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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Cristo "melhorado"

Nem só de pão vive o homem”, Jesus Cristo.
Deus escreve direito por linhas tortas”, Claudel.

Numa obra de 1948, O Cristo Recrucificado, o grego Nikos Kazantsakis (1883 – 1957) faz uma crítica severa à sociedade que dizendo-se cristã renegava na prática diária tudo o que de mais puro essa religião continha, ao ponto de voltar de novo a crucificar alguém cuja atuação fosse idêntica à de Cristo. Estávamos na Páscoa e alguém tinha de ser crucificado.
Muito mais abrangente e universal era a obra de Fiódor Dostoievski, terminada de escrever em 1879, Os Irmãos Karamazov. Fixemo-nos na parte em que Ivan, um dos irmãos, nos conta a reação do Grande Inquisidor, Cardeal de Sevilha no século XVI, quando viu um Jesus regressado repetir, frente à sua catedral, o milagre de ressuscitar uma criança morta, utilizando palavras de conforto e amor. De imediato, o cardeal mandou os guardas prendê-Lo, ordenando que o encerrassem na masmorra do edifício do Santo Ofício. Durante a noite, visita Jesus e diz-lhe:


“Tu és Ele? És Tu?” Mas, como não recebesse resposta, acrescentou logo: “Não respondas, cala-Te. E que poderias Tu dizer? Sei muito bem o que irias dizer. E, aliás, não tens o direito de acrescentar o que quer que seja ao que já disseste. Porquê, então, vires incomodar-nos? Pois Tu vieste incomodar-nos e bem o sabes. Sabes o que se vai passar amanhã? Ignoro quem sejas, não quero saber. Quer Tu sejas Ele, quer sejas apenas a Sua aparência, amanhã vou condenar-Te e fazer-Te subir à fogueira como o pior dos heréticos, e esse mesmo povo que hoje Te beijava os pés, precipitar-se-á amanhã, a um gesto da minha mão, para amontoar os carvões na Tua fogueira…”


Deliberadamente, friamente, intencionalmente, o Grande Inquisidor opõe-se racionalmente a Jesus, na defesa daquilo que considerava ser a sua Igreja, a única igreja possível. Ele era o representante político de uma Igreja vitoriosa que tivera de corrigir a inabilidade de Jesus para pensar politicamente e para compreender a natureza do ser humano.
Quando Jesus responde à pergunta-pedido que lhe fizeram sobre a não transformação das pedras em pão (“Porque é que, tendo fome, não mandas a esta pedra que se transforme em pão?”) com o “Nem só de pão vive o homem”, tal significa para os Grandes Inquisidores que Jesus não percebia a natureza do ser humano, porquanto só muito poucos estarão aptos para superar a fome; a grande maioria recusará sempre essa liberdade oferecida, trocando-a por pão, rotinas, conforto, segurança.
Com o desaparecimento do Império Romano do Ocidente, a Igreja viu-se forçada a tomar nas suas mãos a tarefa complicada de assumir o poder temporal. Para o Cardeal, apesar do enorme sacrifício que essa tomada do poder acarretou, ela teria de ser feita e não poderia ser de outro modo. Como ele diz:


Mas nós diremos que é a Ti que obedecemos e que é em Teu nome que reinamos sobre eles. E de novo lhes mentiremos, pois, na realidade, não deixaremos que voltes a aproximar-Te de nós. Nesta mentira consistirá o nosso sofrimento.”


Devido ao Seu grande amor pelos seres humanos, Jesus depositara neles demasiadas esperanças, o que obrigou a Igreja a ter de O corrigir tendo em consideração a realidade: é que os homens acabaram por se revelarem ingénuos, pueris, preguiçosos e débeis. Para além disso, a vida humana acaba por ter sempre necessidade de um enquadramento feito de hábitos, certezas, leis e tradições, ou seja, de instituições sociais. Assim, uma Igreja universal só poderia ser erigida e mantida pelos padres que, embora compreendessem perfeitamente o ensinamento de Cristo, se viam permanentemente forçados a pregarem conscientemente o contrário, arcando por isso com o peso moral da mentira consciente. Falam sobre a liberdade cristã ao mesmo tempo que convivem com o sistema das necessidades, pão, ordem, poder, lei, para assim conseguirem dominar o ser humano.
Não é por acaso que o Grande Inquisidor diz que Jesus veio “para incomodar”. Agora que os homens dessa época estavam mais do que nunca convictos que eram livres, agora que a Igreja católica, graças ao terror exercido pelo Inquisidor, tinha estabelecido a dominação da “verdadeira religião” e portanto da liberdade (“Não prometera Cristo que a verdade faria de nós pessoas livres?”), agora que a obra de Jesus além de consumada se encontrava melhorada, agora que a humanidade estava unida pelo cristianismo e consolidada pelo poder e pela Inquisição, agora que era possível já ver no fim da história “centenas de milhões de crianças felizes” que povoariam a terra, mesmo que obrigadas à felicidade e atraídas para o paraíso pelo muito pequeno número que as governa (muito embora para alcançar isso, haja sempre um longo caminho juncado por inúmeras fogueiras), agora é que Ele aparecia. Para quê?
No fim da visita, o Inquisidor “dirige-se para a porta, abre-a, e diz-Lhe:

‘Vai e não voltes … não voltes … Não voltes nunca mais, nunca mais’. E deixa-O partir para ‘os sítios escuros da cidade’. O prisioneiro vai-se embora.”


O Inquisidor sabia que os fins extremamente bons a alcançar no fim dos tempos (as tais centenas de milhões de crianças felizes) justificavam tudo. As fogueiras eram necessárias para imprimir uma direção histórica ao sofrimento humano. “O sofrimento é uma função inevitável do progresso, pois o sofrimento é o elemento de uma estratégia”. Evidentemente o sofrimento daquele que é obrigado a sofrer; o estratega só sofre na medida em que sabe que engana conscientemente.


Várias ilações se poderão tirar do raciocínio do político eclesiástico que é o Grande Inquisidor, nomeadamente a de que tanto a religião pode ser transformada num instrumento da política, como a política pode ser transformada num instrumento da religião, o que vem relativizar tudo aquilo que considerávamos como absoluto. A relativização da moral. O Bem e o Mal podendo constantemente transformarem-se um no outro.
Devido ao seu entendimento do que é o ser humano, a sua política vai basear-se na premissa de que há que enganar o ser humano que o quer ser. “O humano precisa de ordem, a ordem precisa de dominação, e a dominação precisa da mentira. O dominador deve pois fazer um uso consciente da religião, do ideal, da sedução e, se necessário, da violência. Tudo, mesmo os fins, serão sempre meios.” Ou dito de outra forma: um fim último que prometa um sentido à existência justifica todos os meios.


Tal como não nos custaria admitir que se Cristo regressasse então à Terra pudesse vir a ser imolado na fogueira da Santa Inquisição ou recrucificado como nos mostra Kazantzakis, alargando um pouco mais a perspetiva temporal, também hoje não nos custaria admitir que se Nietzche tivesse regressado nos anos do nazismo pudesse vir a ser morto numa câmara de gás, que Marx regressado fosse certamente enviado para a Sibéria, da mesma forma que contemporaneamente não nos causa qualquer inquietação a condenação de nações inteiras à miséria e ao desaparecimento por já não serem úteis para a religião económica darwinística. O que nos conduz para o aparecimento de uma dúvida mais geral: será que sempre que se tentar fazer da “verdade” uma “religião de estado”, ela se transformará sempre no seu contrário?


Se Diógenes hoje aparecesse, rapidamente seria preso por ofensa aos bons costumes, ou então seria integrado num daqueles concursos de televisão onde se exibem as tão humanas anormalidades apreciadas. Uma terceira hipótese, mais provável, era a de ser preso e na prisão criar um concurso de grande sucesso na televisão, com os presos, guardas, seus familiares e amigos, ou seja, com todos nós. Inteligente como era, rapidamente se aperceberia que as pessoas de hoje estão “amestradas a compreender as coisas complicadas, não as coisas simples. Adivinhou que a perversão lhes aparece como a coisa normal.
Nos filmes antigos aparecia, por vezes, aquela recomendação de que o que estávamos a ver não correspondia a uma história real, e que “quaisquer semelhanças com personagens reais eram pura ficção”. Claro que hoje essa recomendação não tem qualquer sentido, porquanto toda a realidade passou a ser ficção, não só com a finalidade de esconder o real mas também para nos dar a sensação de que todos podemos participar: afinal todos somos iguais, todos temos as mesmas oportunidades, uns roubam é mais dos que os outros, o que é o máximo a que a democracia pode tranquilamente aspirar.
Apesar da obra de Dostoievski ser do século XIX e de ele ter situado esta ação no século XVI, é caso para dizer que quaisquer semelhanças com personagens reais do nosso tempo, não são ficção, elas existem mesmo. O problema é que já não sabemos o que é existir.

 

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