O "achatamento" como dominação
“Os descobrimentos fazem-se sem o acordo prévio do descoberto, pelo que o seu título de propriedade decorre de uma legitimidade superior”, C. Schmitt.
“Quando Deus está morto, ou não está a olhar, nos mares sem lei, fora das zonas de respeito condicionado, também o inconcebível é possível”.
“O facto central da Época Moderna não é que a Terra gira em volta do Sol, mas que o dinheiro gira à volta da Terra”, Sloterdijk.
“O fascismo é o horror da vida confortável”, Mussolini.
Foi D. Manuel I, o Venturoso, o primeiro rei a mandar por no seu brasão um globo, e naquele século tal privilégio só viria a ser concedido a um homem privado, Sebastián del Cano (que após a morte de Magalhães trouxera a nau Victória de volta a Espanha em 1522) e a um território da Coroa portuguesa, o Brasil, que ainda hoje conserva essa esfera de D. Manuel na sua bandeira.
A representação da Terra feita através de um globo está iminentemente ligada às viagens de circunavegação, muito embora o globo mais antigo conhecido seja o de Behaim em 1492. Nunca antes a Terra fora representada como um globo. Não é de somenos importância esta forma de representação da Terra, porquanto ela implica uma visualização a partir de um ponto de vista situado no espaço exterior envolvente. A Terra era apreciada como se estivéssemos a observá-la a partir de um satélite, o que constituía uma enorme rutura com o pensamento tradicional. De igual forma, a palavra-conceito ‘globalização’ só aparece após a Idade Moderna. Antes dela não era possível concebe-la, porque ela pressupunha o conhecimento da Terra como globo.
Mas há contudo palavras-conceitos que embora tenham existido noutras épocas anteriores, mudaram radicalmente de conceito, prenunciando a Época Moderna. É o caso de ‘Descobrir’ que significava, até ao século XVI, “levantar a cobertura de um objeto, desocultar o que era conhecido”. Mas a partir daí passa a querer dizer encontrar algo desconhecido. Os ‘Descobrimentos’ têm exatamente esse significado.
Assim sendo, os Descobrimentos são as viagens através das quais o desconhecido se transforma em conhecido. O que faz com que o primado da viagem seja a ida, a partida para o exterior, o aventureirismo, sem o qual não há descobrimento. A fase que se lhe segue é o da apresentação de provas que o descoberto foi encontrado e que possa continuar a partir daí a permanecer conhecido.
Os novos países e terras só poderiam ficar debaixo da tutela dos novos senhores (europeus, evidentemente) depois de se tornarem entidades localizadas, inventariadas, delimitadas e com nome. Convenhamos que os globos não eram os instrumentos mais adequados para o desempenho destas ações, pelo que vão progressivamente sendo substituídos pelos ‘mapas’ que permitiam efetuar o levantamento das regiões pretendidas, permitindo entre outros representar o cadastro político. As recolhas de vários mapas permitem o aparecimento de novos ‘atlas’, e finalmente dos ‘planisférios’ em que o globo era representado sob a forma de superfície.
Com esta eliminação da terceira dimensão (a profundidade), o bidimensional impõe-se ao tridimensional. Como já acontecera com a utilização da perspetiva no Renascimento, a imagem sobrepõe-se ao corpo. Estão abertas as vias para a conquista do mundo como imagem.
Este “achatamento” do mundo, que deriva do facto de só poder ser dado por conquistado aquilo que se conseguir reduzir de uma dimensão, ou seja, reduzido a mapa, é decidido pelo soberano. O levantamento cartográfico é o verdadeiro título de propriedade sobre a terra desconhecida. Os tratados feitos com os povos indígenas, enquanto para estes eram acordos de amizade, eram para os europeus tratados de submissão e de exploração.
Carl Shmitt, o jurista preferido de Hitler, escrevia:
“É pois totalmente falso dizer que, da mesma maneira que os espanhóis descobriram os Aztecas e os Incas, estes teriam podido, inversamente, descobrir a Europa. Falta aos Índios a força associada ao saber da racionalidade de cristo-europeia e seria grotesca ucronia imaginar que teriam podido fazer levantamentos cartográficos da Europa tão bons como os que os Europeus fizeram da América. […]
Os descobrimentos fazem-se sem o acordo prévio do descoberto, pelo que o seu título de propriedade decorre de uma legitimidade superior. Só pode descobrir quem dispõe de uma intelectualidade intelectual e histórica suficiente para compreender o que descobriu com o seu saber e a sua consciência.”
Na realidade, à época, a legitimidade dos descobrimentos tal como foram feitos, não era minimamente posta em causa. Essa legitimação, essa ausência de escrúpulos jurídicos, era assumida por toda a sociedade. Afinal eles eram feitos por quem traz consigo um bem de valor superior ao levar a salvação de Cristo ao Novo Mundo. O próprio imaginário da sociedade convivia e alimentava-se dessa legitimação.
É assim que vemos Camões nos seus Lusíadas, bastantes anos depois, justificar a viagem para a Índia mandada efetuar por D. Manuel com o aparecimento em sonhos de dois sábios que convidam o rei a armar uma frota para ir conquistar os rios Indo e Ganges. Quando Shakespeare descreve no Rapto de Lucrécia os “seus seios, como globos de marfim de azul orlados, Dois mundos virgens e não conquistados… Despertando em Tarquínio uma nova ambição”, está interiorizando/exteriorizando o sentir da época, segundo o qual bastava que “um objeto fosse redondo, desejável e desse a impressão de dormir, para que pudesse ser descrito como mundo possível de ser conquistado”.
As novas terras encontradas, a sua abundância, são o sinal de que elas foram postas à disposição das novas gerações para seu gozo e usufruto. Este sentimento de predestinação, esta arrogância, cedo se transforma na prática de extermínio, pirataria e tráfico negreiro. Sem qualquer razão aparente, Vasco da Gama manda incendiar e afundar um navio mercante com duzentos peregrinos para Meca. Estávamos ainda em 1497.
O que se lhe seguiu, a pirataria e o tráfico negreiro, além de virem a ser o fenómeno de ponta da criminalidade da globalização, levam ainda Sloterdijk a considerá-los como a primeira forma empresarial de ateísmo: “Quando Deus está morto, ou não está a olhar, nos mares sem lei, fora das zonas de respeito condicionado, também o inconcebível é possível”.
Essencialmente o que aquela época moderna nos mostra é uma cultura de ofensiva e expansão, onde num horizonte de incerteza se assumiam riscos calculados num campo de ação global. Onde o gosto pelo risco era incentivado pela necessidade de se realizar lucro para que as dívidas associadas aos créditos de investimento pudessem ser pagas. O lucro passa a ser o dinheiro que alguém arriscou e que regressa à sua conta original após ter dado a volta aos oceanos.
A sociedade globalizada herdada não nos permite concluir sobre a existência de um princípio biológico segundo o qual todos os seres humanos formam uma espécie única na Terra, sobre um comportamento moral único segundo o qual se deveria de ter um pensamento solícito e compassivo para com todos os outros, sobre uma aceitação de verdades idênticas para todos. Pelo contrário, a tendência de todos os humanos é para ignorarem a grande maioria dos outros seres humanos que se situem fora do seu próprio contentor étnico.
As promessas de abundância até conduziram a situações de superabundância, só que se concentraram num continente artificial, dinamizado e animado pelo conforto sobre oceanos de pobreza, originando até uma inversão dos valores da civilização. É assim que o “apartheid” eliminado na África do Sul passa a ser generalizado em todo o espaço económico atual, tornando invisível a pobreza nas zonas de prosperidade e a segregação dos ricos nas zonas de esperança zero.
Seguiu-se um modelo em que bem vistas as coisas nos conduziu a alimentarmo-nos de carvão e petróleo que foram transformados em produtos comestíveis pela agricultura industrializada. O horror dos números: Só na Alemanha consome-se por ano 400 milhões de frangos, 31 milhões de perus, 14 milhões de patos, 44,3 milhões de suínos, 4,3 milhões de bovinos e 2,1 milhões de ovinos!
Mas em compensação alargamos os nossos horizontes. Voamos agora confortavelmente para qualquer parte do mundo, comemos sushi nos arranha-céus de qualquer deserto, enfim somos “cosmopolitas”. Ou seja, somos provincianos mimados em viagem, reflexo que dá ao espaço interior do mundo capitalista um toque de abertura a tudo o que se pode obter em troca de dinheiro. Mas não exagerem. Lembrem-se do que disse Mussolini: ”O fascismo é o horror da vida confortável”.
Convém também voltar a ler o Moby Dick de Melville:
“O que era pois a América em 1492 senão um peixe-à-solta sobre o qual Cristóvão Colombo plantou p pendão espanhol, a fim de o marcar para suas majestades, o seu senhor e a sua senhora? Que era a Polónia para o czar? E a Grécia para os turcos? E as Índias para a Inglaterra? E, por fim, o que foi o México para os Estados Unidos da América? Tudo peixes-à-solta.
Que são os direitos do homem e a liberdade do mundo senão peixes-à-solta? […] A totalidade do nosso globo, não é ela um peixe-à-solta?”
É o que somos: “peixes-à-solta”, caça livre à disposição de quem primeiro nos apanhar.