alumínio, em substituição das tampas de papelão, para as garrafas de leite, aconteceu que poucos dias depois desta introdução, as cotovias aprenderam a picotar essas embalagens para se alimentarem da camada superior de nata. O interessante é que esta conduta se expandiu daí para todas as ilhas britânicas, e em pouco tempo todos os pássaros haviam aprendido o truque.

A imitação é uma tendência essencial caraterística dos vertebrados. No caso acima, o que começou como uma conduta localizada, expandiu-se rapidamente. Se os filhotes dos pássaros não fossem capazes de imitar, o hábito de furtar a nata das garrafas teria de ser reinventado a cada geração.

Mas há outros casos de permanência transgeracional de uma conduta adquirida:

Quando, como procedimento de pesquisa numa reserva de macacos situada num arquipélago do Japão, os investigadores espalharam batatas e trigo sobre a areia da praia como forma de atrair os macacos a saírem da selva e virem para o mar, verificaram que uma das fêmeas começou a lavar na água as batatas, retirando-lhes assim a areia que as tornava desagradáveis de comer. Em poucos dias os outros macacos, especialmente os jovens, já a imitavam, lavando as suas batatas. E, com o passar de meses, esta nova conduta já se havia estendido a todas as colónias vizinhas.

Mais tarde, esta mesma macaca, Imo de seu nome cristão, descobriu também a forma de retirar a areia dos grãos de trigo, mergulhando na água a mão cheia de cereais com os dedos entreabertos. Esta invenção expandiu-se também gradualmente pelas colónias da ilha, sendo mais lentos na sua utilização os mais velhos.

 

Esta configurações comportamentais adquiridas na dinâmica comunicativa de um meio social, mantidas estáveis através de gerações, são, efetivamente, condutas culturais. Elas permitem uma certa invariância na história do grupo, para além da história particular dos indivíduos participantes.

A imitação e a continua seleção comportamental entre os grupos desempenham um papel essencial que se expressa no fenómeno cultural. A conduta cultural aparece, assim, como um caso particular de conduta comunicativa, o que faz da dinâmica social um fenómeno biológico.

 

Percebe-se agora melhor que ao longo desta deriva natural dos seres vivos, não seja de admirar que haja muitas extinções, muitas formas surpreendentes e outras que podemos imaginar como possíveis, mas que nunca veremos surgir. Não seria, pois, possível chamá-la de ‘caminhada’.

 

As gaivotas levantaram voo. O que me impediu de verificar se, na sua deriva, eram ainda lésbicas.

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