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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Nazis fora das escolas

Os nazis ficarão sempre na história como o maior e mais terrível regime do assassínio em massa, mesmo que não tivessem feito o Holocausto.
À medida que as execuções prosseguiam, os membros do batalhão iam ficando cobertos com sangue, miolos e pedaços de ossos.”
Um dos polícias ‘especializou-se’ e só matava crianças porque tinha pena com o que lhes iria acontecer depois das mães terem sido mortas.
No campo de Treblinka, que contava com apenas 30 alemães, 120 guardas ucranianos e 800 trabalhadores escravos (prisioneiros e vítimas), foram mortas mais de 950.000 pessoas só num ano. Isto é uma demonstração de moderna eficiência industrial.
As bestas querem arrebatar-nos o que nos resta de dignidade, querem deixar-nos apenas só com os instintos animais”, Odette Elina.

 

Todos temos conhecimento de massacres acontecidos em várias sociedades ao longo dos séculos, grande parte deles oriundos do calor do momento (“battlefield frenzy”) em que soldados, ao verem os seus amigos /camaradas mortos, matam indiscriminadamente prisioneiros e civis, ou ainda feitos em ações limitadas e esporádicas, de que podem servir de exemplos os acontecidos em My Lai, no Vietname e em Wiriamu em Tete, Moçambique. Ou até de massacres que podem levar à extinção de povos, mas que não resultam de ações previamente premeditadas e impostas, como foi o que aconteceu com os Índios na América.
Outra coisa totalmente diferente é o massacre continuado e feito a sangue frio, no cumprimento ‘racional’ de um desígnio político nacional, levando a que os seus nacionais cometam as maiores atrocidades sempre no convencimento que as suas ações eram não só justificadas como justas e necessárias.

 

Em 1992, é publicado um estudo de Christopher Browning, professor de história na Pacific Lutheran University em Tacoma, Washington, intitulado Ordinary Men: Reserve Police Battalion 101 and the Final Solution in Poland, sobre a atuação da Unidade de Reserva 101 da Polícia da Ordem Alemã no massacre e envio de 83.000 judeus para campos de morte nazis na Polónia em 1942.


Esta Unidade 101 era constituída por homens de meia-idade (trintas e quarentas) maioritariamente (63%) da classe trabalhadora (comerciantes, polícias, motoristas, lojistas, empregados de mesa, pedreiros) e 2% da classe média (professores e farmacêuticos), que devido à idade tinham sido considerados como inaptos para o serviço militar obrigatório. Apenas uma minoria (25%) era membro do partido nazi ou tinham pertencido às SS. Muito poucos eram independentes economicamente. A maioria era de Hamburgo, uma das cidades menos nazificadas da Alemanha.


O Batalhão 101 era formado por 11 oficiais, 5 funcionários administrativos e 486 suboficiais e soldados. Os soldados tinham carabinas e os oficiais metralhadoras. Cada uma das três companhias que o compunham dispunha de metralhadoras pesadas. O comandante era o major Wilhelm Trapp (53 anos), polícia profissional e membro do partido nazi; doze dos oficiais subalternos pertenciam também ao partido nazi, sendo alguns das SS.


Estas unidades de polícia foram criadas devido à necessidade da mobilização de todas as forças para a campanha militar que se estava já a desenvolver na União Soviética, e que não permitia que o programa de aniquilação dos judeus a concentrar na Polónia pudesse prosseguir de acordo com o planeamento previsto. A solução encontrada fora a de recorrer à utilização de outros três tipos de ‘mão de obra’: a da etnia alemã local; a dos “Trawnikis” (Ucranianos, Lituanos e Estonianos recrutados entre prisioneiros de guerra Soviéticos que desejassem trabalhar para os Alemães e que tinham sido treinados para operações de assassinato no campo de Trawnikis), e a dos batalhões de Polícia de Ordem (a que pertencia o Batalhão de Reserva 101).


Em Junho de 1942 foi-lhes atribuída a missão de aterrorizarem os judeus nos ghettos enquanto decorria a Operação Reinhard.
Depois disso, a primeira operação de assassinato em massa que lhes é ‘dada’ vai ser realizada em Jozefow, uma vila com 1.800 judeus. A ordem era para separar e enviar para os campos de concentração em Lublin todos os judeus com suficiente idade para trabalhar; mulheres, crianças, e velhos deveriam ser todos mortos. O médico do batalhão mostrou como se devia disparar para se causar a morte instantânea da vítima, indicando o ponto exato em que se devia colocar a baioneta que serviria de guia para apontar. O comandante da unidade, por entender que a situação poderia ser demasiado violenta, deu a oportunidade aos seus homens de pedirem dispensa dessas funções, se o quisessem. Desse batalhão de 500 homens, só doze optaram por não participar.


Depois de despacharem os homens para os campos de concentração, meteram 1500 mulheres, crianças e velhos em camiões em direção à floresta próxima. Em cada camião seguiam igual número de polícias e de judeus. Chegados à floresta, foi dada ordem aos judeus para se deitarem no chão, com a cabeça para baixo. Cada polícia colocava agora a sua baioneta na parte detrás do pescoço e disparava. Este processo seguia-se sem interrupção ao longo do dia, por turnos de ‘serviço’, até ao anoitecer.
À medida que as execuções prosseguiam, os membros do batalhão iam ficando cobertos com sangue, miolos e pedaços de ossos, o que levou que alguns dos polícias (20%) deixassem, a partir de certo ponto, de disparar.


De qualquer modo, depois de Jozefow, os assassinatos tornaram-se cada vez mais fáceis de executar. Passado o horror inicial, o sadismo e o divertimento fizeram a sua aparição: os judeus, preferencialmente velhos e com barbas, eram obrigados a rastejar nus para as valas, à medida que iam sendo espancados com bastões e coronhas de espingardas, antes de serem mortos. Um dos oficiais chegou a mandar vir da Alemanha a sua mulher grávida para que ela assistisse à sua mestria a matar judeus. Um dos polícias ‘especializou-se’ e só matava crianças porque tinha pena com o que lhes iria acontecer depois das mães terem sido mortas.


Em Novembro de 1943, quando Himmler se apercebeu que os judeus usados para trabalhar nos campos se começavam a revoltar e opor resistência, resolveu que o melhor era acabar com todos. Organizou um “festival das colheitas” com a participação dos SS e outras unidades de polícia de toda a Polónia, incluindo o Batalhão 101, com a finalidade de num espaço de poucos dias acabar com todos os judeus da região. Cerca de 18.000 judeus foram reunidos no perímetro do campo de Majdanek; convidou os Polacos para assistirem como, ao som de música e altifalantes, os judeus eram conduzidos nus para valas e obrigados a deitarem-se em cima de outros judeus que já tinham sido mortos. Eram depois metralhados. A que se seguia nova camada.


No dia seguinte, o Batalhão 101 participa também no massacre de mais 14.000 judeus em Poniatowa. No final do “festival das colheitas”, os 500 homens do Batalhão tomaram parte na morte de pelo menos 38.000 judeus, e do envio para as câmaras de gás de Treblinka de mais de 45.000. No total da sua atuação, um batalhão de 500 soldados fora responsável pela morte de pelo menos 83.000 judeus, o que não deixa de ser um feito.
Mas os nazis conseguiam fazer ainda melhor e mais eficientemente optando pela solução final das câmaras de gás: no campo de Treblinka, que contava com apenas 30 alemães, 120 guardas ucranianos e 800 trabalhadores escravos (prisioneiros e vítimas), foram mortas mais de 950.000 pessoas só num ano. Isto é uma demonstração de moderna eficiência industrial.


Depois da guerra, muitos membros do batalhão regressaram às ocupações que tinham de antes da guerra. Foram condenados o comandante e um oficial (executados), e um polícia (oito anos de prisão). Mesmo assim, estas três condenações excedem a média individual das sentenças condenatórias proferidas pelos tribunais da Alemanha Ocidental, pelo que podem ser consideradas como punição exagerada.

Mas desengane-se quem pense que apenas foram judeus os perseguidos. Muitos daqueles que praticaram a eutanásia nos campos de morte começaram primeiro por a ‘exercer’ matando doentes mentais alemães na Mãe pátria. E muitos daqueles que procederam à morte de judeus, já antes tinham exercido esse seu ‘trabalho’ na matança de outros grupos para além dos judeus. As primeiras grandes matanças foram feitas no território da União Soviética, onde só até Abril de 1942 já tinham sido mortos muitos mais prisioneiros de guerra russos (mais de dois milhões) do que todos os judeus.


Tinha portanto de haver uma outra qualquer motivação para eliminar pessoas que fosse para além do simples antissemitismo. Qualquer coisa existiria nesse regime bem como na forma como ele se relacionava com o seu povo, que o levava a assassinar em massa numa escala inimaginável, mesmo que não existissem judeus.
Seja o que for, os nazis ficarão sempre na história como o maior e mais terrível regime do assassínio em massa, mesmo que não tivessem feito o Holocausto.

 

Contudo, esta simples contabilização do número de assassinatos, bem como da forma com que se revestiram e dos locais onde ocorreram, constitui apenas a face mais visível e mediatizada do regime nazi, a sua face mais ligeira, que tem sido utilizada, voluntária ou involuntariamente, para encobrir a sua verdadeira face, essa sim abominável.


Alguns prisioneiros dos campos de morte que sobreviveram, deixaram-nos testemunhos escritos, que talvez nos possam elucidar sobre essa face. Ouçamos Primo Levi (1919 – 87) em Se isto é um homem, Elie Wiesel (1928 -) em A noite, a aurora, o dia, e Odette Elina (1910 – 91) em Sem flores nem coroas:


É homem quem mata, é homem quem comete ou sofre injustiças; não é homem quem, perdido todo o recato, compartilha a cama com um cadáver. Quem fica à espera que o seu vizinho acabe de morrer para lhe retirar o pedaço d e pão, está, mesmo que sem culpa sua, mais longe de um homem pensante que o sádico mais atroz”.

 

Conselho do judeu, chefe da camarata, ao miúdo que estava a dar da sua ração ao pai doente: “Escuta-me bem, miúdo. Nunca te esqueças que estás num campo de concentração. Aqui, cada um deve lutar por si mesmo sem pensar nos demais. Nem sequer no seu pai. Aqui não há pai que valha, nem irmão, nem amigo. Cada um vive e morre para si, só. Dou-te um conselho: não dês mais a tua ração de pão e de sopa ao teu velho pai. Não podes fazer nada por ele. E matas-te a ti mesmo. Pelo contrário, devias ficar com a ração dele”.

 

Ao sair do vagão houve logo uma seleção prévia. De aproximadamente mil e quinhentas mulheres que formavam parte do nosso comboio, só noventa e nove chegaram vivas ao Campo. Despojaram-nos de tudo. Vimo-nos nuas, tatuadas, rapadas. Brutalmente. Às polacas encheram-nas de pancada. Assim, sem mais, para nos inteirarmos de imediato o que era o ambiente do campo. Logo nos mandaram para os chuveiros. Sem sabão nem toalha. E ali ficámos o resto da noite em pé, num balneário com janelas sem vidros. Esperando sem saber o quê. Ao amanhecer entregaram-nos algumas roupas de homem, desgarradas, um sapato de homem e outro de mulher, evidentemente de números diferentes.
[…] Esta manhã vieram buscar cem mulheres. Como sempre, não sabíamos se íamos ser conduzidas para o forno, para o controle de piolhos, ou para outro campo…Devíamos conduzir cem carros de bebé… para recolher os bebés que acabavam de ser queimados. As almofadas conservavam ainda a forma dos seus pequenos crânios … para fazer aquele trajeto escolheram cem mulheres. Cem mulheres que eram mães ou que o poderiam ser.
[…] Anka, a minha pequena morta de sete anos. Uma garotita que parecia velha. Cada dia se tornava mais esquálida, supurava mais, maior era a sua diarreia: também mais autoritária, mais malvada, mais miserável, mais moribunda. Morreu. Ninguém quis ajudar-me a carregar o corpo. Um morto, quando cresce até aos sete anos, pesa. Tive de a arrastar pela neve até ao montão de cadáveres.

 

Para se entender melhor este ‘naufrágio moral’ da humanidade, devemos olhar para as vítimas e não só para os verdugos. Estes são por definição maus e nada se pode esperar deles. Mas, e do comportamento das vítimas? Estas vítimas judias, são também as que acionavam as câmaras, incineravam os corpos e moíam os ossos. Não saímos melhores”.

 

Não são pois o número de mortes e de maus tratos que constituem a verdadeira face do nazismo. A verdadeira face está nesta desumanização intencionalmente praticada, que acaba por levar as próprias vítimas a considerarem-se como culpadas, ou a considerarem-se como nada. Como tão lucidamente percebeu Odette Elina quando escreveu:


As bestas querem arrebatar-nos o que nos resta de dignidade, querem deixar-nos apenas só com os instintos animais”.


Foi sempre essa a intenção. Retiravam-lhes a dignidade humana e depois acusavam-nos de, por não terem dignidade humana, não poderem ser tratados como humanos.
Pequenos truques para esconder a indigência moral e intelectual do nazismo: envolvam-no em belas fardas com paradas monumentais, discursos patrióticos, projeções e bandas sonoras apropriadas e ficamos todos prontos para ir para os Coliseus assistirmos às matanças dos cristãos e dos outros, sejam eles quem forem. Tristes ‘humanos’ de braço levantado e cabeça encolhida.

 

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