Engrenagem dos Mundos
“Enquanto os homens se ocupavam nos seus afazeres quotidianos, eram escrutinados e estudados, quase do mesmo modo tão cuidadoso como um homem com um microscópio poderia escrutinar as criaturas transitórias que nadam e se multiplicam numa gota de água”, H. G. Wells, A Guerra dos Mundos.
“Todas essas derivações, adaptações e dramatizações, quer radiofónicas, cinematográficas e televisivas, inseriam-se dentro do velho esquema maniqueísta da luta do Bem contra o Mal, do Mal como força sobrenatural.”
“Se não houvesse livre arbítrio, Adão não teria escolhido comer a maçã.”
“O mal não existe, e se existe também não tem qualquer importância.”
“Senhoras e Senhores, interrompemos o nosso programa para lhes dar a conhecer um boletim especial da Agência Intercontinental das Radio-notícias: às sete horas e quarenta, o professor Farrel, do Observatório de Chicago, informou que tinha observado várias explosões incandescentes no planeta Marte, cujas frequências se vêm sucedendo a intervalos regulares.” Esta foi a notícia que levou a rede de rádio da CBS a interromper a sua programação normal a 30 de outubro de 1938, na preparação que se lhe seguiria do relato de uma invasão alienígena, que não passava de uma encenação concebida por Orson Welles, e que levou a um pânico generalizado: calcula-se que pelo menos 1,2 milhões de pessoas acreditaram que tal invasão estava a acontecer, instalando-se o caos em várias cidades.
A dramatização radiofónica de Orson Welles baseava-se na obra de Herbert George Wells, A Guerra dos Mundos, publicada em capítulos em 1897 no Reino Unido, pela revista Pearson, lançada em livro no ano seguinte. A partir daí, vários foram os filmes e séries de televisão que exploraram o tema, tendo mesmo em 1953 e em 2005 aparecido filmes com o mesmo título do livro, “A Guerra dos Mundos”.
O tema tratado era invariavelmente sempre o mesmo: a invasão da Terra por marcianos, ou seres de outros mundos, aparentemente indestrutíveis e dotados de armas de destruição massiva, que originavam fugas desordenadas, atos de heroísmo desesperado, quebra dos valores convencionais e da rotina social, refúgio na oração ou na orgia, etc.
Todas essas derivações, adaptações e dramatizações, quer radiofónicas, cinematográficas e televisivas, inseriam-se dentro do velho esquema maniqueísta da luta do Bem contra o Mal, do Mal como força sobrenatural. Breve: luta dos bons contra os maus. Neste caso os maus eram evidentemente os invasores vindos do espaço.
Segundo a tradição de origem judaico-cristã, o Bem não se explica na medida em que o bom e a bondade são atributos inerentes a Deus, por Ele ser amor infinito, misericórdia sem limites. O homem busca o bem, converte-o em finalidade da sua vida, sem necessidade de lhe dar uma explicação. O bem era a essência de tudo o que imperava no momento da criação. Pelo contrário, o mal tinha de ser explicado, pois constituía uma anomalia. Ao passo que em algumas religiões orientais o universo é dual, em que o mal aparece com o mesmo estatuto do bem, o que origina uma luta constante entre o mal e o bem, para o pensamento cristão o mal é uma aberração, incompatível com Deus.
Para explicar o mal existente, o pensamento judaico-cristão vai ter de lidar com o mal como pecado proveniente de atos individuais e como possibilidade de uma origem exterior. Se o mal fosse unicamente produto do pecado, se Adão e Eva tivessem criado o mal por si mesmos, então a relação entre um Deus de bondade e a raça humana seria incompreensível. Torna-se necessário recorrer a um agente exterior, a serpente, que é a que induz o ser humano a pecar, atraindo-o ao mal.
O que põe outro problema: para a criação humana ter sido perfeita, Deus concedeu-lhe o livre arbítrio. Se não houvesse livre arbítrio, Adão não teria escolhido comer a maçã. Donde, será o livre arbítrio a causa do mal? E sendo o livre arbítrio um presente de Deus, será Deus a causa do mal? É aqui que convenientemente aparece Satanás como representação ontológica do mal. Deus também lhe tinha concedido o livre arbítrio, só que voluntariamente e conscientemente Satanás volta-lhe as costas. O que não aconteceu com o homem, que apenas peca por engano.
Perante tudo isto que parece ser um paradoxo da lógica, a serpente do Genesis deixa de ser metafórica para se converter numa força com entidade própria que se tem encarregado desde esses tempos até agora de tentar a humanidade. Passa a uma entidade viva, consciente, poderosa e imortal: o Mal.
É este mito fundador do mal como força sobrenatural e autónoma que está presente em quase todas as histórias de terror. Excomungado há milhares de anos, a sua presença tem-se mantido constante, nem que mais não fosse através dos seus vulgarizados e aclamados sucessos em espetáculos onde se vende (e se compra) a noção da ‘eterna’ e igual luta com o Bem.
Que tem isto a ver com o programa radiofónico de Orson Welles, com as muitas e variadas séries de televisão e filmes sobre invasões vindas do espaço? Pois tudo.
Que tem a ver isto com A Guerra dos Mundos de H. G. Wells? Quase nada.
Reparemos o que começa por escrever Wells no início da sua obra:
“Ninguém teria acreditado, nos últimos anos do século XIX, que este mundo estava a ser observado de muito perto e com atenção por inteligências maiores que as do ser humano e igualmente mortais; que enquanto os homens se ocupavam nos seus afazeres quotidianos, eram escrutinados e estudados, quase do mesmo modo tão cuidadoso como um homem com um microscópio poderia escrutinar as criaturas transitórias que nadam e se multiplicam numa gota de água. Com infinita complacência, os seres humanos iam e vinham sobre este globo, concentrados nos seus assuntos, tranquilos por causa do seu seguro império sobre a matéria. É possível que os micróbios que estão debaixo do microscópio se comportem de igual modo. Ninguém dedicou um pensamento aos mundos mais velhos do espaço como possíveis fontes de perigo para a raça humana, ou se pensaram neles foi somente para descartar a ideia de vida na sua superfície como impossível ou improvável. É curioso recordar alguns dos hábitos mentais de aqueles dias passados. Como muito, os terrícolas suponham que poderia haver outros homens em Marte, talvez inferiores a eles mesmos e preparados para dar a bem-vinda a uma expedição missionária. E, contudo, do outro lado do golfo do espaço, umas mentes que estão para as nossas mentes o que as nossas estão para as das bestas, uns intelectos vastos, frios e indiferentes, observam a Terra com olhos invejosos e começam a traçar planos contra nós.”
Da mesma forma que os humanos procedem às suas colheitas, caçam e pescam sem repararem minimamente nas destruições que provocam nos animais (nos quais se incluem os homens) e seus lugares de habitação, também os marcianos não sentem qualquer contemplação para com os humanos, não os considerando sequer como criaturas que mereçam qualquer compaixão ou piedade. Quando os marcianos nos atacam não o fazem como agentes do mal, mas utilizando a mesma lógica com que um peixe grande come um peixe pequeno.
A natureza aparece como um mero mecanismo frio, desprovido de quaisquer sentimentos ou emoções. Se uma espécie se extinguir, pois extingue-se. O universo não se irá lamentar por essa extinção, mesmo que seja a da raça humana. Não se trata aqui de uma luta do bem contra o mal, mas antes do pouco significado e da impotência que o ser humano tem perante a engrenagem cósmica. Para os marcianos, a raça humana não passa de um incómodo: os homens são criaturas insignificantes que ocupam um lugar que lhes devia de pertencer por direito. Tirando isso, são-lhes completamente indiferentes. A tal ponto são os humanos impotentes que até a invasão é derrotada por uma outra força sem qualquer carga moral: os micróbios.
O universo aparece como um enorme espaço inconcebível, que não nos reserva qualquer tratamento de exceção. Não se trata já de mal. O mal não existe, e se existe também não tem qualquer importância.