Do "biopoder" ao "psicopoder"
Para além de vivermos numa sociedade de vigilância numérica, vivemos numa sociedade em que o poder tem acesso não só ao inconsciente coletivo, mas também aos futuros comportamentos sociais das massas.
A máquina de filmar faz aparecer algo a que o olho nu não tem acesso: o inconsciente visual.
“Devido à forma de existência coletiva da humanidade, em grandes épocas históricas altera-se o modo da sua perceção sensorial”, Walter Benjamin.
Uma das características importantes do cinema é a capacidade que tem de nos ‘retirar’ das coisas que nos parecem aprisionar (das nossas casas, dos nossos quartos, dos nossos empregos, dos nossos escritórios, das nossas ruas, das nossas estações de metro, das nossas fábricas, das nossas relações, das nossas rotinas, etc.), fazendo-as desaparecer e permitindo-nos viajar calma e aventurosamente até por entre os destroços espalhados.
É a utilização da máquina de filmar que, por exemplo, nos vai permitir acreditar na revelação de estruturas completamente novas, tudo isto através de uma simples ampliação; e que nos vai permitir pairar ou deslizar no ar, sobrevoando para fora do espaço verdadeiro, tudo isto através do ralenti.
Eis o que Walter Benjamim escreve no seu trabalho “A obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica”(1933-36):
“Graças ao grande plano, é o espaço que se alarga; graças ao ralenti, é o movimento que ganha novas dimensões. […]. É, portanto, bem claro que a natureza da linguagem da câmara seja diferente da do olho humano. Diferente, principalmente, porque em vez de um espaço preenchido conscientemente pelo homem surge um outro preenchido inconscientemente. […] Em geral, o ato de pegar num isqueiro ou numa colher é-nos familiar, mas mal sabemos o que se passa entre a mão e o metal ao efetuar esses gestos, para não falar de como neles atua a nossa flutuação de humor. É neste domínio que a câmara penetra, com os seus meios auxiliares, os seus ‘mergulhos’ e subidas, os seus cortes e isolamentos, os seus alongamentos e acelerações, as suas ampliações e reduções. Pela primeira vez, a câmara abre-nos o acesso ao inconsciente visual, tal como a psicanálise nos abre o acesso ao inconsciente das pulsões”.
Em resumo: Em vez de um espaço preenchido conscientemente pelo homem, o cinema permite-nos ‘viver’ um outro espaço preenchido inconscientemente.
Mas, W. Benjamim vai retirar um outro ensinamento muito mais importante, ao inserir o cinema num conceito muito mais geral, segundo o qual a maneira de ver do homem é condicionada não só pela sua natureza, mas também pelas épocas históricas. Pelo que, sempre que se introduzir um novo médium, ele irá também revelar uma nova perceção, um novo inconsciente.
É o que pretende dizer quando nessa obra, na parte que se refere à introdução ao cinema, escreve:
“Devido à forma de existência coletiva da humanidade, em grandes épocas históricas altera-se o modo da sua perceção sensorial”.
A máquina de filmar faz, portanto, aparecer algo a que o olho nu não tinha, até aí, acesso: o “inconsciente visual”.
Michel Foucault, na sua História da sexualidade, descreve-nos a alteração das ‘regras’ do poder verificada na sociedade depois do século XVII. Segundo ele, até ao século XVII, era privilégio do soberano o exercer poder de vida e de morte sobre os súbditos, mediante a permanente ameaça de destruição física.
Após o século XVII, devido à necessidade/finalidade que se impunha de fazer crescer as forças de produção e de as controlar (era a economia que interessava), o poder, para controlar essas forças de produção, passou a utilizar incentivos, reforços, supervisão, vigilância.
O poder de morte detido pelo soberano (que vinha pondo cada vez mais entraves ao desenvolvimento da economia) vai, então, começar a ser substituído por uma administração e controle minuciosos da população.
Consequentemente, o poder começa a preocupar-se, entre outros, com o número de nascimentos, a mortalidade, o estado de saúde, como meio para melhor governar e dirigir a população. É esta preocupação com os processos e leis meramente biológicas, que leva Foucault a considerar esta forma de poder como sendo um “biopoder”.
Note-se, que este tipo de controle, chamado por isso de “biopolítico”, limita-se exclusivamente ao controle sobre esses fatores exteriores, e não se imiscui nos pensamentos da população.
Na nossa sociedade atual, devido à possibilidade e à capacidade de se registarem (numericamente) todos os pensamentos, ações e desejos de uma população, surge a possibilidade de poder intervir, de modo subtil, sobre a psique humana.
Assim que tivermos uma quantidade suficientemente grande de dados (Big Data), através da exploração desses dados (data mining), torna-se possível perceber certos esquemas comportamentais coletivos que, como simples indivíduos, não teríamos sequer consciência da sua existência.
Tal como a máquina de filmar expõe o “inconsciente visual”, esta imensidão de dados recolhidos e trabalhados pelo novo médium, os computadores, permite o acesso ao que é um “inconsciente coletivo”.
Já sabíamos que vivíamos numa sociedade de vigilância numérica. Passámos a saber também que vivemos numa sociedade em que o poder passou a ter acesso ao inconsciente coletivo. Só que, ao ter acesso ao inconsciente coletivo, o poder passou agora a ter acesso aos futuros comportamentos sociais das massas.
A este poder, que é muito mais eficaz que o “biopoder”, porque além de vigiar e controlar, ainda tem o poder de influenciar as pessoas, chamou Byung-Chul Han de “psicopoder”.
Detendo o conhecimento do funcionamento da lógica inconsciente, ele controla o comportamento social das massas. Ele submete-nos a uma programação e a um controle psicopolíticos.
Entrámos assim numa nova era, a da “psicopolítica”. Parabéns.