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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Em busca do sentido perdido

 “Nesta época da informação, os acontecimentos desprendem-se com rapidez uns dos outros sem deixar qualquer marca. Tudo se passa superficialmente. Nada tem importância. Nada é definitivo. Quando já não se sabe o que é importante, tudo perde importância. Deste processo aberto e infinito, nada chega ao fim. Nada se conclui. A ‘inconclusão’ é o estado permanente.

Vamos fazendo zapping pelo mundo”.

Porque é que não temos tempo? Em que medida não queremos perder tempo? Porque dele temos necessidade e queremos empregá-lo. Para quê? Para as nossas ocupações quotidianas, das que desde há uns tempos nos temos tornado escravos”, M. Heidegger.

 

O tempo da narrativa

 

Uma narrativa é um contar de acontecimentos que se encadeiam formando uma história. É este encadeamento narrativo que, operando através de uma seleção de acontecimentos, vai fixar uma sucessão de fatos, dando assim origem a um sentido. Ao contrário, uma sucessão de frases indistintas não dará origem a qualquer sentido, não constrói uma história, não constituindo, portanto, uma narrativa.

No primeiro dos tempos, o chamado tempo mítico, a função dos deuses era a de conferir sentido e significado ao mundo. Narravam a relação entre as coisas e os acontecimentos. A relação que se narra gera sentido. A narração cria assim mundo do nada.

Tudo ocupa o seu lugar, tudo tem significado numa ordem (o cosmos) que encaixa perfeitamente. Os acontecimentos mantêm uma relação estreita, um encadeamento cheio de sentido, refletindo a substância do mundo, eterna e imutável, sobre uma superfície estática. Nesse mundo, o que tem sentido é a eterna repetição do mesmo, a reprodução do que já tenha sido, de uma sempre e mesma verdade. O homem do tempo mítico vive num eterno retorno dum presente duradouro. O seu tempo é um tempo cíclico (curiosamente, continuamos a arrastar connosco algumas dessas vivências).

Com o posterior ‘aparecimento’ do chamado tempo histórico, o mundo já não se apresenta como uma imagem acabada de uma ordem imutável, mas como uma possibilidade de mudança. O tempo histórico deixe de ser circular e passe a ser linear. Tudo é um processo, que implica um progresso ou uma decadência.

Para que o tempo nos seja minimamente entendível, necessitamos de lhe criar (a ele e a nós) umas balizas por onde ele ‘deverá’ passar, para assim nos assegurarmos que ao encadear os acontecimentos, o tempo lhes comunique sentido. Daí que o tempo histórico só produza significado quando está orientado. O ‘nosso’ tempo histórico está orientado linearmente.

Mesmo orientado linearmente, essa orientação não é única. Por exemplo, o tempo cristão ou escatológico remete para o final dos tempos, para o fim da história. O homem encontra-se atirado para o fim do mundo, não sendo, portanto, sujeito da história, não se projeta no futuro. Não é livre, está submetido a Deus. É Deus quem dirige.

Já no tempo do iluminismo, a história está animada pelas ideias da liberdade e do progresso da razão humana. O sujeito do tempo já não é um Deus dirigente, mas um homem livre que se projeta no futuro.

Todos estes tempos apresentados até aqui têm em comum o facto de se expressarem como uma continuidade narrativa, quer através da imagem ou quer através da linha, narrativa essa que não comporta qualquer possibilidade de intervalos que deem origem a espaços vazios. O tempo narrativo é um tempo contínuo no qual um acontecimento anuncia, sempre a partir de si mesmo, o seguinte. Os acontecimentos sucedem-se dando origem a um sentido.

Há, contudo, diferenças entre eles: ao passo que no tempo escatológico é Deus que imprime e serve de garante a uma estrutura de ordem e sentido, estabilizando o tempo, já no tempo do iluminismo essa função de Deus tem vindo a ser substituída pela crença no progresso, num futuro alcançável e moldável pelo homem.

Esta propensão, esta orientação cada vez maior para o futuro, induz como que uma aspiração para a frente, que poderá vir a ser entendida como uma aceleração. Por isso, a significação que o tempo venha a dar a uma nova ordem oriunda deste movimento e mudança, provém do futuro. E, é assim que cada vez mais o presente nos aparecerá apenas como um ponto de transição. “Nada é. Tudo será”. E neste presente cada vez mais reduzido e fugidio, não se torna possível discernir a verdade.

Por mais abertos que estejamos ao futuro que vai vir, é fundamental não nos esquecermos que para a compreensão do nosso presente, o passado fará sempre parte dele, uma vez que estamos sempre a transitar entre passado e futuro. Sem este balizamento temporal nunca poderemos fazer com que o conhecimento se abra à compreensão. A compreensão necessita este balizamento temporal.

 

O tempo da informação

 

A grande diferença que existe entre compreensão e informação é que a informação está vazia de tempo, é intemporal. Não necessita desse balizamento temporal. Ela é neutral. Esta neutralidade da informação é o que lhe permite ser armazenada e utilizada à vontade. Ela desloca-se num espaço sem tempo, a-histórico. O perigo subjacente é que o apagar do tempo histórico corresponde a um apagar da memória.

Quando se perde a tensão narrativa ou teleológica, deixa de haver o que quer que ligue os acontecimentos entre eles. Deixa de haver relação entre eles, deixa de haver duração. A linha, que era a narrativa, vai decompor-se em pontos que se movimentam sem qualquer direção. Cada ponto do presente, sem qualquer força de atração temporal, faz com que o tempo se desbloqueie, que os processos se acelerem sem qualquer direção.

O tempo aparece então como uma sucessão sem fim de um presente pontual. É um tempo descomposto, um tempo deslaçado, sem qualquer tensão. O presente reduz-se a picos de atualidade. Já não dura. Já não tem nada que o ligue interiormente como quando, por exemplo, Deus era um estabilizador do tempo.

O tempo da informação representa assim um novo paradigma, pois no seu interior habita uma temporalidade muito diferente. É uma manifestação do tempo atomizado, de um tempo de pontos.

Contrariamente aos tempos míticos e históricos que ao constituírem uma continuidade narrativa não deixavam qualquer espaço vazio, no tempo da informação abre-se necessariamente um intervalo vazio entre os pontos em que nada sucede, não ocorre nenhuma sensação. Só o atrasam.

Por isso o tempo dos pontos sente o impulso para suprimir ou encurtar os intervalos vazios. A falta de tensão narrativa faz com que o tempo atomizado não consiga manter a atenção de maneira duradoura. A perceção vai abastecer-se constantemente de novidades e radicalismos. Para evitar que se demorem em demasia, intenta-se que as sensações se sucedam cada vez mais rapidamente. O tempo dos pontos não permite nenhuma demora contemplativa. É antes um tempo das emoções.

Nesta época da informação, os acontecimentos desprendem-se com rapidez uns dos outros sem deixar qualquer marca. Tudo se passa superficialmente. Nada tem importância. Nada é definitivo. Quando já não se sabe o que é importante, tudo perde importância. Deste processo aberto e infinito, nada chega ao fim. Nada se conclui. A ‘inconclusão’ é o estado permanente.

Num espaço sem orientação, desorientado, a ação pode-se interromper a qualquer momento e começar de novo. Perante uma enorme quantidade de enlaces (links), a conclusão acaba por não ter muito sentido. Estamos perante um espaço em que se decide constantemente e onde estão sempre a aparecer novas possibilidades. Não há decisões que sejam definitivas. Cada vez que se toma uma decisão, surgem sempre outras novas.

 

Num processo de produção, a eficiência de um produto mede-se pela rapidez com que ele chega à fase de finalização. A aceleração é inerente ao processo de produção. Talvez por isso também se chame ao computador, ‘processador’. Também ele se deixa acelerar e fá-lo com gosto, porque ao não ter nenhuma estrutura de sentido está reduzido à mera eficiência funcional. O computador não duvida. Qualquer atraso é sempre registado como sendo uma doença. Qualquer atraso deve ser eliminado o mais depressa possível. A tranquilidade, a pausa, não tem qualquer significado do ponto de vista do cálculo.

Contudo, os intervalos não funcionam apenas como retardadores. De certa forma funcionam também como articuladores. Sem intervalos, haverá apenas uma justaposição ou um caos de acontecimentos desarticulados, sem orientação. Isto é mais visível no campo da arte, que se esvazia, passando a ser uma arte de presença. Tonalidades, cores, timbres e tudo o mais perdem todo o significado que a cultura lhes dava. A sua tarefa consiste apenas em dar testemunho do que aconteceu, na melhor das hipóteses justapondo acontecidos.

Encurtando-se os intervalos, acelera-se a sucessão dos acontecimentos. A densificação dos acontecimentos, informações e imagens tornam impossível a demora. As imagens que passam de maneira fugaz pela retina, não conseguem captar uma atenção duradoura. Propagam o seu atrativo visual e desvanecem-se. As imagens e os acontecimentos não têm um efeito duradouro ou profundo. A consequência da aglomeração de imagens, acontecimentos e informações, tornam impossível qualquer demora contemplativa. E é assim que vamos fazendo zapping pelo mundo.

 

 

A desintegração do tempo linear-narrativo não supõe necessariamente uma catástrofe. Pode também conter em si uma possibilidade de libertação da prisão narrativa. É um ficar-se livre para se poder abordar os acontecimentos narrativos independentes, para os acontecimentos em sentido pleno. Pode-se ter o caminho aberto para o acesso a coisas que antes eram inexistentes.

Mas atenção: nos intervalos do tempo onde nada acontece, a tendência é para a letargia. A existência vai tornar-se muito mais frágil, enfrentando-se constantemente ao medo ao nada, ao perigo da morte, porque ao acontecimento que a afasta da morte falta-lhe todo o tipo de duração. A alegria mistura-se com o medo da morte. À exaltação segue-se a depressão.

Encontramo-nos assim perante a possibilidade a uma vida que não necessitando já de teologia nem de teleologia, não necessitando já de Deus como fonte absoluta da verdade nem da razão como fonte universal do sistema de valores, contém em contrapartida todos os perigos acima descritos. Uma vida em que o quadro de referência será antes uma estética de sedução visando especificamente dar satisfação aos nossos desejos (e não às nossas necessidades).

Poderão esses perigos serem evitados, ultrapassados, minorados?

Quereremos fazer um esforço no sentido de introduzir qualquer elemento reflexivo/contemplativo na vida humana, qualquer capacidade para ela se poder demorar?

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