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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Grécia: O lugar divino

Silêncio e escuta-me. Porque na verdade este lugar tem algo de divino, e se durante a minha exposição as ninfas destas ribeiras me inspirarem alguns rasgos entusiastas, não te surpreendas’. ‘Nada mais certo’, diz-lhe Fedro. E, o mestre termina: ‘Tu és a causa. Mas escuta o resto do meu discurso, pois a inspiração pode abandonar-me. Em todo o caso, isto corresponde ao deus que me possui”, Platão (Fedro, 230b).
O Pártenon […] fora construído para glorificar a prática primitiva do sacrifício de crianças, em honra de Atena”, Joan Connelly.
Que a arte se realize, mesmo que o mundo deva perecer”, Marinetti.

 

Após se ter lido o texto de Platão, ficamos com a ideia que a Atenas do século V antes de Cristo era um local idílico, em que todos os cidadãos eram livres, iguais e sábios, que passavam o seu tempo a discutir sobre o real e o ideal, enquanto passeavam tranquilamente por entre oliveiras e regatos. Um oásis.


Esta ideia foi a que nos foi transmitida pelos românticos e idealistas Alemães dos séculos XVIII que, com base nas suas leituras e traduções de obras de arte, de filosofia e de literatura grega, muitas das vezes descontextualizando-as para servirem de fundamento ou justificação para os seus sistemas de interpretação da realidade, acabaram por dar origem a esta imagem do aparecimento de um novo renascimento, desta vez grego.


Uma das caraterísticas principais da cultura grega era a sua religiosidade que a tudo se sobrepunha: nesses tempos era impossível ser-se bom ateniense se não se acreditasse no poder de Atena, padroeira da cidade, ou no de Zeus, seu pai. Sócrates fora condenado à morte em 399 a. C. ou ao desterro (que Sócrates recusou) por “não acreditar nos deuses que a cidade reconhece, por tentar introduzir novas divindades e, de com isso corromper a juventude”. Já muitos outros cidadãos atenienses antes dele tinham sido julgados e condenados exatamente pelo mesmo motivo: por impiedade.
As próprias peças de teatro (tragédias e comédias) tão aclamadas pelos românticos e idealistas alemães faziam também parte de festividades indissoluvelmente religiosas, que se realizavam num santuário de Dioniso sob a presidência do seu sacerdote, e que se inauguravam com uma purificação efetuada com sangue de porco no altar situado a meio da orquestra. Nesse primeiro dia das festas, procedia-se à imposição de uma coroa de ouro aos cidadãos beneméritos da cidade, a uma exposição dos tributos das cidades aliadas, e a uma parada e exortação aos órfãos de guerra. Só nos dias seguintes é que se realizavam as representações dramáticas: três dias para as tragédias e um dia para as comédias. Registe-se que nenhuma mulher entrava nas comédias ou tragédias: todos os papéis femininos eram desempenhados por homens. A entrada e assistência às peças era-lhes contudo facultada, muito embora para um local segregado.


O próprio Pártenon que durante todo este tempo conservou para nós a imagem criada pela interpretação do alemão Johann Winckelmann (1717 - 1768) ligando-o à república de Péricles, à democracia, à noção de liberdade individual e ao refinamento intelectual, e que veio a servir de exemplo a ser reproduzido em todo o mundo como modelo de dignidade da democracia e do conhecimento, da beleza e da intemporalidade, desde o Museu Britânico de Londres, à Caixa das Alfândegas de Wall Street em Nova Iorque, à National Portrait Gallery de Washington, ao Panteão do Quartier Latin de Paris, ao Capitólio de Havana, e muitos outros, é também hoje sujeito a novas leituras perturbadoras.


O Pártenon fora construído por Fídias durante a idade de ouro de Péricles (século V a. C.) em honra de Atena, a deusa da cidade. Na parte superior da colunada exterior há um friso que o percorre e que se supunha ser a representação das várias fases de uma cerimónia solene. Soldados cavaleiros seguidos por pessoas que levavam animais para o sacrifício com ofertas de músicos, serviçais e idosos. Ao aproximarem-se da cena central por cima da entrada oriental, podem ver-se entre outras figuras, um homem e uma criança oferecendo uma túnica (peplos) à deusa Atena.
Em 1675, o inglês Francis Vernon após visitar o templo, desenhou e inventariou os frisos, vendo neles um relato de um sacrifício, com uma procissão de animais a caminho da oferenda. Esta sua teoria caiu no esquecimento perante a leitura mais consentânea para a época feita por Wincklemann: Atenas, a razão, a democracia, a liberdade, etc.. Johann Joachim Wincklemann considerado o pai da história da arte com a sua obra principal História da Arte Antiga (1764) era, acima de tudo, um helenista numa época que procurava libertar-se da estética do rococó e barroco tardio, apresentando e defendendo a arte helénica como modelo supremo da arte.
E assim se manteve o conhecimento do Pártenon até que em 2014, a professora da universidade de Nova Iorque NYU, Joan Breton Connelly, publica no The American Journal of Archaeology um artigo, ‘The parthenon enigma’, onde, após ter estudado o friso do Pártenon removido por Thomas Bruce (Lord Elgin) no início do século XIX e que se encontra em Londres no British Museum (existem pequenas partes do friso espalhadas nos museus em Paris, Roma e Atenas), conclui que existe uma nova explicação para o friso que nos “encoraja a reavaliar a nossa compreensão sobre o festival das Pan-Atenaicas como acontecimento que vai para além de uma celebração do aniversário de Atena”.
Depois de ler os fragmentos de uma tragédia perdida de Eurípedes sobre Erecteu, que fora escrita em 423 a. C. dez anos depois de acabado o Pártenon, e que acabara por ser encontrada em papiros que envolviam uma múmia egípcia do Louvre de Paris, a Dra. Connelly concluiu que, contrariamente á interpretação tradicional que via no friso a oferta de uma túnica a Atena, a representação do friso central era antes a de Erecteu, rei de Atenas, da sua mulher Praxítea, e das suas três filhas, numa procissão sacrificial que conduziria à morte das meninas, a fim de salvar a cidade duma invasão, conforme pedido expresso pelo Oráculo de Delfos. O rei ajuda a sua filha mais nova, à direita, a desdobrar a mortalha: ela seria a primeira a morrer. A segunda filha, atrás à esquerda, leva a mortalha ainda dobrada, à cabeça; a filha mais velha entrega a sua mortalha à mãe. Atena ‘não estava pois a receber a túnica mas sim as mortalhas que cobriam os corpos das filhas de Erecteu’.
Connelly sabe que esta nova interpretação tem ‘implicações muito grandes para o nosso conhecimento sobre o papel das mulheres nos mitos e cultura Gregos’. É que para o bem da cidade, os rapazes iam para a guerra mas as raparigas iam para o sacrifício imediato. E continua dizendo que ao tempo, a vida na república de Péricles ‘era muito mais obscura e primitiva do que se crê’. Era ‘um mundo cheio de ansiedade, dominado por uma obsessão egocêntrica em definir o seu lugar no mundo, saturado de espiritualidade e marcado pela necessidade de se estar de boas relações com os deuses’. Um mundo ‘permanentemente ameaçado pela violência, pela guerra e pela morte’. O próprio Péricles era um homem marcado pela superstição. Para Connelly, a particularidade de Atenas não era o gosto pela razão mas antes o gosto por uma certa cultura da excelência.
A república não era uma sociedade em que a religião fosse um conjunto de fábulas com deuses em vez de animais, que nos transmitiam conhecimentos, dando animação e divertimento à vida. Na Grécia, a religião era tudo. A Acrópole era um recinto sagrado e não um monumento à razão. Atena, a deusa da sabedoria, não era aquela amiga sábia e compreensiva que nos têm posto na cabeça. O Pártenon, aquela estrutura de proporções e graça, fora construído para glorificar a prática primitiva do sacrifício de crianças, em honra de Atena.


Um dos problemas importantes destas interpretações é a de nos revelar a possibilidade de algo de bom (o embrião do sistema democrático, uma arquitetura equilibrada, um teatro e filosofias marcantes) poder comungar do mesmo espaço de algo de mau (deuses que exigem sacrifícios humanos, nomeadamente de crianças). Exemplo mais recente é o da relação entre a cultura Alemã e o nazismo: já Steiner perguntava como era possível ler-se Rilke à noite, ouvir-se Schubert de manhã e torturar ao meio-dia. E a resposta é que os objetos culturais, por si só, nada podem contra a barbárie, quer agora quer então. Só que possivelmente na Grécia Antiga a cultura era entendida como quadro de referências comuns, como cultivo de saber e de um encontro com outros, o que talvez tenha evitado a barbárie.


A perplexidade manifestada por Steiner aparecerá sempre que procedermos à análise de uma questão separando-a de tudo o que a rodeia. É por isso que Le Corbusier e a grande maioria dos arquitetos vê no Pártenon um tratado de geometria e de abstração ímpar, um edifício perfeito. Nem mais altura, nem mais corpo, nem mais profundidade. Tudo perfeito. Da mesma forma que os engenheiros construtores dos fornos crematórios nazis se orgulhavam das suas obras perfeitas, ao ponto de gravarem nas portas os nomes das firmas de proveniência: Thyssen, Krupp.


Ou seja: será correto não ter em consideração a finalidade das obras, sejam elas de arte ou outras? É possível extasiarmo-nos diante de uma obra que nos deveria provocar indignação e horror? Claro que sim, tudo isso já foi há muito tempo, da mesma forma que temos em casa moinhos de café Krupp e andamos em elevadores Thyssen (e tomamos aspirina Bayer, que fornecia o Ziklon-B para as câmaras de gás). E quando os islamitas radicais destroem obras de arte ‘ocidentais’ por a sua finalidade ser contra o Islão, dizemos que eles são fundamentalistas. Como dizia o José Mário Branco no seu ‘FMI’: ‘Piramiza filho, que eles tratam de ti’.

 



 

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