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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

"Big Data, big shit!"

Todos os modelos estão errados, mas alguns são úteis”, George E. P. Box.
Quem pode dizer porque é que os homens fazem o que fazem? Fazem-no simplesmente, e podemos constatá-lo e medi-lo com uma exatidão sem precedentes. Se dispusermos de suficiente data, os números falam por si mesmos”, Chris Anderson.

 

Sabíamos já que eramos constantemente vigiados. Era o conceito já pacificamente aceite do Big Brother. Se agora estendermos esse conceito, para além da vigilância individual a que somos sujeitos, às coisas que nos rodeiam, inclusivamente às coisas que usamos na vida quotidiana, armazenando tudo isso digitalmente, teremos um enorme conjunto de informações, que se entendeu chamar de Big Data.


A explicação dada, e que convence distraídos e neoconversos, é de que assim se podem propiciar melhores opções de compra, abrindo novas possibilidades aos indivíduos, facilitando-lhes a vida. Trata-se apenas de facilitação, de marketing. Qual é pois o problema?

 

Em termos latos, pode-se dizer que até ao século XVII, o poder era detido pelo soberano, o poder soberano, e significava a capacidade que tinha para decidir sobre a morte de qualquer pessoa, evidentemente desde que não fosse a dele. Era o poder que se manifestava como direito a dispor e a tomar. Era através desse poder da espada que se conseguia controlar a população.


Há medida que a sociedade se foi complexificando, em que a forma de produção agrária se vê suplantada pela industrial que requer uma adaptação à produção mecânica e a uma maior disciplina do corpo, começa a surgir uma outra forma mais prática, menos evidente (é sempre este o ‘bom’ caminho) de controlar e dirigir a população. O que estava em causa já não era o dispor e tomar, mas acautelar a produção. Em vez de atormentar o corpo, este novo poder disciplinar fixa um sistema de normas através do reforço do controle administrativo e da vigilância, tendo em vista a utilização e a intervenção nos processos e leis biológicas, como era o caso da procriação, taxa de natalidade e mortalidade, nível de saúde e esperança de vida. Quem não se prestasse a esses ‘cuidados’, arriscava a ser preso, ficar fora do sistema e entregue a si próprio. A esta forma de controle feito através do aproveitamento da conduta exterior da população chamou Foucault de biopoder.


Com a vulgarização e obrigatoriedade da utilização do computador, ficámos a saber que cada clic fica armazenado, podendo com isso rastrear-se cada passo que damos. Deixamos as nossas impressões digitais em todo o lado. Curiosamente, e contrariamente ao panótico de Bentham que se aplicava apenas a todos os que fossem prisioneiros, neste panótico digital ninguém se sente prisioneiro. Todos vivem na ilusão da liberdade, inclusivamente alimentando voluntariamente esta panótico.
Os utilizadores comunicam-se entre si não por serem coagidos mas por necessidade própria. Em vez de temerem pelo reconhecimento da sua esfera privada e íntima, são eles próprios a sentirem a necessidade de se exibirem sem qualquer pudor, não estabelecendo qualquer distinção entre liberdade e controle.

Apoiados no senso comum do “quem não deve não teme”, são adeptos fervorosos de uma sociedade ‘transparente’, não percebendo a que transparência se referem (se a dos negócios, se a das suas comunicaçõezinhas) e que nesse seu caso o máximo de transparência corresponde ao máximo de controle.


A Acxiom é uma empresa com sede no Arkansas, que possui dados pessoais sobre 300 milhões de cidadãos dos Estados Unidos, ou seja, sobre quase todos eles. Sabe mais sobre eles do que o próprio FBI ou IRS. Foi ela que disponibilizou às autoridades americanas os dados pessoais de suspeitos do ataque do 11 Setembro. Neste ‘negócio’ torna-se difícil distinguir entre a espionagem com interesses meramente económicos e o serviço secreto oficial, o que faz com que na sociedade de informação em que vivemos, o Estado e o mercado sejam cada vez mais inseparáveis.

A Acxiom, a Google ou a Facebook, assemelham-se cada vez mais a serviços secretos, chegando por vezes a utilizarem o mesmo pessoal e idênticos algoritmos para rentabilizarem operações que em tudo são muito semelhantes.


A vigilância exercida totalitariza-se quando a observação se estende às coisas que nos rodeiam, às coisas que usamos na nossa vida quotidiana, num sem fim de informações sem pausas sobre o que fazemos e sobre o que não fazemos. É assim que os célebres óculos da Google, anunciados como promessa de liberdade individual sem limites, vão permitir que quaisquer estranhos nos fotografem e filmem sem cessar. Na prática trata-se de mais uma câmara de vigilância que cada um leva consigo e que fornece mais dados à empresa. O olho humano transformado em câmara de vigilância. Cada um observa e vigia o outro, espiando-se por sua vez a si próprio.


Com a exploração desta imensa quantidade de dados, estas empresas conseguem aperceber-se dos modelos coletivos de comportamento, mesmo daqueles comportamentos que nem sequer aparecem como conscientes para os próprios indivíduos. Têm assim acesso a um chamado inconsciente coletivo digital. Através deste acesso, estas empresas, para além de vigiar e controlar as massas, conseguem ainda regular o seu futuro comportamento social. Não se trata já só de conhecer os modelos de conduta no presente, mas também de conhecer os seus possíveis prognósticos.

Trata-se não só de controlar os “apetites” das massas no presente, mas também de induzir “apetites” no futuro. A esta forma de controle feito através da utilização do inconsciente coletivo digital, chamou Byung-Chul Han de psicopoder.


Mas como conseguem estas empresas analisar e tirar conclusões de tal quantidade de dados? Se seguissem o método científico tradicional, primeiro os cientistas teriam de aventar uma hipótese, um modelo visualizável nas suas cabeças, e depois testá-lo. Teriam de encontrar uma causalidade que lhes permitisse ligar os dados ao modelo e á realidade. Construir uma teoria. Evidentemente, devido à enormidade de dados, tal método seria extremamente lento, e mesmo que chegasse a alguma conclusão, já teria passado o tempo de intervir.


Chris Anderson tem um artigo muito interessante, “The end of theory: the data deluge makes the scientific method obsolete”, que começa com uma citação do matemático George E. P. Box que diz que “Todos os modelos estão errados, há é alguns que são úteis”.
Segundo Anderson, a teoria aparece como uma construção, um meio auxiliar para compensar a falta de dados. Se dispusermos de dados suficientes, a teoria passa a ser supérflua. Em vez da criação de modelos de teorias hipotéticas, podemos passar diretamente à análise matemática sem o estabelecimento de hipóteses sobre o que poderão significar, deixando para depois o estabelecimento do contexto. Podemos lançar números para as maiores constelações de computadores existentes e deixar que sejam os algoritmos estatísticos a encontrar os padrões que a ciência não consegue. A correlação substitui assim a causalidade. O “é assim” substitui o “porque”.


Transcrevendo Anderson:


Empresas como a Google, que cresceram numa época de massas de dados enormemente grandes, hoje em dia não têm que decidir-se por modelos errados. Aliás, não têm mesmo que decidir-se em geral por nenhum modelo […] Quem pode dizer porque é que os homens fazem o que fazem? Fazem-no simplesmente, e podemos constatá-lo e medi-lo com uma exatidão sem precedentes. Se dispusermos de suficiente data, os números falam por si mesmos.”


Foi assim que a Google conquistou o mundo dos anunciantes, sem saber nada sobre a cultura e convenções de anúncios. Assumiu que tendo melhores dados e melhores ferramentas de análise, tal seria suficiente para ganhar. E foi.
Ela não sabe porque é que uma página é melhor do que outra: é-lhe suficiente que as estatísticas que lhes chegam dos enlaces digam que é. Não é necessária qualquer análise semântica ou causal. É por isto que a Google pode traduzir linguagens sem as ‘conhecer’, e é por isso que pode adicionar anúncios a conteúdos sem conhecer nem os anúncios nem os conteúdos.


Deparámo-nos aqui com duas das mais importantes linhas de força que podem definir a presente e futura sociedade: a da vigilância digital, que permitindo o acesso ao inconsciente coletivo pode vir a influenciar o futuro comportamento social das massas, com o consequente controle por parte de grandes grupos, sejam eles empresas ou complexos militares-industriais, resultando numa crescente apatia ou militarização da sociedade; o desaparecimento da teoria que nos permitia pensar o mundo ou como o compreender de forma a poder-nos situar nele, quer fosse através da ontologia, da linguística, da sociologia ou de qualquer outra teoria sobre comportamento humano, e sua substituição por matemática aplicada à massificação de dados (“A quantificação do real na busca de dados expulsa o espírito do conhecimento”).


São enormes e muito pessimistas as implicações resultantes. Deixo no entanto dois apontamentos de otimismo: um pensamento de Bernard Lonergan e uma pequena história.


O pensamento:


O que é provável ocorre mais tarde ou mais cedo, mas também pode nunca surgir. Quando surge, a probabilidade de ocorrência é substituída pela probabilidade de sobrevivência e vai permitir o surgimento de esquemas futuros.”


A pequena história:


No tempo dos índios e dos cowboys, um índio, montado no seu cavalo, dirigia-se velozmente para o aldeamento dos cowboys. Quando lá chegou, no seu falar inglês resumido de filme americano, disse ao capataz: “Big Chief, no shit!” O capataz, também já habituado aos grunhidos monossilábicos dos cowboys de Holywood, percebeu que o grande chefe índio não cagava (lamento, mas não posso dizer de outra forma pois na altura não existiam casas de banho, e os índios eram preguiçosos pelo que não obravam, e defecar parece-me pretensioso para um índio), pelo que lhe mandou um purgante. No dia seguinte repete-se a cena. Lá vem o índio e diz “Big Chief, no shit!”. Lá levou novo purgante. Isto repete-se por mais quatro dias, até que o capataz, para acabar de vez com a situação, resolve mandar-lhe uma dose para vários cavalos. Para seu grande espanto, no dia seguinte lá vê ao longe o índio montado no cavalo a correr na sua direção. Mas eis que o índio chega e diz: “Big shit, no Chief!

 

Não sei o que as Googles ou o que for concluirão desta história do índio, mas julgo saber o que o índio, que somos todos nós, concluirá sobre as Googles ou o que for: “Big Data, big shit!

 

 

 

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