Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Cristianismo como barreira à barbárie

Roubo Bancos porque é onde o dinheiro está”, Willie Sutton, americano e assaltante de bancos.
O governo civil, na medida em que é instituído para a segurança da propriedade, é na realidade instituído para a defesa do rico contra o pobre, ou dos que têm propriedades contra os que não têm nada”, Adam Smith, A Riqueza das Nações.
Os pobres, sempre os tendes convosco?”, São João, XII, 8, Bíblia.
Na guerra eterna a humanidade torna-se grande; na paz eterna, a humanidade arruinar-se-ia”, A. Hitler.

 

António Damásio explica-nos que até uma célula bacteriana, mesmo estando à solta no citoplasma e não tendo o ADN compilado, é uma metáfora de nós mesmos, ou então, nós é que somos a metáfora dela. É assim que a sua membrana equivale à nossa pele, o seu núcleo representa o nosso cérebro, o seu citoplasma representa o resto do nosso corpo, e os seus organitos representam os outros nossos sistemas extremamente ricos.
É através da permeabilidade da membrana que essa célula se vai relacionar com o meio ambiente que lhe é exterior. Vai procurar fontes de energia para a transformar, tem metabolismo, e tem mecanismos de reparação caso venha a ter uma ferida. Mantém tenazmente a vida até que o genoma lhe diga que o seu tempo terminou. Tal como acontece connosco: senescência e morte. Também ela, tal como nós, reage às ameaças ou às oportunidades. Se aproximarmos de uma amiba a ponta de um alfinete, ela contrai-se. Se a colocarmos num lugar ideal para a sua vida (nutrientes, temperatura), ela relaxa-se.


Ao longo de quantidades de tempo que deixam de ter significado por não serem entendíveis, isto a que chamamos de “vida” conservou sempre uma caraterística única: a de tentar por infindáveis modos manter-se “viva”. Não há caminhos, processos, atalhos, que não experimente. A biodiversidade é disso exemplo e consequência. Até agora.


A conclusão que muitos tiram deste processo é que devemos olhar para a Natureza e retirar ensinamentos sobre a forma como ela “decidiu” entre o que é bom e o que é mau, fazendo dela o nosso guia. Esta glorificação da Natureza deve-se ao facto da organização social prevalecente na nossa sociedade humana tornar difícil o entendimento de que qualquer “evolução” possa ter ocorrido sem qualquer participação ou orientação, nomeadamente  a nossa, pelo que terá sempre de existir uma força diretora sem a qual “o poder caiará na rua”.
Se pudermos aplicar às organizações sociais o mesmo princípio que Darwin nos deu a conhecer para a evolução dos organismos, talvez possamos entender melhor o mundo em que vivemos onde tudo nos aparece, erradamente, como resultante de um progresso quase linear e “natural”.


Todas as nossas organizações sejam elas sociais, económicas, políticas, são fruto de vários processos de tentativa e erro ao longo do tempo, que se revelarão muitas vezes simultaneamente, sobrevivendo as que por qualquer razão conseguirem melhor conservar o poder perante os desafios a que se encontram submetidas na altura.
Por exemplo: ninguém hoje duvida que o sistema capitalista visa a obtenção e maximização de lucro. Mas ele não só não existiu sempre, como não apareceu naturalmente: foi-se desenvolvendo, foi-se acomodando, foi-se infiltrando, até ser o que é nos dias de hoje. Começa sempre pela aquisição de mercadorias ou de trabalho com a finalidade de vendê-los novamente, com lucro. O lucro vem sempre do facto do trabalhador receber um salário menor do que o valor da coisa produzida. A produção capitalista vem da associação da posse dos meios de produção, sejam eles resultantes de edifícios, máquinas, matéria-prima, ou similares, aliada à compra da força de trabalho.


Claro que para se montar este esquema que deu lugar ao capitalismo industrial, tornou-se necessária a existência de um capital inicial previamente acumulado, bem como a existência de pessoas livres (de dependências) e sem propriedades, que tinham de trabalhar para os outros para poderem viver. A história contada às crianças que são os adultos dirá que essa acumulação se ficou a dever às economias de boas almas caridosas que trabalharam muito e que economizaram. Na realidade, a grande concentração de capital necessário veio principalmente através do comércio, englobando neste termo não só a troca de mercadorias como a conquista, a pirataria, o saque, a exploração, a descoberta do ouro e prata na América, a escravatura e o colonialismo. Relembremos que os lucros obtidos na primeira viagem de Vasco da Gama à Índia atingiram 6.000%!


Não interessa agora delinear uma história do capitalismo, mas tão só apontar os seus métodos de ontem e de hoje, e o seu estado permanente de alerta para vencer as forças que se lhe opunham.
Os métodos para acumular capital tiveram por base “uma das mais extraordinárias relações de traições, subornos, massacres e mesquinharias”. Alguns exemplos soltos: o primeiro inglês a imaginar que poderia ganhar muito dinheiro apoderando-se de negros africanos e vendendo-os como matéria-prima para trabalhar nas plantações foi John Hawkins. A Rainha Isabel impressionou-se tanto com o seu “próspero êxito e muito lucro”, que quis ela própria vir a ser sócia de quaisquer lucros no futuro. É assim que, para a segunda expedição, mandou aprestar um navio para Hawkins, a que deu o nome de Jesus. Eis como Hawkins explicou a Richard Hakluyt como decorrera a sua primeira viagem efetuada em 1562 – 1563: “Os negros eram mercadoria muito boa na Holanda, e podiam ser facilmente obtidos na Costa da Guiné, razão pela qual decidiu fazer uma experiência, e comunicou a decisão aos seus amigos de Londres […] Todas as pessoas gostaram tanto da intenção que se tornaram contribuintes da ação. Para tal objetivo arranjaram três navios imediatamente abastecidos […] Dirigiu-se à Serra Leoa onde permaneceu algum tempo, entrando na posse, em parte pela força e em parte por outros meios, de pelo menos 300 negros. Com essa carga velejou para o oceano […] e vendeu o número total dos seus negros: pelo que recebeu em troca tal quantidade de mercadorias que ainda teve de fretar mais dois navios para transportar couros, gengibre, açúcar, pérolas.” Após a sua segunda missão negreira, a Rainha Isabel fez do assassino e raptor Sir. Sir John Hawkins, escolheu por brasão um negro acorrentado em cadeias.


Já os holandeses, “para conseguirem Malaca, subornaram o governador português. Ele deixou-os entrar na cidade em 1641. Assim que entraram na cidade, foram a casa do governador e assassinaram-no, evitando ter de lhe pagar 21.875 libras, o dinheiro da traição. Depois foi a devastação e o despovoamento”. “Era o saque contínuo dos recursos do povo, de forma a tomar deles toda a riqueza excedente disponível”. “Banjuwangi, província de Java, tinha mais de 80.000 habitantes em 1750, e apenas 18.000 em 1811.”


Quão longe já se estava do início da Idade Média onde era considerado crime cobrar juros pelo uso do dinheiro. Para a Igreja, emprestar a juros era usura, e a usura era pecado. Naquela época, quem emprestava fazia-o para ajudar, tirar de uma má situação, não devendo lucrar com a desventura do outro. O justo era receber só o que se tinha emprestado. Se se emprestava um saco de farinha, devia receber-se só um saco de farinha (costume que ainda hoje se mantém quando se empresta à vizinha ovos ou leite). Quem cobrasse juros pelo uso do dinheiro estaria vendendo tempo, e o tempo não pertencia a ninguém para poder ser vendido. O tempo só a Deus pertencia. Além do mais, emprestar dinheiro e receber depois ainda um acréscimo de juro fixo, significava a possibilidade de viver sem trabalhar, o que estava errado.
É claro que uma coisa era o que a Igreja dizia, outra o que fazia, e aos poucos a doutrina foi cedendo. Lentamente, novas leis foram surgindo: “A usura é um pecado – mas, sob certas circunstâncias …”, “Embora seja pecado exercer a usura, não obstante em casos especiais …”. Coube ao advogado francês Charles Dumoulin (século XVI) a introdução dum conceito aceitável pela Igreja, o da “prática comercial diária”, segundo o qual a usura moderada usada como prática diária seria aceitável por oposição à usura excessiva e absurda que deveria ser condenada.
À medida que o sistema capitalista se foi desenvolvendo, foi também obtendo respostas para tudo aquilo que o atacasse, atuando umas vezes violentamente, outras pela inculcação de preceitos lógico-morais.
Por exemplo: Era mau para as crianças não irem à escola e trabalharem 16 horas por dia? G. A. Lee, dono de uma tecelagem de algodão onde as crianças trabalhavam das 6 da manhã às 8 da noite, dizia que “nada era mais favorável para a moral do que o hábito, desde cedo, da subordinação, da indústria e da regularidade” para estimular a moral dos pobres. Também Giddy, o presidente da Royal Society, era contra a proposta de se criarem escolas primárias para as crianças, porque “dar educação às classes trabalhadoras pobres seria na realidade prejudicial à sua moral e felicidade; aprenderiam a desprezar a sua sorte na vida ao invés de fazer deles bons servos na agricultura e outros empregos laboriosos, a que a sua posição na sociedade os destina […] Permitir-lhes-ia ler folhetos sediciosos e torná-los-ia insolentes para com os seus superiores.”
O Arquidiácono W. Paley dava consolo e ajuda aos pobres miseráveis através do otimismo: “Algumas das necessidades que a pobreza impõe não constituem durezas, mas prazeres. A frugalidade em si é um prazer. É um exercício de atenção e controle que produz contentamento. Este contentamento perde-se no meio da abundância. Não há prazer quando se vive rodeado de imensos recursos. Uma outra vantagem ainda maior que possuem as pessoas em situação inferior é a da facilidade com que sustentam os filhos (tão entranhada ficou esta ideia que ainda hoje a “sabedoria” popular diz que “tudo se cria” a propósito da vinda de mais um filho, seja em que condições for, mesmo sem elas). Tudo o que um filho de um pobre precisa está encerrado em duas palavras, ‘indústria e inocência’”.
“Os pobres não devem invejar aos ricos a sua ociosidade. Os ricos é que devem de estar invejosos. Porque a ociosidade é a cessação do trabalho, e portanto, só pode ser gozada, ou mesmo provada, pelos que conhecem a fadiga. O rico vê, e não sem inveja, o prazer e a recuperação que o repouso proporciona ao pobre”. Estas considerações de Paley datam de 1793, altura da Revolução Francesa, pelo que, com receio que a revolução atravessasse a Mancha, aconselha ainda os pobres dizendo que “Ambicionar a situação ou a fortuna dos ricos, e a tal ponto desejar tomá-las pela força, ou através do tumulto e confusão públicos, não só é mau como insensato.”


Centenas de petições foram enviadas pelos trabalhadores diretamente para o Parlamento, uma vez que as petições enviadas para os patrões nem resposta tinham. A quando da petição para a diminuição do número de horas de trabalho diário a fim de se passar das 14 ou 16 horas para as 10, o Parlamento considerou que tal seria uma interferência à liberdade dos súbditos “que nenhuma outra legislatura da Cristandade teria tolerado por um momento”. Os industriais de Gloucester caracterizaram esta proposta como digna da pior idade média, por interferir na liberdade que tinha o operário de poder trabalhar tanto quanto o patrão desejasse. Este argumento de que a limitação das horas de trabalho interferia na liberdade natural do homem foi repetidamente usado na América e na Inglaterra.
Quando em 1819 foi aprovada nova legislação para regulamentar o trabalho de menores nas Fábricas de Algodão (e apenas nelas, por aí o trabalho ser considerado muito perigoso), foi proibido o emprego de menores de 9 anos. Dos 10 aos 16, o seu trabalho ficava limitado a 12 horas por dia. Muitos dos membros da Câmara dos Lordes votaram contra por considerarem que “o trabalho tem de ser livre”: se as crianças querem trabalhar e os donos das fábricas os querem empregar, qual era o problema? O que se estava a fazer era atentar contra o sagrado direito da liberdade contratual, destruindo assim os fundamentos do mercado livre.


Apesar de algumas dessas petições tivessem vindo a serem aprovadas no Parlamento, os trabalhadores acabaram por descobrir que uma coisa eram as leis escritas, outra era a aplicação das leis. Descobriram também que a mesma lei podia ser aplicada de forma inteiramente diferente quando aplicada aos empregadores. Nos tribunais, muitas vezes o magistrado que ouvia a causa era o próprio patrão contra quem reclamavam. Mesmo que tal relação de proximidade não se verificasse, bastava que o magistrado pertencesse à classe do patronato, ou que pensasse da mesma forma: partiam do princípio que os trabalhadores deviam estar gratos pelas poucas migalhas que lhes eram atiradas.
Numa muito célebre sentença proferida em 1816 pelo juiz Sir William Garrow condenando a dois anos de prisão nove chapeleiros por se reunirem num sindicato para a proteção dos seus interesses (o que era considerado ilegal) pode ler-se: “Neste feliz país onde a lei coloca o menor súbdito em igualdade com a maior personagem do Reino, todos são igualmente protegidos, e não pode haver necessidade de se associar. A gratidão devia-nos ensinar a considerar um homem como o Sr. Jackson, que emprega de 100 a 130 pessoas, como um benfeitor da comunidade”.


Mas os economistas da época da Revolução Industrial deram-nos ainda a conhecer uma série de leis que entendiam serem tão válidas para a sociedade e economia como as leis dos cientistas para o mundo físico. São as chamadas “leis naturais” da Economia. Fixas, eternas. Não discutíveis.
Para Adam Smith, o bem-estar da sociedade estava ligado à liberdade do indivíduo (1776). Se dermos a todos a maior liberdade, se os deixarmos ganharem o mais que puderem, se apelarmos para que cada pessoa procure apenas o seu interesse individual, toda a sociedade melhorará pois a oferta de qualquer artigo acabará por se ajustar à procura pelo preço certo. Trabalhe para si mesmo e estará servindo o bem comum. Para que isso seja possível não se deve interferir na lei natural como seja através da regulamentação dos horários ou da fixação dos salários dos trabalhadores, até porque será inútil. O monopólio dos capitalistas para elevarem os preços e dos sindicatos dos trabalhadores para elevarem os salários, constituem violações da lei natural. A concorrência a todos os níveis é a ordem natural: mantém os preços baixos e assegura o êxito dos fortes e eficientes, livrando-se ao mesmo tempo dos fracos e ineficientes. O governo servirá apenas para preservar a paz, proteger a propriedade.
Em resposta a William Godwin que afirmava (1793) que embora todos os governos fossem um mal, o progresso era no entanto possível e a humanidade poderia chegar à felicidade pelo uso da razão, Thomas Malthus afirmava (1798) que o progresso no destino da humanidade era impossível, e que portanto todos deveríamos viver contentes com o que havia (e não tentassem fazer uma revolução como a da França). Para ele, as “causas profundas” que fazem a miséria da humanidade não estavam nas instituições mas no facto de a população aumentar mais depressa do que o alimento para a manter viva. A razão pela qual as classes trabalhadoras eram pobres não residia nos lucros excessivos (razão humana) mas no facto da população aumentar mais depressa do que a subsistência (lei natural). “Nada se pode fazer para melhorar a situação dos pobres. É, sem dúvida, um pensamento muito acabrunhador, o de que o grande obstáculo a qualquer melhoria extraordinária da sociedade seja uma natureza impossível de superar.”
Na segunda edição do seu livro (1803), Malthus advogava uma solução: para além da “miséria e vícios” era possível o “controle moral”. Greves, revoluções, caridade, regulamentações governamentais, nada disso poderia ajudar os pobres na sua miséria – eles é que deviam de ser responsabilizados por se reproduzirem tão rapidamente. Impeça-se que se casem tão cedo. Pratiquem o “controle moral” – não tenham famílias grandes – e assim poderão ajudarem-se a si próprios. Em conclusão, os pobres são os únicos culpados pela sua pobreza.


Uma outra “lei natural” era a que ficou conhecida como a “lei férrea dos salários” que os trabalhadores ganhavam. Sabia-se já que o salário não era sempre o mesmo, e que tal dependia não só do trabalhador em questão e do acordo que fizera com o empregador. Que o empregador escolheria os que trabalhavam mais por menos salário. Os trabalhadores eram assim obrigados a reduzirem o seu preço mediante a concorrência de outros trabalhadores. O economista David Ricardo vai demonstrar (1817) que o “preço do mercado” de trabalho tende a conformar-se com o “preço natural”, uma vez que quando o preço do mercado é alto e os trabalhadores recebem mais do que o suficiente para a manutenção das suas famílias, tal faz com que a tendência seja para o aumento do tamanho das famílias. Com isso, aumentará o número de trabalhadores, o que consequentemente levará a uma baixa de salários. Quando o preço do mercado é baixo, os trabalhadores recebem menos do que o necessário para manterem as famílias, o seu número acaba por se reduzir, o que conduzirá a um aumento dos salários.
Segundo esta “lei de salários”, Ricardo conclui que com o tempo, os trabalhadores não poderão receber mais do que o “necessário para lhes permitir […] viver e perpetuar a raça, sem aumentar nem diminuir”.
Depois, a quando da tentativa dos trabalhadores para diminuírem as horas de trabalho, e perante a tremenda oposição dos industriais que previam que se tal viesse a ser aprovado conduziria à ruína, aparece o economista Nassau Senior com a doutrina (1844) segundo a qual as horas não podiam ser mais reduzidas, porquanto o lucro obtido pelo empregador vinha da última hora de trabalho, pelo que se se a retirasse, desapareceria o lucro. “Sob a lei atual, nenhuma fábrica que emprega pessoas com menos de 18 anos pode trabalhar mais de 12 horas por dia nos cinco dias da semana e 9 horas aos sábados. Ora, a análise seguinte mostrará que numa fábrica sob tal regime o lucro líquido é obtido na última hora”.
Esta teoria da “última hora” foi empregada para combater os pedidos a favor de um menor dia de trabalho. Mas outra teoria de Nassau, a doutrina do “fundo de salário”, foi ainda utilizada para combater os pedidos de aumento de salário. Segundo ela, era “pura tolice” os sindicatos e os trabalhadores fazerem greve a favor de aumentos de salário, e isto porque o pagamento dos salários era retirado de um certo fundo posto de lado exatamente para isso. Assim, a menos que o fundo de salários aumentasse ou o número de trabalhadores diminuísse, não havia qualquer outra hipótese para as revindicações dos trabalhadores. Isto era uma lição de Aritmética elementar: “É uma questão de divisão. Reclama-se que o quociente é muito pequeno. Bem, então, quais são as formas de torná-lo maior? Duas. Aumente-se o dividendo, permanecendo o divisor o mesmo; reduza-se o divisor, permanecendo o dividendo o mesmo, e o quociente será maior.”
Mas Nassau propunha uma solução: o aumento do fundo de salários. Isso seria possível “libertando a indústria da massa de restrições, proibições e tarifas protetoras, com as quais a Legislatura por vezes, numa ignorância bem-intencionada, tem procurado esmagar ou dirigir mal os seus esforços.” Ou seja, deixem os negócios em paz e o resultado será mais dinheiro no fundo reservado aos salários. Velha aspiração sempre viva.
John Stuart Mill, que também considerava correta esta teoria do fundo salarial, veio finalmente em 1869 a reconhecer que essa doutrina era destituída de base científica e que deveria ser posta de lado. O que muito contribuiu para que os trabalhadores cada vez mais considerassem que essa tal de Economia Política não passava de uma ciência que só servia os interesses da classe patronal: era a economia dos homens de negócios.
Quase um século depois da lei de 1816 que proibiu a contratação de trabalhadores com menos de 9 anos e da celeuma sobre a liberdade de contratação, eis que em 1905, nos EUA, o Supremo Tribunal declarou inconstitucional uma lei do estado de Nova Iorque que limitava a 10 horas por dia o trabalho dos padeiros, invocando que tal lei “privava os padeiros da liberdade para poderem trabalhar mais horas se assim quisessem”.


Também há quase um século, em 1931, F. A. von Hayek teorizou que para se evitar que os lucros caiam, se deveria reduzir a assistência social bem como os salários pagos: “Certos tipos de ação estatal, causando um desvio na procura dos bens do produtor para o consumidor, podem provocar um retraimento na estrutura capitalista da produção, e, portanto, uma estagnação prolongada […] A concessão de crédito aos consumidores, recentemente defendida como cura para a depressão, teria na verdade um efeito contrário; um aumento relativo na procura de bens do consumidor apenas pioraria a situação.” Hayek advoga que a restauração do lucro seja feita através da redução da capacidade aquisitiva das massas, ou seja, através da redução dos salários. O tal de “empobrecimento”, das massas evidentemente. Hayek, o profeta.
Mas Hayek nota também que “Na moderna economia de troca, o industrial não produz com o objetivo de atender a uma certa procura – mesmo que use essa frase por vezes – mas na base dos cálculos de lucros.” O que faz com que o aclamado cronista americano Walter Lippmann defina tão bem o capitalismo quando na sua crónica semanal do Herald Tribune de 13 de Julho de 1934, escreve: “Não adianta falar de recuperações nas atuais condições, a menos que os capitalistas, grandes e pequenos, comecem a investir em empresas com o objetivo de obter lucro. Não investirão para ganhar medalhas. Não o farão por patriotismo, ou como ato de serviço público. Só o farão se tiverem oportunidade de ganhar dinheiro. O sistema capitalista é assim. É assim que funciona”.


Já na Primeira Guerra se tinha chegado ao cúmulo dos países em guerra trocarem matérias primas entre si, como aconteceu, por exemplo, quando a Alemanha precisou de alumínio para a construção dos seus zepelins e a França precisava de magnetos para os seus aviões; então, a troca foi feita através da Suíça, que comprava magnetos à Alemanha, e vendia-lhes bauxite comprada aos franceses!
Não é pois de admirar que os motores que equiparam os carros de assalto nazis tivessem sido fornecidos pela GM General Motors. Há investigações com a finalidade de se apurar (“tarde piaste”) se esses e outros fornecimentos se estenderam para além do começo da Segunda Guerra Mundial. Tal como os capitalistas alemães “aliados” do regime, eles apostam em tudo o que possa dar lucro. O sistema capitalista é como que um lençol de água a correr sobre uma superfície, que irá penetrar em todas as fissuras e aberturas que encontre no seu caminho: sempre pronto a acumular seja onde for e à custa de quem for.
Independentemente de todas as considerações que possam estar na origem do nazi-fascismo, é preciso não nos deixarmos envolver no horror que lhe está associado, que nos pode levar a acreditar que se tratou de uma exceção, que foi eliminada ou que não volta mais. É sobretudo preciso não esquecer que a economia nazi-fascista é uma economia capitalista, em que a restrição à mobilidade do capitalismo foi a troca, o prémio que os capitalistas estiveram dispostos a pagar para terem a proteção contra as exigências do trabalho. A economia nazi-fascista é a economia capitalista exatamente com a mesma necessidade de expansão, a mesma necessidade de mercados, que caracterizara o capitalismo no seu período imperialista. Foi a saída para uma economia capitalista em colapso.
E, muito embora a economia da União Soviética não possa ser teoricamente considerada como uma economia capitalista, as bases profundas em que assenta são eminentemente capitalistas: não visando o lucro, ela assenta num mesmo sistema de obediência e autoridade, sem o qual esta sociedade capitalista não poderia sobreviver.
Se não quisermos ter de vir a encarar a possibilidade de uma “nova” repetição no futuro, teremos de alterar as bases em que esta nossa sociedade humana se tem afirmado.

Enganam-se aqueles que pensam que esta organização é a única possível, que vai durar para sempre assim. Estamos ainda no princípio, e temos já agora meios para evitar os constrangimentos que presidiram à formação desta forma de sociedade. Exemplos recentes de propostas para sociedades alternativas encontram-se já em Jesus Cristo, pela consideração de que todos os homens eram irmãos (visionário no tempo, ainda hoje não entendido ou praticado), ou na Cidade de Deus de Santo Agostinho. O Cristianismo como barreira à barbárie.

 

 

 

 

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2025
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2024
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2023
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2022
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2021
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2020
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2019
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2018
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2017
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2016
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2015
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub