Fazer ou não fazer é sempre fazer
“Preferiria não” (I would prefer not to), resposta irredutível de Bartleby.
“A própria criação, para o ser, tem sempre de conter em si a possibilidade da não criação”.
“O que Bartleby nos diz é que nos devemos focalizar, não sobre a realidade, mas sobre os nossos próprios sonhos.”
“Os sujeitos obedecem não só devido à coerção física (ou à ameaça dela) e à mistificação ideológica, mas também porque investem libidinalmente no poder”, Zizek.
Herman Melville, o consagrado autor de Moby Dick, foi também um excelente contador de pequenas histórias, como a que escreveu em 1853, Bartleby, the Scrivener: A Story of Wall Street (Bartlleby, o escriturário: uma história de Wall Street). Sem grande sucesso na altura, este conto publicado no Putnam’s Magazine, é hoje considerado como sendo o precursor da literatura do absurdo, na linha de temas mais tarde desenvolvidos por Franz Kafka. Só que não apenas Kafka não teve qualquer contacto com esta obra de Melville, como só depois da sua morte é que este conto de Melville começou a ser conhecido e apreciado. Até nisto temos um absurdo: o de um percursor só “aparecer” depois daquilo de que ele fora precursor.
Bartleby trabalhava como escriturário no consultório de um advogado em Manhattan. Embora inicialmente fosse considerado como um excelente empregado que produzia uma enorme quantidade de trabalho de grande qualidade, quando um dia foi chamado pelo patrão para colaborar no estudo e execução de um documento importante, disse calmamente, sem levantar a voz: “Preferiria não”. A partir daí, o seu rendimento foi diminuindo, até que acabou por não fazer nada. Apesar das várias tentativas de conciliação do advogado, a resposta era sempre a mesma: “Preferiria não”. Despedido, Bartleby não saiu do edifício, passando o dia sentado nas escadas e dormindo à noite na entrada do edifício. Condoído, o advogado tentou demovê-lo daquela posição, chegando até a oferecer-lhe a sua casa para viver. Ao que Bartleby respondia com o irredutível “Preferiria não”. Forçado a sair do edifício, Bartleby acabou por ser preso por vagabundagem. O advogado deslocou-se à prisão para ver se ele estava a ser bem tratado, levando-lhe comida. Quando dias depois lá voltou, Bartleby tinha morrido de fome, tendo preferido não comer.
Muitas das tentativas para a explicação deste texto têm recaído em considerações sobre problemas de depressão clínica, sobre teorias do livre arbítrio e do determinismo, ou ainda sobre as más críticas ou o fracasso de vendas que foram Moby-Dick (1851) e especialmente Pierre (1852), que poderiam ter levado o autor a optar por escrever pequenos contos, começando pelo Bartleby, em que aparentemente se revia. Tudo explicações individuais para aquilo que tem a ver com um problema bastante mais geral e abrangente.
Filosoficamente, a frase irredutível de Bartleby não significa que ele não quisesse copiar ou escriturar, ou que não quisesse deixar o escritório – simplesmente ele preferiria não o fazer. Esta formulação que não é nem afirmativa nem negativa, em que não aceita mas também não recusa, abre uma zona de indefinição entre o sim e o não, o preferido e o não-preferido.
É Aristóteles que vai comparar o espírito, intelecto ou pensamento puro em potência, a uma tábua (grammatéion) onde nada está ainda escrito (no século quatro a. C., na Grécia escrevia-se a tinta sobre uma folha de papiro, ou mais vulgarmente, sobre uma tabuinha coberta por uma fina camada de cera onde se gravava com um estilete). Mais tarde, a quando da tradução latina das obras de Aristóteles, grammatéion dá origem à tabula rasa, aparecendo em Locke como “folha branca” (“suponhamos que no início o espírito não passava de uma folha branca, virgem de qualquer inscrição, sem qualquer ‘ideia’”).
Estamos assim perante uma tradição filosófica que atribui à escrita a importância de desvendar o pensamento. A utilização da imagem da tábua coberta de cera permitia a Aristóteles tentar explicar o problema da pré-existência do pensamento como ‘pura potência’, e de como ele passaria a ‘ato’ assim que nela se escrevesse. Idealmente, o pensamento não teria qualquer forma (não seria evidentemente uma tábua coberta de cera), porque se o pensamento tivesse já uma forma, ou seja, se já fosse qualquer coisa, tal iria interferir, condicionar a perceção, o entendimento, de qualquer objeto inteligível.
É esta ideia sobre o que é a mais pura potência que leva Aristóteles a concluir que toda a potência de ser ou fazer qualquer coisa terá de ser também a potência de não ser ou de não fazer, porque se toda a potência acabasse por se transformar em ato, acabaria por se confundir com ele. Daí o espírito, o intelecto ou o pensamento puro existir como uma potência de pensar e de não pensar.
Mas o próprio Aristoteles tinha algumas dúvidas: “O problema do pensamento implica certas aporias. O pensamento parece ser o mais divino dos fenómenos, mas o seu modo de existência é problemático. Com efeito, se ele não pensa nada (ou seja, se ele se atém à sua potência de não pensar), que dignidade será essa? É como se estivesse adormecido. Mas, se pelo contrário, ele pensa qualquer coisa em ato, ficar-lhe-á subordinado a partir do momento em que a sua essência não é já um ato de pensamento mas uma simples potência; deixará de ser a substância mais nobre, uma vez que que a sua excelência lhe virá de ser potência em ato.”
A aporia a que ele se referia tinha pois a ver com o facto de o pensamento supremo não poder nem pensar em nada nem pensar alguma coisa, nem permanecer em potência nem passar ao ato, nem escrever nem não escrever. Para ultrapassar esta aporia, Aristóteles elaborou a tese segundo a qual o pensamento se pensa a si próprio, sendo como que uma média entre o não pensar e o pensar qualquer coisa, entre a potência e o ato. O pensamento que se pensa a si próprio não pensa num objeto, nem pensa em nada: pensa uma pura potência (de pensar e de não pensar). De certa maneira, Bartleby, como o escriba que deixou de escrever é o protótipo da tábua de cera onde nada está escrito; é a figura extrema do nada de onde vem toda a criação, do nada como pura potência.
Claro que surge logo outro problema: como é que uma pura potência se pode pensar em ato? Como é que uma tábua de cera, onde nada está impresso, se pode impressionar a ela própria?
Na nossa cultura só muito raramente se assiste a este equilíbrio entre a afirmação e a negação, entre a aceitação e a recusa, o dar e o tirar. Os céticos propunham-se alcançar uma condição de suspensão, que era a condição em que nós não podíamos estar nem negar, nem aceitar nem recusar. Não se tratava de uma condição de indiferença, mas antes de uma experiência de possibilidade ou de potência. De certa forma, a procura de uma abertura luminosa.
Aristóteles já tinha também chamado a atenção para algo muito interessante. Dizia ele: “é necessário que toda a coisa seja ou não seja, que ela será ou não será; contudo, encarando separadamente as duas possibilidades, não poderemos dizer com certeza que uma ou outra sejam necessárias. Por exemplo, se eu disser que amanhã vai haver uma batalha naval ou que amanhã não vai haver uma batalha naval, tal não significa necessariamente que se verifique uma batalha naval ou que ela não se verifique.”
Ou seja, só a tautologia (proposição que é impenetrável às condições de verdade, uma vez que são sempre verdadeiras) “amanhã vai haver ou não uma batalha naval” é que é necessariamente sempre verdadeira para além da realização de uma ou da outra possibilidade, ao passo que cada uma das outras duas alternativas possíveis passam a serem contingentes, pois podem ser ou podem não ser. De igual modo, a frase de Bartleby pode ser aplicada a qualquer coisa, podendo ao mesmo tempo ser verdadeira e não verdadeira.
Fica assim completo e aberto o quadro de todas as possibilidades, a tal abertura luminosa de que falavam os céticos. É agora claro que a própria criação, para o ser, tem sempre de conter em si a possibilidade da não criação. E não só no momento da criação mas em todos os momentos que se lhe seguem. Há sempre a hipótese de uma segunda criação. A interrupção da escritura poderá ser um desses momentos em que se concentra toda a potência de não-ser, ponto de indiferença entre a potência e a impotência.
Talvez agora se consiga compreender melhor Leibniz quando ele nos fala sobre um mausoléu onde estão guardadas séculos e séculos das imagens de tudo aquilo que não foi, mas que poderia ter sido, “os possíveis contidos de toda a eternidade”. E foi desse imenso mausoléu que Deus escolheu o “melhor dos mundos possíveis” que, de vez em quando vem visitar, “para se dar o prazer de recapitular as coisas e de renovar a sua própria escolha”.
Com o seu “preferia não”, Bartleby restitui-nos integralmente o universo infinito da possibilidade, mantendo-o em equilíbrio entre o poder ser e o não poder ser, entre o que vai ser e o que não vai ser, batalha eterna entre os vários “melhores” dos mundos possíveis.
Politicamente, o conceito por detrás da expressão de Bartleby é muito mais do que uma simples resistência ativa ao poder. Bartleby deixa de sonhar com o poder, o que é muito mais radical.
O poder, como subordinação de muitos a um, não é algo que exista desligado das coisas e que continuaria a existir independentemente da participação dos súbditos. Ele só persiste através da nossa assistência ativa. Colaboramos com o opressor não por ele ser muito poderoso, mas, exatamente por ele nos parecer poderoso é que o tratamos como tal.
Então porque é que lhe obedecemos? Porque “Os sujeitos obedecem não só devido à coerção física (ou à ameaça dela) e à mistificação ideológica, mas também porque investem libidinalmente no poder”. Ou seja, o poder, o seu exercício, como que provoca um êxtase que envolve não só quem o detém, mas também todos aqueles que não o tendo se sentem bafejados pelos salpicos das ondas de gozo que dele emanam e onde eles se banham, enrolam, rebolam. Como uma adrenalina viciante, é assim que o “poder” os suborna e mantém sob o seu jugo.
O que Bartleby faz é deixar de sonhar com o poder, o que implica dissolver a relação entre as estruturas do poder e o êxtase babado dos que o consentem e promovem. O que Bartleby nos diz é que nos devemos focalizar, não sobre a realidade, mas sobre os nossos próprios sonhos.
O desenvolver uma atividade frenética para impedir que uma coisa real aconteça, não passa de uma falsa atividade: pensamos estar ativos, mas estamos a ser passivos relativamente à realidade.
Quando nos desdobramos em manifestações, petições, grandes oratórias, etc., mas simultaneamente entregamos o verdadeiro trabalho de assistência, educação, ajuda, acompanhamento, às inócuas Misericórdias do poder político instituído, não estamos certamente a criar condições que não sejam as da perpetuação de um poder político daltónico.
Perante uma situação em que “só as moscas mudam”, nada nos obriga a escolher. É mesmo melhor nada fazer do que contribuir para a reprodução da ordem existente.
Lembremos Kafka nos “Mensageiros”:
“Deram-lhes a escolher ser reis ou mensageiros dos reis. À maneira das crianças, todos quiseram ser mensageiros – o resultado foi que não existem senão mensageiros. Galopam mundo fora gritando-se mensagens que, uma vez que não existem reis, se tornaram sem sentido. Alegrá-los-ia pôr fim à sua existência miserável, mas não se atrevem a fazê-lo, tendo em conta os deveres do seu serviço”.