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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Feira de misérias

 

 “Vamos exterminá-los todos até ao último!”, um acólito de Anwar Congo.

 

Como é possível a celebração pública de uma orgia de torturas e massacres, não já como um crime necessário ao bem público, mas como uma gratificante e aceitável atividade normal?

 

 “Ele está pronto a ir a tribunal explicar que, embora não fosse um devasso, também não era um impotente”, advogado de Berlusconi.

 

 

 

The Act of Killing” é um documentário que começou a ser filmado em 2007, em Medan, Indonésia, realizado por Joshua Openheimer e Christine Cyrus, tendo como produtor Signe Sorense e Werner Herzog, e que aborda o tema de assassinos vitoriosos e da sociedade que construíram.

Foi estreado a 8 de novembro de 2012 e ganhou mais de cinquenta prémios.

Refere-se à época em que o governo da Indonésia do presidente Sukarno fora derrubado por um golpe militar em 1965 e do massacre que se lhe sucedeu: cerca de dois milhões e meio de alegados comunistas, sindicalistas, intelectuais e chineses mortos.

 

 Inicialmente o projeto era documentar a reconstituição dos massacres e assassinatos cometidos pelo conhecido grupo de Anwar Congo.

Só que “não era isso que Anwar e os seus amigos queriam realmente fazer sobre o genocídio, […] Acabámos por proporcionar a Anwar e ao seu grupo a oportunidade de dramatizarem os massacres servindo-se do tipo de filme que entendessem (westerns, filmes de gangsters, musicais). Ou seja, demos-lhes a oportunidade de escreverem o argumento, realizarem e representarem as cenas que tinham na cabeça enquanto matavam gente”.

 

Na altura do golpe militar, Anwar Congo e os seus amigos não passavam de pequenos ladrões, que organizavam e controlavam o mercado negro de bilhetes de cinema para filmes americanos não autorizados pelo regime.  Devido ao seu anticomunismo visceral, acabou por ser escolhido para chefe de um esquadrão de morte, que participaram com o exército na matança.

Só por si, Anwar, matou com as próprias mãos centenas de pessoas, gabando-se abertamente do facto, descrevendo-o em pormenor, explicando como estrangulava as vítimas com um fio de arame, técnica que tinha aprendido nos filmes de gângsteres, como se cortava uma garganta e como se violava uma mulher de forma a que o violador tivesse gozo.

Hoje ele é o fundador e chefe de uma organização paramilitar oriunda dos esquadrões de morte, que engloba ministros e outros altos cargos do Estado, não se coibindo de se gabar abertamente de atos de corrupção, genocídio e adulteração de eleições.

 

Em outubro de 2007, a televisão estatal indonésia produziu um talk-show dedicado a Anwar Congo e aos seus amigos. Durante o programa, depois de Anwar ter afirmado que as suas execuções tinham tomado como modelo os filmes de gângsteres, a apresentadora, entusiasmada, virou-se para as câmaras e exclamou:

 “Fantástico! Uma salva de palmas para Anwar Congo!

Em seguida pergunta-lhe se ele não receava a vingança dos amigos e parentes das vítimas, ao que ele responde:

 

 “Não podem. Mal levantassem a cabeça, ficavam sem ela!

 

 E quando um dos seus ‘ajudantes’ acrescenta bem alto:

 

 “Vamos exterminá-los todos até ao último!”,

 

os espetadores presentes no estúdio explodem em novas aclamações.

 

Apesar de ainda bastante longe dos ‘homens livres da Indonésia’, estas exibições públicas de obscenidades privadas, estas confissões indecentes feitas diante das câmaras de televisão, esta mistura sem vergonha da política e dos interesses dos negócios privados, tem sido o caminho trilhado pelos Berlusconis deste mundo.

A 4 de setembro de 2009, Niccolo Ghedini, advogado de Berlusconi, declarava que o seu cliente “está pronto a ir a tribunal explicar que, embora não fosse um devasso, também não era impotente”.

Estaria mesmo Berlusconi disposto a ‘mostrar’ ao tribunal a sua “potência?”

Alguém estranharia uma tal exibição pública? Era só lá estarem câmaras de televisão e público para aplaudir.

 

Estamos perante casos em que, apesar de já terem acontecido, podem, de certa forma, ser tomados como precursores de horrores por vir, indiciadores de um ‘apocalipse moral’, de um vazio moral da sociedade.

Onde cai a linha que separa o que é e não é publicamente admissível, quando até o nível mais baixo de vergonha no domínio público – que deveria levar os agentes a considerarem os seus atos como um ‘segredo sujo’ – é objeto de suspensão, tornando possível a celebração pública de uma orgia de torturas e massacres, não já como um crime necessário ao bem público, mas como uma gratificante e aceitável atividade normal?

 

Não culpemos Hollywood (Pau Santo, em tradução literal verdadeiramente adequada) ou o ‘primitivismo ético’ da Indonésia, por aquilo que são, em grande parte, os efeitos desagregadores que esta última globalização (e a primeira foi a dos descobrimentos) tem intencionalmente provocado, quando ela tenta minar a eficácia das estruturas éticas tradicionais, aplaudindo a criação de um vazio moral debaixo de um mistificador apelo a um progresso que creem único e inevitável, tendo apenas como único objetivo a maximização do lucro.

 

 

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