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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Donos da "inevitabilidade"

 

Mas, será provável que a probabilidade nos traga a certeza?”, Pascal.

 

 “É mais fácil habitar num futuro imaginário do que enfrentar um presente intratável”, John Gray.

 

“Um bebé nascido em Shangai tem menos probabilidades de morrer no primeiro ano de vida, e provavelmente aprenderá a ler, e poderá contar com viver mais dois anos que uma criança que nasça em Nova Iorque”, N. D. Kristof.

 

Quer o racionalismo económico do marxismo-leninismo, quer o racionalismo do mercado-livre, são variantes do mesmo projeto Iluminista.

 

 

 

Uma das noções que mais tem contribuído para que se encare o futuro com apreensão, temor, ou com uma total resignação, é a de que o sistema de mercado livre único global seja uma inevitabilidade económica, solução que, mais tarde ou mais cedo, custe o que custar, virá a ser imposta ou perfilhada por todo o mundo.

 

É sabido que desde há muito os EUA se julgam o modelo e a referência universal, ao identificarem os valores ditos ocidentais, que para eles são os valores e as instituições americanas, como sendo universais. Esta ideia que os Estados Unidos têm de ser um modelo universal, sempre fez parte da cultura da nação americana.

Mas, só quando a Nova Direita, a partir dos anos oitenta do século passado, começou a associar a essa ideia de missão nacional a da ideologia do mercado livre único global, é que os EUA passaram a aparecer como símbolo do poder empresarial e do ideal de uma civilização universal.

 

 

Mas, será que os EUA são mesmo o modelo em que o mundo se quer rever? Será que o mercado-livre único global poderá vir a ser uma realidade?

 

O problema base deste pressuposto de que “os EUA são um modelo para o mundo”, reside no facto de os EUA não serem aceites como tal pelos outros países.

 E, a principal razão para tal acontecer, talvez resida no facto do sucesso económico americano ser feito à custa de grandes divisões sociais, de crime violento, de prisões, de conflitos raciais e étnicos, de separações de famílias e de colapso de comunidades, dificilmente toleráveis noutros países.

 

 

O modelo da sociedade americana

 

Na época (1980) em que Ronald Reagan era presidente dos EUA, por cada 100.000 americanos, encontravam-se presos 103. Catorze anos depois, em 1994, esse rácio passou para 373, o que significava um aumento superior ao triplo. E, em 2013, o rácio era já de 716 pessoas por 100.000, de longe o maior do mundo (http://www.vox.com/2015/7/13/8913297/mass-incarceration-maps-charts).

  Na Alemanha, este rácio era de 76, na Itália de 85, na Suécia de 60, na Arábia Saudita de 161, em Singapura de 220, no Cazaquistão de 275.

 

Em finais de 1994, mais de 5 milhões de americanos encontravam-se presos, ou a cumprirem pena em liberdade condicional. Em 2016, eram já mais de 8 milhões de americanos nestas condições, o que significa que 1 em cada 35 americanos se encontrava debaixo do controle do sistema de justiça criminal.

 

Vejamos agora os rácios respeitantes aos crimes violentos (assassinatos, violações, roubo e assalto agravado). Nos EUA, o rácio de crimes violentos é de 385 por cada 100.000 habitantes. Comparando, temos que para a Inglaterra o rácio geral é de 199; para a Alemanha é de 161; e para a Áustria é de 117.

 

No respeitante à mortalidade infantil, entre os 26 países mais ricos do mundo, os EUA são, de longe, aquele que tem o maior rácio, com três quartos (75%) de todas as mortes de crianças do mundo industrializado, quer seja por suicídio, homicídio ou por mortes provocadas por armas de fogo.  

Com 7 mortes por cada 1.000 crianças, os EUA ocupam o lugar 51 quando comparados com o resto do mundo.

 Segundo N. D. Kristof (China Wakes: The Struggle for the Soul of a Rising Power):

 

Um bebé nascido em Shangai tem menos probabilidades de morrer no primeiro ano de vida, e provavelmente aprenderá a ler, e poderá contar com viver mais dois anos que uma criança que nasça em Nova Iorque.”

 

O grande número de crimes e de encarceramentos, anda a par com o extraordinário número de advogados. Nos EUA existem mais de 900.000 advogados, 70% dos advogados de todo o mundo, o que dá um rácio de 300 advogados por 100.000 americanos, ou seja, um advogado por cada 333 americanos. No Japão, o rácio é de 12, na Inglaterra 100.

 

A importância destas estatísticas referentes aos números de presos, de crime violento e de advogados, é o de elas refletirem, só por si, o retrato de uma sociedade na qual a justiça se tornou na única instituição social a funcionar, e em que as prisões são um dos poucos meios de controle social.

 

Aquilo que constituía o símbolo da sociedade americana, a família, a vizinhança dos bairros, as empresas de negócios, encontra-se hoje esvaziada. Se a isto juntarmos as prisões de alta tecnologia, os condomínios murados e fechados, e as empresas virtuais, teremos o símbolo dos EUA século XXI, a sociedade do mercado livre.

 

Anexo: Artigo e vídeo da CNN sobre os americanos que trabalham e vivem abaixo da linha de pobreza (http://money.cnn.com/2017/06/15/news/economy/donald-trump-the-financial-diaries/index.html).

 

 

O mercado livre como resultado de um processo natural

 

A Nova Direita gosta de afirmar que o mercado livre será o resultado de um processo natural que acabará por acontecer quando o estado, considerado como interferência política (força de bloqueio), for removido do mercado.

Contudo, esta ideia que as Novas Direitas têm de que mercados livres e governo mínimo estão interligados, não passa de uma inversão da verdade.

Exatamente por a tendência normal das sociedades ser a de regular os mercados, é que os mercados livres só podem ser criados através do poder de um estado centralizado. Não podem existir sem esse poder. É a regulação dos mercados que constitui a norma, o desenvolvimento espontâneo da vida em qualquer sociedade. Por isto, o mercado livre só poderá ser uma construção do poder de estado.

 

 

A globalização torna, só por si, universais os valores ocidentais

 

Outra ideia errada que a Nova Direita tem é a de que a globalização, ou seja, a disseminação por todo o mundo de novas tecnologias que fazem desaparecer a distância, torna, só por si, universais os valores ocidentais.

Bem ao contrário, a globalização torna é irreversível a existência de um mundo plural, de culturas económicas que permanecerão sempre diferentes, e que acabarão por terem de conseguir encontrar um modo de viver entre elas.

As várias organizações transnacionais vão ter de conseguir criar um conjunto de regulamentos no qual as várias economias de mercado se possam desenvolver.

O que se está a fazer é a tentar obrigar as várias divergentes culturas económicas do mundo a confluírem num único mercado livre global. E, talvez isso aconteça porque já se tenham apercebido que o aumento das interconexões entre as economias mundiais não significa o crescimento de uma civilização de uma só economia.

 

 

A dominação dos EUA é a mais hegemónica de todos os tempos

 

Por muito que queiram impor aos países do mundo este “consenso de Washington” do mercado livre global, utilizando como seu instrumento instituições como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, as resistências ao modelo fazem-se sentir por toda a parte.

É que aquilo a que chamamos mundo, já não é o que foi. Contrariamente ao que nos têm tentado querer convencer, a dominação dos EUA não é a mais hegemónica de todos os tempos. Mesmo sem ter de recuar muito, recordemos o Império Britânico:

 

Em 1848, uma manifestação violenta em Atenas, acabou por destruir a residência e propriedades de Don Pacífico, um português, que por ter nascido em Gibraltar tinha também a nacionalidade inglesa. Don Pacífico pediu uma indeminização de £30.000.  Como em janeiro de 1850 ainda nada fora decidido pelo governo grego, Lord Palmerston, Ministro dos Negócios Estrangeiros do governo inglês, ordenou o bloqueio de porto do Pireu e o arresto dos barcos gregos. 

Em junho de 1850, na Câmara dos Comuns, Palmerston defendeu essa sua ação, citando uma frase do Novo Testamento, “Eu sou um cidadão de Roma”. E continuou justificando-a:

 

Para que assim, qualquer súbdito inglês, esteja em que lugar ou país estiver, se deva sentir confiante pois que os olhos vigilantes e o braço forte de Inglaterra, o protegerão contra qualquer injustiça ou malfeitoria.”

 

 Era assim a pax Britannica no seu apogeu.

 

Século e meio depois, em 1994, um estudante americano, Michael Fay, é condenado em Singapura, a apanhar cinco chicotadas por ter escrito um grafiti num edifício público. Apesar dos esforços da diplomacia americana, incluindo a intervenção pessoal do presidente Clinton, a punição não foi retirada, sendo apenas reduzida para quatro chicotadas.

 

 Século e meio depois da ação unilateral de Palmerstone, a grande potência americana foi desafiada por um pequena cidade-estado asiática. Mas, o que se passou foi mais do que isso. Foi uma rejeição dos valores ocidentais considerados (pelos ocidentais) como universais, numa clara prova de que o seu modelo de modernização e desenvolvimento era superior ao ocidental, e que o ocidente nada tinha para lhes oferecer.

 

 

Os países modernizam-se à medida que forem reproduzindo as sociedades ocidentais

 

Outra ideia das Novas Direitas é a de que existe uma lógica universal do industrialismo e que o relacionamento social encontrado pelas primeiras nações que se industrializaram, ou seja, o individualismo, o mercado de trabalho livre, e outros, teriam inevitavelmente de se repetirem e desenvolverem nas outras partes do mundo.

 Esta sua base teórica repousa na chamada hipótese da convergência, e vem das teorias da filosofia da história do Iluminismo que preconizavam que os países se iriam modernizando à medida que fossem reproduzindo as sociedades ocidentais. O que não se veio a verificar.  

 

Por exemplo, no Japão, o desenvolvimento de uma sociedade capitalista não se produziu com base no individualismo. Os acordos entre os trabalhadores e o corpo das instituições do mercado, assentaram mais na confiança no que numa cultura do contrato.

Na realidade, o capitalismo não tem de assentar no individualismo como premissa: tal não passa de um acidente histórico.

Apesar dos insistentes pedidos de Washington para que o Japão alterasse a sua política de garantia de emprego substituindo-a pelo individualismo do mercado, a cultura japonesa tem resistido, mesmo num cenário de não crescimento económico.

Um economista japonês estudioso de Stuart Mill recorda o que este disse:

 

 “Uma condição estacionária do capital e da produção não necessita de ser, forçosamente, um estado estacionário do desenvolvimento humano.”

 

É que para S. Mill, o progresso tecnológico devia ser usado para melhorar a qualidade da vida e não servir apenas para aumentar a quantidade da produção.

 

 

Não há diferenças entre os capitalismos asiáticos e ocidental

 

Mesmo tendo em conta serem hoje os mercados livres os mais potentes dissolventes da tradição, o que tem feito com que virtudes como a respeitabilidade, orgulho cívico, aforro, valores familiares, sejam hoje peças de museu sem valor, é muito possível que as diferenças entre os capitalismos asiáticos e ocidental, não parem de aumentar. Eles acabarão por refletir diferenças não só das suas estruturas familiares como, inclusive, das suas culturas religiosas, a que os seus capitalismos se enraizaram.

 

Max Weber, o grande sociologista do capitalismo, foi o primeiro a demonstrar a importância da religião para o desenvolvimento económico, nomeadamente ao estabelecer a ligação existente entre o desenvolvimento do capitalismo nos países europeus e o protestantismo. Ora, até isto os advogados do mercado livre único e global, parecem ter esquecido.

 

 

O progresso humano só se realiza através de uma única civilização

 

Há também outras considerações que esta Nova Direita do mercado livre global deveria atentar (muito embora lhe seja impossível, o tal problema do chupar na teta da vaca).

Por exemplo, seria muito importante estudarem afincadamente a experiência falhada do socialismo dito Marxista do século XX, quanto mais não fosse pela muito semelhante tentativa de engenharia social.

É sempre bom lembrar que, quer o racionalismo económico do marxismo-leninismo, quer o racionalismo do mercado-livre, são variantes do mesmo projeto Iluminista.

Ambos não reconhecem, e até negam, que a economia moderna possa aparecer com várias formas. Ambos estão decididos a infligirem grandes doses de sofrimento à humanidade para conseguirem impor a sua visão única do mundo. Nenhum deles se importa com as necessidades vitais humanas. Ambos estão convencidos que o progresso humano só se realiza através de uma única civilização.

 

Daí que o filósofo japonês, Takeshi Umehara, nos diga que:

 

 “O total falhanço do marxismo-leninismo … e o despedaçar dramático da União Soviética são apenas os precursores do colapso do liberalismo ocidental. Longe de constituir uma alternativa ao Marxismo e ser ideologia reinante sobre o fim da história, o Liberalismo será o próximo dominó a cair”.

 

 

A inevitabilidade evitável

 

De certa maneira, esta noção de um sistema económico único para todo o planeta, não assenta em nenhuma prova científica, histórica ou filosófica e não tem nenhum caráter de inevitabilidade, não passando de mais uma variante do projeto geral do Iluminismo que pretendia substituir a diversidade das culturas humanas por uma só cultura de uma única civilização universal.

 

 

A incerteza generalizada

 

Bem gostaria que toda esta análise interpretativa acima feita, fosse suficiente para me dar tranquilidade. O problema é que ela assenta numa visão cultural das sociedades humanas que pode não se verificar. Até porque já, por mais de uma vez, a cultura se mostrou incapaz para deter projetos aberrantes.

 Países expoentes da alta cultura e civilização, como a Alemanha, viram os seus maiores representantes converterem-se a políticas desumanas. A cultura existente sucumbiu ruidosamente face à nova força, pronta a adotar um novo paradigma.

Além do mais, o quadro geral do mundo tem vindo a mudar rapidamente. Não é já hoje possível falarmos em estados, países, como entidades coerentes e unificadas. O interesse nacional começa a ser difícil de distinguir. E, dentro da mesma nação, as pessoas têm interesses muito diferentes. Os interesses dos proprietários das Googles e os dos seus empregados da limpeza, não são os mesmos. Não trabalhamos todos em harmonia, nem constituímos todos uma família feliz.

Hoje o poder está nas mãos de financeiros e de grandes multinacionais. Os seus interesses estão focalizados apenas na obtenção de lucro, mesmo que para isso tenham de aumentar o poder de outra nação concorrente que lhes propiciará esse maior lucro. E assim sucessivamente.

Uma vez quebrado este quadro de estados nacionais como entidades unificadas e sem divisões internas, estamos a assistir a uma mudança global do poder, da força global de trabalho para os donos do mundo, o capital transnacional e as instituições financeiras globais. Um novo paradigma.

 

É que a análise cultural só pode ser aplicável dentro do mesmo paradigma cultural. E, mesmo assim, com muitas limitações. Mas fica sempre bem elaborarmos eruditamente com ela. Puro surf.

 

 

 

 

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