Mover as regiões infernais
“Todos condenamos a distinção de classe, mas são muito poucos os que querem seriamente aboli-las”, George Orwell.
“A Igreja, enquanto instituição deve ser investigada tendo em vista o modo como cria sistematicamente condições que favorecem os crimes em causa”, Slavoj Zizek, referindo-se à pedofilia.
“Todo o choque de civilizações é na realidade o choque entre as barbáries que lhes estão subjacentes”, Walter Benjamin.
“Moverei as regiões infernais” é uma citação de Virgílio que Freud usa em epígrafe na sua extensa obra sobre a Interpretação dos Sonhos.
Segundo Freud, os sonhos estavam intimamente relacionados com essas regiões interiores que precisavam ser agitadas e perturbadas. Mas, se virmos bem, não serão só os sonhos que precisam de ser abanados: toda a nossa vida quotidiana, os nossos costumes, assentam em mundos subterrâneos, por vezes muito escuros, que necessitam ser revolvidos. Falemos de alguns deles.
Sabemos que pertencer a uma sociedade trás consigo momentos em que nos é ordenado que aceitemos livremente (obviamente fazendo a ‘nossa’ escolha), aquilo que de outra maneira nos é imposto. Daí que a livre escolha não passe de uma aparência de livre escolha onde não há escolha. Dizem os teóricos que a livre escolha não passa de um “gesto simbólico vazio”, na medida que é normalmente um gesto que se destina a ser rejeitado.
É o que se passa, por exemplo, quando pedimos desculpa a outra pessoa. Depois da ação feita, esse pedido de desculpa não irá reverter a ação, de nada servindo. Daí o outro, também convencionalmente, dizer ‘de nada’ ou ‘não é preciso’. Mas será mesmo assim? O pedido de desculpas é meramente formal? Não é, porque a diferença é que podemos salvar uma amizade.
A forma nunca é uma ‘mera’ forma, tem sempre uma dinâmica própria que deixa marcas na vida social. Daí que quando nos dizem que as ‘liberdades burguesas’ são meramente formais, esquecem-se que foram elas que propiciaram exigências políticas e materiais, desde o sindicalismo até ao feminismo. Mais: se elas não perturbam o poder (pelo simples fato de serem só formais) então porque não são (foram) permitidas?
Para se poder viver numa sociedade temos de seguir um certo número de regras que nos aparecem como costumes. Os costumes são um conjunto complexo e intrincado de regras informais que nos permitem saber lidar com as normas explícitas da sociedade em que vivemos, para que as saibamos aplicar e aceitar, mesmo quando essa aceitação implique um jogo de desrespeito mutuamente consentido.
São usos e costumes as nossas ideias sobre o mal e o bem, sobre o que é agradável e desagradável, o que é divertido e sério, o que é belo e feio, bem como o sentido de honra, os modos à mesa, o modo de falar, o sotaque, o vestuário, o cheiro. Tudo isto são ideias da classe média em que estamos inseridos e que nos definem como seres sociais, muitas vezes contrastando com a perceção que temos de nós próprios.
Mesmo assim devemos estar atentos às diferenças que surgem: por exemplo, nos EUA os prédios começam com o piso 1 ao passo que na Europa tal é considerado como r/c ou piso 0; os elevadores nos hotéis americanos não têm botão de décimo terceiro piso, passando do 12º para o 14º. Se o primeiro caso se pode explicar pela não existência de tradição pré-moderna nos EUA (a tradição europeia é a da existência de um nível já inicialmente existente antes de se ter começado a numerar), o segundo (para não dar azar) não passa de um truque para enganar Deus, o que torna o seu Deus um simples prolongamento dos seus euses acriançados, leves e individuais: numa sociedade que se crê fundamentalmente religiosa, Deus não é percebido como o fundamento do ser.
Curioso também o que se passa com o cheiro. O cheiro é talvez a característica que mais define a classe média, pois ela sente que as classes que lhe são inferiores têm cheiro, mau cheiro, especialmente porque não se lavam com a regularidade que o deviam fazer. Daí a proliferação de sabonetes, desodorizantes, perfumes, não vão eles terem o cheiro das classes baixas. É tal a importância deste assunto que até o Ministério da Saúde holandês recomenda aos seus cidadãos que libertem gases pelo menos quinze vezes ao dia para evitar pressões internas prejudiciais. E começaram a aparecer no mercado latas de feijões que não produzem nem flatulência nem mau cheiro. Basta, portanto, ir à dispensa de alguém para se saber a que classe pertence.
Em The Road to Wigan Pier, George Orwell escrevia em 1937:
“Todos condenamos a distinção de classe, mas são muito poucos os que querem seriamente aboli-las. Encontramos aqui o fato notável de que qualquer opinião revolucionária extrair parte da sua força de uma convicção secreta de que nada mudará […] Enquanto se trata simplesmente de melhorar a sorte dos trabalhadores, qualquer pessoa decente está de acordo […] Mas infelizmente não se vai longe quando nos limitamos a desejar varrer as distinções de classe […] O que temos de enfrentar aqui é que abolir as distinções de classe significa abolirmos uma parte de nós próprios. Aqui me têm, um membro típico da classe média. É-me fácil dizer que gostaria de acabar com as distinções de classe, mas quase tudo o que penso e faço é resultado dessas distinções de classe […] Tenho de ser capaz de me transformar tão completamente que no fim dificilmente seria reconhecível como continuando a ser a mesma pessoa.”
Mas os usos e costumes não se restringem só a esta parte leve e séria acima exposta. Há também aquela parte subterrânea pesada e obscena, extremamente difícil de transformar, que constitui o inconsciente dos costumes. São casos recorrentes como, por exemplo, os da pedofilia na Igreja Católica (não só), os das praxes militares e os das torturas infligidas.
A gravidade do problema da pedofilia na Igreja vem essencialmente do fato da cobertura que a hierarquia lhe dá. Mesmo que todos os pedófilos do mundo resolvessem acolitarem-se na Igreja, a Instituição não deveria conviver com as realidades patológicas da vida libidinal de cada um. Fazê-lo significa aceitá-lo como algo que necessita para a sua sobrevivência, para a sua reprodução. Há como que a criação de um ‘espírito de corpo’ (sem ser literalmente) que pode levar até sacerdotes que não sejam pedófilos acabarem por virem a ser pedófilos só para se sentirem dentro da lógica da instituição. Leva certamente a que muitos sacerdotes não a tenham denunciado, exatamente para não se sentirem excluídos. Trata-se de um “inconsciente institucional” (neste caso na defesa de um segredo obsceno íntimo) e que não pode ser resolvido apenas com a condenação individual dos crimes. “A Igreja enquanto instituição deve ser investigada tendo em vista o modo como cria as condições que favorecem os crimes em causa”.
Nos exércitos (e outras instituições) utilizam-se rituais de humilhação sexualizados e obscenos com vista a alcançar a ‘solidariedade’ do grupo. Um dos resultados desta ‘solidariedade’ observa-se no tratamento brutal dado aos homossexuais: espancamentos noturnos, ostracização e outros. No entanto, entre os ‘homens’ cultiva-se toda uma série de pseudo comportamentos homossexuais que vão desde as piadas obscenas até aos meneios e contorcionismos exibidos para gáudio dos camaradas. É este submundo caraterístico dos ‘homens’, estas “regiões infernais”, que têm de ser movidas se se quiser acabar com estas práticas homossexuais implícitas que suportam a homofobia explícita.
A tortura propositadamente infligida a outros seres humanos, nomeadamente em instituições fortemente hierarquizadas, como nas forças armadas, faz também parte deste mundo subterrâneo e escuro dos costumes. Tomemos o exemplo de Abu Ghraib, a prisão no Iraque onde soldados americanos tiraram fotografias torturando e humilhando presos iraquianos. Se não soubéssemos que as fotografias se referiam a acontecimentos numa prisão no Iraque, facilmente acreditaríamos, sem estranhar, que elas se referiam a performances de espetáculos artísticos em Nova Iorque, ou a um qualquer escândalo passado numa unidade militar americana ou num campus universitário, durante práticas excessivas de rituais iniciáticos (praxe) de tortura e humilhação, ‘necessários’ para se ser admitido como membro da comunidade. Estas práticas são comuns na sociedade americana fazendo parte da sua cultura popular, daí que notícias e fotos similares apareçam recorrentemente na imprensa.
George Bush apressou-se a vir dizer que aqueles atos eram crimes isolados praticados por soldados americanos (idêntica desculpa da Igreja relativamente à pedofilia), que não representavam os valores pelos quais a América combatia: a democracia, a liberdade e a dignidade pessoal. Note-se como positivo o fato da pressão pública ter forçado Bush a dar estas explicações, que em qualquer outro país verdadeiramente totalitário não teriam lugar (o caso seria liminarmente abafado).
Há, contudo, dois problemas relacionados com estas práticas e costumes, que têm de ser melhor analisados. É que, muito embora tal tipo de tortura psicológica possa estar entranhado na cultura popular, nos casos dos rituais de iniciação acima descritos, as provas a que cada um se submete são uma ‘livre escolha’ (a mesma ‘livre escolha’ com que um trabalhador vende a sua força de trabalho) com a finalidade de virem a ser admitidos numa comunidade para que no futuro também eles poderem vir a aplicar aqueles rituais aos novos membros. Trata-se, portanto, de um ritual de inclusão. Aplicados aos prisioneiros, que não os sofrem voluntariamente, tais rituais são rituais de exclusão que visam mostrar-lhes que não pertencem à sociedade americana.
Só que, curiosamente, ao mostrar por aqueles métodos que os prisioneiros não pertenciam à sociedade americana, o que estavam a fazer era iniciar os iraquianos na cultura americana através da sua outra face obscena e oculta. Não se tratam, pois, só de atos cruéis de soldados individuais.
Walter Benjamin defende que “todo o choque de civilizações é na realidade o choque entre as barbáries que lhes estão subjacentes”. O que leva hoje Zizek a concluir que o choque entre as civilizações árabe e americana não é um choque entre a barbárie e o respeito pela dignidade humana, mas “um choque entre a tortura brutal e anónima (como a da Saddam, iminentemente física e escondida) e a tortura como espetáculo mediático no qual os corpos das vítimas servem de pano de fundo anónimo ao sorriso dos ‘rostos americanos inocentes’ dos próprios torcionários.”
O outro problema é o que foi focado no filme A Few Good Men (Uma Questão de Honra) de Bob Reiner, com Jack Nicholson, Tom Cruise e Demi Moore. Fuzileiros americanos acusados de espancarem um seu camarada e de lhe provocarem a morte fazem-no a coberto de uma regra não-escrita (o Código Vermelho) que autoriza essa atuação quando um soldado tenha infringido as obrigações éticas dos Marines. Apesar de ilegal, esse código verbal é suposto servir para a coesão do grupo e é do total conhecimento e aprovação dos superiores. Também noutro filme, o Apocalipse Now, a missão do Willard para matar Kurtz não fica registada: “Nunca aconteceu”, conforme diz o general que transmite as instruções a Willard.
Tal como com o Código Vermelho, também aqui a norma é o secretismo daquilo que o poder faz sem nunca o reconhecer. As torturas reveladas nas fotografias de Abu Ghraib embora não diretamente ordenadas caem nesta região da legitimação superior obscena sem a qual os soldados nunca se atreveriam a fazê-las. As tais “regiões infernais” a mover.