"Dinheiro de ladrão"
“As práticas seguidas pelos serviços policiais e de justiça […] têm mais em vista a obtenção de receitas do que a segurança dos cidadãos “.
“Numa população de 22.000 habitantes, foram emitidas 32.975 notificações de prisão, ou seja, uma e meia por cada habitante”, Harvard Law Review.
A ‘privatização da justiça’.
Esta “moda” da liberalização de tudo, ou seja da privatização de tudo, conduz a situações estranhas a que possivelmente nos teremos de ir habituando, até porque a privatização de cada um de nós há muito tem vindo a ser feita. Talvez não tenhamos ainda dado por isso, mas cada vez que nos expomos nos FB, nos concursos de TV, etc. estamos a privatizar-nos.
A sociedade americana é a que tem levado esse caminho mais longe, desde a privatização das cadeias e das academias militares às estradas (compram-se estradas e pontes), polícias e até da administração da justiça. E também, claro está, dos governos.
Como há muitas pessoas bem-intencionadas que advogam tais práticas, ocorreu-me exemplificar com casos reais, o que é isso de ‘privatizar a justiça’. É que não se trata apenas de os ‘casos’ poderem vir a ser ‘resolvidos’ mais rapidamente nos gabinetes de advogados ou noutras instituições para isso ‘vocacionadas’, sempre sem ‘custos’ para o Estado. O que não é contabilizado é o que este ‘sem custos para o Estado’ vai provocar por arrastamento no viver da sociedade.
Michael Barrett, cidadão de Augusta, capital da Georgia, EUA, foi preso em 2014 por roubar uma lata de cerveja. Mesmo antes de ser levado a julgamento teve de pagar $80 para que o tribunal lhe dispensasse um defensor público, que era obrigatório. Condenado, teria de pagar uma multa de $200 e ficaria em regime de liberdade vigiada. Como a acusação envolvia o uso de álcool, o tribunal exigia que Barrett tivesse de usar uma pulseira eletrónica especial que lhe monitorasse o consumo de álcool, mesmo apesar de a sentença não o impedir de consumir álcool. Por essa pulseira especial (Sentinel) teria de pagar à cabeça $50, uma prestação mensal de $39, e ainda $12 pelo seu uso diário. Ou seja, ele seria obrigado a pagar $400 por mês para ser monitorizado para algo que estava legalmente autorizado a fazer. Como Barrett não tinha sequer dinheiro para pagar os $50 iniciais, foi mandado para a prisão.
A Sentinel Offender Services,LLC, é a empresa escolhida que faz os equipamentos de monitorização eletrónica usados pelo estado e agências governamentais, desde o Los Angeles County Probation Department até ao Massachusetts Office of the Commissioner of Probation, e que cobra diretamente os seus serviços aos arguidos, isentando assim os tribunais dos custos administrativos correspondentes.
Num relatório de 2015 sobre a cidade de Fergusson, Missouri, o Departamento de Justiça dizia o seguinte:
“As práticas seguidas pelos serviços policiais e de justiça de Fergusson têm mais em vista a obtenção de receitas do que a segurança dos cidadãos. […] A enfâse nas receitas comprometeu todo o caráter institucional do departamento de polícia de Fergusson, contribuindo para um padrão inconstitucional do policiamento que arrastou consigo o tribunal municipal, originando procedimentos que levantam sérias dúvidas como provocam danos desnecessários aos membros da comunidade de Fergusson.”
Em Fergusson, os habitantes que se atrasassem no pagamento de multas tinham de pagar um adicional de $130 acrescido de uma nova multa de $50 pela emissão da nova multa, mais 56 cêntimos por cada milha que o oficial de polícia fosse obrigado a percorrer para a entregar. Uma vez presos, todos os que não conseguissem pagar as multas, eram mantidos detidos até à próxima sessão do tribunal, o que só acontecia três dias por mês. Quem ficasse preso teria ainda de pagar $30 a $60 por cada dia que ficasse na cadeia.
Com uma população de 22.000 habitantes, só num ano foram emitidas 32.975 notificações de prisão por violações menores, ou seja, uma e meia por cada habitante. Era-se multado “por não se ter o cinto de segurança posto, mesmo estando estacionado”, “por prestar falsas declarações” como por exemplo dizer-se que se chamava “Zé” quando o verdadeiro nome era “José”, ou se fosses negro por “estar sentado em cima de um carro”.
Na pequena cidade de Pagedale, Missouri, os 3.300 habitantes “contribuíam” com $340.000 de multas para o orçamento da cidade, multas que vinham de violações como por exemplo, “não terem persianas nas casas”, “não terem cortinas idênticas e a condizerem” ou “terem relvados em locais não visíveis”.
Sistemas idênticos estão a espalhar-se por todos os EUA. Segundo um artigo da Harvard Law Review, algumas cidades cobram já um valor a quem quer que seja preso, independentemente de virem ou não a serem condenados. Outras cobram a quem for detido o custo pelas investigações policiais, pelas acusações, pelos serviços do defensor público, pelo júri e pelas pernoitas nas prisões. Outras, como Washington na Columbia, permitem que “certas violações do código de estrada e outras violações consideradas menores” possam ser pagas logo na altura ao agente de polícia, a fim de evitar “custos excessivos e demoras prolongadas”.
“Dinheiro de ladrão” era aquele quantitativo mínimo que cada um tinha de ter nos bolsos quando circulava pelas ruas de algumas cidades do Brasil, para no caso de ser assaltado, o que era frequente, entregar ao ladrão. Menos do que essa quantidade corria-se o risco de se ser violentado pelo ladrão. Claro que isso passava-se num país do terceiro mundo. Nos países do primeiro mundo tal anarquia não aconteceria porque existem regulamentos e normas sociais que definem quem pode roubar e quem não pode, quem será condenado se o fizer e quem não será, tendo sempre em vista e consideração o superior interesse da Nação ou a sanidade do sistema económico.
Se não nos fizessem estar tão ocupados a estar ocupados, todos deveríamos saber onde isto conduz.