Da merda e seus companheiros
“Não entendem que tudo o que entra pela boca vai para o ventre, para depois sair do corpo?”, Mateus 15:17.
“Flatum crepitumque ventris in convívio mettendi”, édito do imperador Cláudio para regulamentar flatulências em convívios.
“Hitler padecia de ‘meteorismo’ ou excesso de flatulência”
Este é um assunto que não pode ser visto com ligeireza nem menosprezado. De certa maneira, a merda constitui para a Teologia um problema bem mais complexo que o da existência do mal. É que a partir da altura em que Deus nos concedeu o livre arbítrio deixou de ser responsável pelos nossos crimes, mas o mesmo já não se passa com a merda porquanto a responsabilidade pela criação da humanidade como ela era pertencia-Lhe por inteiro.
Porque hoje a nossa crença em Deus é muito mais metafísica, intelectual, distante, guardada só para certos dias ou ocasiões, muito menos vivida quotidianamente, é-nos difícil entender as enormes preocupações e aflições intelectuais resultantes das interrogações dos primitivos cristãos sobre se Cristo excretava ou não. Para Valentim o Gnóstico, “Jesus comeu e bebeu à sua maneira, sem excretar a comida. O seu poder de continência era tão grande que nem sequer a comida se destruía, porquanto não experimentava qualquer corrupção”. Este parecer deu origem a novos debates para se tentar saber então o que acontecia aos alimentos.
Ainda no século IX estes assuntos eram discutidos. Por exemplo, os monges Pascacio Radberto e Ratramno de Corbie escreviam no seu tratado De corpore et sanguine Domini que o pão e o vinho consagrados na Eucaristia após serem digeridos passavam aos intestinos e eram convertidos em excrementos e urina. De forma mais elegante dizia Mateus 15:17 “Não entendem que tudo o que entra pela boca vai para o ventre, para depois sair do corpo?”
Finalmente, o dilema foi resolvido pela Doutrina que afirmou que após a ingestão da hóstia consagrada, o sacramentum tantum deixava de ser apercebido pelos sentidos dissolvendo-se a sua divindade, seja durante a mastigação ou ao chegar ao estômago. Não há pois absorção do sagrado pelos intestinos.
Não nos podemos esquecer também do seu acompanhante favorito: o peido, quer nas suas versões de bufa ou de traque, consoante silencioso ou sonoro. De certa forma até mais importante, pois teve direito a um édito especial promulgado pelo imperador Cláudio, com vista a regular o modo e o local em que os comensais dos seus banquetes os deviam expelir. Chamava-se o édito Flatum crepitumque ventris in convívio mettendis.
Talvez até pela sua grande periodicidade (uma pessoa saudável solta gases em média uma vez por hora, conforme o que comeu e o stress) e volume de produção (média de dois litros dia), deram também origem a inúmeros estudos científicos, sendo um dos primeiros o de Benjamin Franklin, um ensaio de 1871 com o título Fart Proudly (Peide-se Orgulhosamente) onde procurou associar os componentes das comidas com o odor das flatulências. Era sua intenção contribuir para a possibilidade de controlo desse incómodo público.
Tal como para um instrumento musical de sopro, o ruído é causado pela vibração da abertura anal, variando em função da contração do músculo do esfíncter e a velocidade a que os gases são expelidos, dependendo ainda de outros fatores como a humidade e a gordura corporal.
Já quanto ao cheiro sabe-se que ele é definido pela concentração de três gases, o ácido sulfídrico (cheiro a ovos podres), o metanol (cheiro a verduras em decomposição) e o sulfato de di-metil (cheiro adocicado). É hoje possível a identificação destas composições através de um detetor de flatulências (um “nariz cheirador” eletrónico), com grande aplicação na veterinária para medição do estado de saúde do gado.
Na medicina tradicional chinesa, existem os “wen pishi”, especialistas que detetam doenças gastrointestinais pelos peidos dados pelos pacientes. Com a falta de recursos dos nossos sistemas de saúde, talvez não seja de desprezar esta especialização.
Um dos cientistas de topo de flatulências é Michael Levitt da Universidade de Minessota: a ele se deve a invenção da roupa interior “apanhapeidos”, fabricada em fino tecido de poliéster com carvão ativado, e de grande utilização e agrado pelos astronautas da NASA. Levitt também demonstrou que os gases expelidos pelas mulheres têm uma concentração maior de ácido sulfídrico que os dos homens, cheirando pois pior.
E já que estamos a falar do sexo feminino, convém especificar que a vagina também pode expulsar gases, muito embora eles não provenham do intestino nem sejam fruto da fermentação de bactérias, não sendo portanto mal cheirosos. É conhecido como flato vaginal, sendo frequente nas relações sexuais. Há contudo alguns casos muito raros em que esses gases cheirem tão mal quanto os peidos anais. Estaremos em presença de um problema de fístula retovaginal, possível de ter lugar em doenças como a de Crohn ou proveniente de cirurgias.
A alimentação tem especial importância não só no cheiro como na quantidade de gases expelidos. Estudos comprovam que a ingestão de carne vermelha e de alimentos como os frutos secos, cerveja, vinho, sidra e outros que contenham sulfitos como conservantes são os maiores contribuintes para as flatulências mais mal cheirosas. Já a altitude é a responsável pelo maior número de libertações: ao nível do mar emitimos 15,1 ventosidades ao dia, mas a 7.000 metros emitimos 129,6, daí que para combater este excesso de gás a bordo dos aviões se deva reduzir drasticamente a fibra dos menus que se servem no ar.
Mesmo depois de morrermos, nas três horas seguintes, até ao aparecimento do rigor mortis, podemos ainda expelir matéria fecal e flatulências resultantes da contração muscular e inchamento do cadáver.
O excesso de flatulências podem ser sintomas de intolerância à lactose ou de alergia a alimentos, ou de “importantes transtornos gastrointestinais, como cálculos biliares, síndrome de cólon irritável ou doença inflamatória do intestino. O excesso de flatulência pode delatar algumas vezes um câncer de esófago, de cólon ou de reto”. “Meteorismo” é o termo médico para exprimir o excesso de flatulência, e de que apropriadamente padecia Hitler: para o combater tomava vinte e oito medicamentos diferentes.
Notava Freud no Mal-estar da civilização que a civilização tinha como exigências a “limpeza, ordem e beleza”, daí o processo pelo que as crianças passavam (para elas o cócó não lhes fazia qualquer diferença, brincando com ele e até o comendo) tinha em vista o civilizarem-se. A merda só começou a ser considerada como algo de vergonhoso a partir da Idade Moderna. Na civilizadíssima Roma, a da Cloaca Máxima, cagava-se nas latrinas públicas em companhia e animada conversação. Punham as notícias em dia, enviavam faxes.
Há quem conclua que a consideração da merda como algo de vergonhoso tem a ver com o aparecimento da lógica capitalista, porquanto era considerada como algo improdutivo para a sociedade. Embora possa ter sido verdade, o facto é que hoje tudo isso está ultrapassado, porquanto a merda é ´hoje fonte de cada vez maiores investimentos e rendimentos, do campo económico ao cultural.
Misturando merda humana com animal, expondo-a a certos micro-organismos num ambiente sem oxigénio e retirando as impurezas, obtemos bio metano, um gás energético que podemos fazer circular nas redes de gás natural, ou gerando eletricidade. Autocarros passam a funcionar com excremento. Bill Gates já bebe água extraída das fezes e propõe-se assim matar a sede aos africanos. A EcoFaeBrick produz ladrilhos de caca como material de construção 20% mais leve e resistente que o barro. Os holandeses do Poo Project fabricam papel a partir das bostas de vaca. Ouro e metais preciosos poderão ser extraídos da merda: cálculos dão que da merda produzida por um milhão de pessoas poderão obter-se metais no valor de treze milhões de dólares.
Vários são os artistas que começam a empregar merda nas suas obras, o que tem certas vantagens, especialmente em épocas de crise: é um material acessível, versátil e barato, passível de autoabastecimento, podendo usar-se como pigmento ou matéria-prima, sólida ou líquida.
Em 1961, Piero Manzoni cagou para noventa latas cada uma de trinta gramas, fechou-as hermeticamente, e vendeu-as como “Merda de Artista”, “algo genuinamente íntimo e pessoal” a 37 dólares cada, indexada ao preço do ouro. Em 2008 vendeu a última por cento e trinta e três mil dólares.
Numa performance célebre, em 1997 o colombiano Fernando Pertuz, barrou com a sua merda fatias de pão e comeu-as acompanhadas com uma taça de urina. A finalidade era a de “refletir sobre a vida num país onde diariamente muita gente se come literalmente a si própria"
Nos salões da Universidade de Viena, numa das performances exibidas por Günter Brus debaixo do título Kunst und Revolution, “faz com uma navalha cortes no peito e nos músculos. Urina, bebe a sua urina e vomita. De seguida, enquanto entoa o hino nacional austríaco mostra o processo de excreção anal. Unta o corpo com as suas fezes. Deita-se no chão e começa a masturbar-se”.
No campo da medicina, o topo é agora o transplante de fezes, procedimento muito eficaz na renovação da flora intestinal, aplicado no tratamento da doença de Crohn, colites ulcerosa, diarreia persistente. Estão ainda a fazerem-se experiências com ratos “tranquilos” e ratos “ansiosos”, em que através de transplantes de fezes acalmam os ratos “ansiosos”. Ou seja, afinal o estado de calma ou ansiedade que temos depende do conteúdo dos nossos intestinos, daí que o tratamento de substituição do Prozac para a depressão e ansiedade poderá vir a ser um transplante fecal. Já tomou hoje o seu comprimido de merda?
Afinal, para qualquer lado que nos voltemos, o mundo está sempre inundado de merda, pelo que o seu problema não é despiciente. Para aligeirar assunto tão pesado e pegajoso, nada melhor do que um soneto de Paulino António Cabral de Vasconcelos, abade de Jazente no Bispado do Porto, nascido em 1720:
“Cagando estava a dama mais formosa/ E nunca se viu cu de tanta alvura / Mas ver cagar, contudo a formosura / Mete nojo à vontade mais gulosa!
Ela a massa expulsou fedentinosa / Com algum custo, porque estava dura / Uma carta de amores de alimpadura / Serviu àquela parte mal cheirosa
Ora mandem à moça mais bonita / Um escrito de amor que, lisonjeiro, / Afectos move, corações incita
Para o ir ver servir de reposteiro / À porta onde o fedor e a trampa habita / Do sombrio palácio do alcatreiro!”