Mudar de dono: Sim/Não?
“Se os votos alterassem alguma coisa, eles não nos deixariam votar”, atribuído a Mark Twain.
Imaginemos dois rebanhos, um de cabras e outro de ovelhas: acreditar que quem ganhou foram as ovelhas ou as cabras é não perceber que quem ganha são sempre os pastores.
Julgo que ninguém duvida que, na sua base, os governos britânicos e os da união europeia têm métodos operacionais idênticos e seguem políticas semelhantes.
Daí, que não seja de estranhar que o divórcio que se verifica entre o povo e as políticas governamentais seguidas vá na mesma direção.
Por exemplo: muito embora a campanha dos que queriam sair da EU apontasse para o restabelecimento da soberania do povo, o facto é que a democracia britânica tem sempre operado mais através de uma subtil manipulação do que por uma genuína consulta popular.Há muito que as preferências populares vêm sendo negligenciadas pelo sistema eleitoral britânico.
A constatação é fácil: nas eleições de 2015, o partido trabalhista apesar de ter aumentado 1,4% o número de votos, perdeu 26 deputados. Em 1983, no campo oposto, Margaret Thatcher, apesar de ter perdido quase 700.000 votos, ganhou dúzias a mais de deputados.
Ou seja, para se ganharem eleições não se torna necessário ter mais votos, mas antes ter mais lugares, conseguidos através da canalização de dinheiro para causas populares e fáceis em detrimento de causas necessárias e difíceis. Esse é o dinheiro que vem dos grandes interesses, daí a côrte que ambos os maiores partidos fazem às grandes empresas de construção, aos investidores financeiros, aos magnates dos média e à indústria de bebidas alcoólicas.
E como isso exige contrapartidas, o povo britânico vive agora debaixo de um regime de cortes sociais, de privatização dos cuidados de saúde e precarização do trabalho, apesar de só um quarto deles ter consentido em tal com o seu voto.
É óbvio que este estado de coisas não vai mudar com a saída da EU! Nem com a sua permanência na EU!
Na UE passa-se o mesmo. O vice-primeiro ministro Nick Clegg, favorável à continuação na UE, apresentava o seguinte lamento/argumento a favor da democraticidade da organização:
“A UE levou quase 30 anos para acordar numa definição de chocolate – em parte porque os puristas continentais objetavam à inclusão de gordura vegetal como principal ingrediente, presente em muitas barras de chocolate inglesas.”
E concluia: “Um organismo que leva três décadas a definir chocolate, pode ser acusado de muitas coisas – no mínimo vagaroso e burocrático – mas certamente não poderá ser considerado como antidemocrático.”
Como esta Guerra do Chocolate não foi uma luta sobre gostos culinários, mas antes um esforço concertado entre os maiores fabricantes de chocolate do mundo (Nestle, Cadbury, Mars, Hershey, Jacob Suchard – da Philip Morris – e Ferrero) para que o mercado continental europeu se abrisse aos seus chocolates mais baratos e de menor qualidade, ficamos a saber quais são os valores democráticos porque se regem os governos britânicos e europeus.
Aliás, basta verificar a lista de encontros diários e constantes dos Comissários Europeus (www.ec.europa.eu/transparecyinitia) com os principais representantes das maiores empresas globais, seus advogados e seus grupos de consultores e técnicos ‘independentes’. Não é de estranhar que tudo o que não seja de interesse para os negócios fique negligenciado.
Percebe-se agora melhor a campanha do Ficar na UE. Afinal, trata-se de defender um mesmo processo de governar a que os governos britânicos já estão habituados.
Devido às diferenças entre as duas posições serem muito ténues, assistiu-se a uma campanha com argumentos muito confusos, primários e falsos. Tentando jogar com as reais preocupações das pessoas, quando, por exemplo, se perguntava se ‘Queres um trabalho decente?’ o que se estava era a insinuar se ‘Há muitos imigrantes?’, e no limite se ‘Pensas que a UE faz alguma coisa?’
Nada de discutir assuntos como o salário mínimo ou a habitação condigna, a crescente desigualdade, a especulação financeira, a política de imigração, a segurança nacional, ou as relações entre as várias regiões do Reino Unido. O assunto a discutir é só o ser a favor ou contra a permanência na UE, mas sem nada se prometer e sem nada ser certo.
Fica-se entre as promessas e as projeções de maior ou menor riqueza, em mais ou menos tempo, nada a que os comentadores de prognósticos de futebol e de economia não nos tenham habituado.
Para o conhecido jornalista britânico Tom Ewing, o resultado do referendo deve-se “à arrogância das elites neoliberais e das suas políticas que sempre pretenderam pôr de lado e rodear a democracia, deixando-a, contudo, formalmente intacta.”
Para o filósofo Michael Sandel: “Um grande número de votantes da classe trabalhadora sente que não só a economia os deixou para trás, mas também a sua cultura, as fontes da sua dignidade, a dignidade do trabalho, foram sendo socavadas e ridicularizadas pelo desenvolvimento da globalização, pela importância crescente das finanças, pela atenção despudorada que os grandes partidos prestavam ao económico e às elites financeiras e pela enfâse cada vez mais tecnocrática.”
Para o jornalista do Los Angeles Times, Vincent Bevins, “desde os anos oitenta as elites dos países ricos têm exagerado, ficando com todos os ganhos para elas e tapando os ouvidos quando alguém falava sobre isso, e agora vêm com horror a revolta dos votantes.”
No geral, as reações da elite política e dos media institucionalizados, podem ser agrupadas em dois tipos: as que pretendem inutilmente tentar entender porque tanto se enganaram, e as que atacam os votantes do Sair, por serem ignorantes, cabeças duras, estúpidos, xenófobos.
As elites financeiras, académicas, políticas, e jornalísticas, adoram o estatuto que essa sua posição lhes dá. Esse estatuto recompensa-os, envolve-os em prestígio e posição, acolhe-os em círculos exclusivos, permite-lhes estarem perto do poder enquanto percorrem o seu país ou o mundo, dá-lhes uma plataforma de visibilidade, enche-os de autoestima e dá-lhes um sentimento de missão messiânica (evidentemente sem o Messias, aliás, até contra o Messias).
Não é, pois, possível que estas mesmas elites que ajudaram à implementação da miséria e desigualdades crescentes, ao esvaziamento de cidades e à inúmera falência de comércios, consigam minimamente concluir seja o que for sobre as causas que levaram ao voto maioritário da Saída, sem se porem em causa.
As várias causas que ‘abraçaram’ e de que se fizeram arautos, desde a destruição do Iraque baseada em pressupostos falsos, os esquemas de corrupção que deram origem à crise económica de 2008 e que os encontrou colocados do lado da defesa dos plutocratas advogando como única saída a globalização crescente e a austeridade sem qualquer preocupação pela destruição da segurança económica que essas políticas originavam, o bombardeamento da Líbia e a instauração da anarquia prevista, o Estado Islâmico como produto subsidiário das guerras impostas ao Iraque e à Líbia, os sucessivos escândalos financeiros para os quais invariavelmente advogavam sempre a solução de serem suportados pelos mesmos, tudo isto e muito mais, levam, embora eles não acreditem, a que “os mesmos” comecem a pôr em causa quem os governa e quem os informa.
Como nota Chris Hayes em O Crepúsculo das Elites:
“Dada a amplitude e profundidade da desconfiança [nas instituições das elites], é claro que estamos no meio de algo muito maior e mais perigoso do que uma simples crise de governo ou do capitalismo. Estamos é no meio de uma mais larga e devastadora crise de autoridade.”
Esta crise de autoridade (não de polícia, não de maior coerção, não de mais armas), é também rapidamente apercebida por forças xenófobas, autoritárias, racistas, fascistas, que se manifestam e organizam perante este vácuo de autoridade.
As políticas plutocráticas com esta austeridade, ao privarem largas porções das populações de oportunidades básicas e esperança, ao promoverem o sofrimento económico sem fim à vista, torna as pessoas mais recetivas à aceitação de retóricas políticas de extrema direita, que, ao atribuírem a culpa às minorias e aos estrangeiros, dão-lhes ilusões para a resolução dos seus problemas (M. Funke, M. Schulaick, Going to extremes: Politics after financial crises, 1870-2014).
É exatamente por isto que as políticas plutocráticas e desta austeridade são tão perigosas.
Todos aqueles que se mostram satisfeitos e agradados com as tão desinteressadas e neutras instituições internacionalistas de salvaguarda do sistema, o Banco Mundial, o FMI, a NATO, a Reserva Federal, Wall Street, a City e aUE, não podem entender como há pessoas que, não só possam estar desiludidos com essas instituições, mas, crime dos crimes, até se queiram afastar delas.
Tendo sempre sido protegidos pelo sistema, não conseguem entender o sofrimento e revolta que ele causa nos outros.
Fazem parte do grupo de pessoas que tendo concordado com o bombardeamento de países muçulmanos, não percebem porque é que eles os queiram atacar. Procuram, em vão, tentar encontrar por todos os meios um racional que lhes explique o Brexit. Não o conseguindo, concluem: “Estas pessoas não têm quaisquer motivos legítimos provenientes de mágoas, ressentimentos ou de sofrimento económico. Elas são apenas pessoas gastas, velhas, ingratas, imorais, que tudo odeiam, racistas e ignorantes.”
Ou seja, em vez de atribuírem para si a responsabilidade pelos principais falhanços de situação criada, canalizam as suas energias para a demonização das vítimas da sua corrupção, tentando com isso deslegitimar as queixas e retirar deles a responsabilidade pela situação.
Chegam ao cúmulo, depois de acusarem os do ‘Saio’ como intolerantes, de responsabilizarem os mais velhos por cortarem as pernas aos mais novos, como se os mais velhos (e mais velhos serão quem? Os que têm 30 ou 40 ou 70?), pelo facto de serem velhos fossem estúpidos, imorais, ignorantes. Bem sabemos que só são tudo isso porque não votaram ‘Fico’: aí seriam tolerantes, inteligentes, preocupados com o futuro! A intolerância escondida com rabo de fora!
A minha proposta para que se mantenha o mito da democracia é que se façam novos referendos até que ganhem (procedimento já várias vezes utilizado), e se mesmo assim não ganharem, sugiro que da próxima vez ponham as crianças a votar. Essas é que sabem, e, para além do mais, têm o futuro (que não sabem) à sua frente.
Em boa verdade, as únicas duas ‘escolhas’ do referendo tinham que ver apenas com o tipo de neoliberalismo que aos britânicos se lhes oferecia: se o neoliberalismo britânico, se o neoliberalismo europeu.
Dizer que ganharam os do ‘Saio’ ou o dos ‘Fico’ é ver o problema dentro de baias. Imaginemos dois rebanhos, um de cabras e outro de ovelhas: dizer que ganharam as ovelhas ou as cabras é não perceber que quem ganha são sempre os pastores. Como é o caso!