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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

"Avatar", cópia da realidade copiada

A única opção que os Avatares azuis têm é a de serem salvos pelos humanos ou a de serem destruídos pelos humanos
É o velho e escondido tema racista do marginal que sendo inválido na Terra está à altura de conquistar a mão da princesa local


Ainda hoje a Índia nos surge como aquele continente longínquo e afastado das nossas realidades quotidianas onde um povo pobre mas pacífico vive (ok, há aquele pequeno problema de gostarem de em grupo violarem mulheres, mas isso são tradições culturais ou são atuações da classe baixa ou são até um meio rebuscado para diminuírem a natalidade), onde os animais são respeitados e as vacas têm direito a tudo. Da mesma forma nos surge a sociedade Avatar, com os seus povos ecologicamente azuis, sempre prontos a cuidarem da natureza.
Porque terá Cameron escolhido aquela cor para representar os habitantes desse seu Éden? Não posso deixar de recordar aquela história passada na extinta União Sul Africana, nação do que tinha sido condenada pela ONU e obrigada a retirar todas as placas com os dizeres de “brancos” e “não brancos” utilizadas com a justificação para que as bichas se organizassem ordenadamente segundo o “desenvolvimento separado”. Nada de confusões nem misturas (como dizia o Almirante: “Cada macaco no seu galho”). Quando os observadores da ONU voltaram, verificaram que as pessoas continuavam a fazer bichas separadamente, desta vez em obediência a placas que, para cumprirem o mandatado pela instância internacional, não tinham já os dizeres de “brancos” e “não brancos”, tendo sido substituídos por placas com dizeres de “azuis-claros” e “azuis-escuros”.

 

Em Novembro de 2009, Arundhati Roy escreveu um extenso artigo no Outlookindia.com com o título de “Mr. Chidambaram’s War” sobre a chamada Operação Caça Verde (Operation Green Hunt), uma massiva operação militar lançada pelo governo indiano para ‘limpar’ as terras tribais de Jharkhand, Orissa, Chhattisgah e da Bengala Ocidental, com o fim de as entregar a empresas mineiras. Estas terras, que pertenciam por direito próprio aos adivasis, os cinquenta milhões de habitantes originais dessas imensas florestas e montanhas ricas em minerais, que já lá viviam muito tempo antes do aparecimento da Índia, foram vendidas a companhias mineiras e produtoras de aço (Essar, Posco, Rio Tinto, Mittals, Jindals, Tata, BHP Billiton, Vedanta) que planeavam explorar as suas imensas reservas de bauxite, ferro, uranio, dolomite, carvão, zinco, cobre, diamante, ouro, quartzo, berílio.
Contra os adivasis, cujo sustento básico era totalmente dependente da terra, que vivem em condições de subalimentação crónica, que veem a montanha como uma divindade viva, que nunca tiveram acesso à educação, saúde ou proteção da justiça, que têm sido um povo explorado, regularmente ludibriado por pequenos homens de negócios e usurários, em que a violação das suas mulheres é como que um direito dos polícias e dos funcionários da administração florestal, foram enviadas para os combater e expulsar dessas suas terras, forças militares e paramilitares (a Polícia Especial, com nomes totémicos como os Cobras, Escorpiões, Galgos, a Força de Polícia de Reserva Central, a Força de Segurança da Fronteira e o famoso Batalhão Naga) e as chamadas milícias do povo (“salwa judum”) em operações de aniquilação, incêndio e extermínio de comunidades tribais inteiras.
Objetivo governamental: retirar 85% da população e instalá-la noutros locais. Este é o plano que Mr. Chidambaram gostava de ver cumprido. É claro qua para isso a Índia teria de se converter num estado policial. O governo vai ter de se militarizar.
Para isso, o governo iria necessitar de criar um inimigo que justificasse essa militarização. A junção das forças dos adivasis com os maoistas da região (CPIM, o que restou do banido Partido Comunista da India) foi o pretexto que serviu para a criação nos meios de comunicação social da imagem demoníaca dos guerrilheiros sanguinários que, armados com as suas AK-47, passaram a constituir “a maior ameaça à segurança interna” que o país conheceu.
Descrito nos meios de comunicação como movimento de resistência ao progresso, publicaram-se numerosas histórias denunciando o “terrorismo vermelho”, relegando para lugar secundário o “terrorismo islâmico”. “Maoista” acabou por ser um termo genérico aplicado a todos os que vivendo nas florestas resistissem à desertificação, ao roubo das terras. Passou a ser a melhor desculpa que o governo podia ter para exterminar os pobres. “Qualquer criança da floresta de Dantewada sabe que a polícia trabalha para as ‘companhias’ e que a Operação Caça Verde não é uma guerra contra os Maoistas. É uma guerra contra os pobres.”

 

James Cameron no seu muito oscarizado Avatar conta-nos a história de um ex-fuzileiro inválido que é enviado da Terra para se infiltrar numa raça de seres de pele azul que vivem num planeta distante, com a missão de os persuadir a deixarem que o subsolo possa ser explorado pelo seu patrão. Estes indígenas viviam em harmonia com a natureza que, ao mesmo tempo, os imbuía de uma espiritualidade profunda. Previsivelmente, o ex-fuzileiro acaba por se apaixonar pela bela princesa aborígene juntando-se ao seu povo para a batalha final, ajudando-o a derrotar os invasores humanos e a salvar o planeta.
Dentro do mais básico esquema “politicamente correto” encontramos aqui o rapaz branco que alinha ao lado dos aborígenes ecologicamente corretos contra o “complexo militar-industrial” dos invasores imperialistas. É o velho e escondido tema racista do marginal que sendo inválido na Terra está à altura de conquistar a mão da princesa local. E temos, totalmente escamoteado pelo retrato idílico dos seres azuis, a existência das suas estruturas hierárquicas opressivas, como é demonstrado pela existência de uma princesa.
De tudo isto, a conclusão é também evidente: a única opção que os azuis têm é a de serem salvos pelos humanos ou a de serem destruídos pelos humanos. Ou desempenharem o papel que lhes atribui a fantasia do homem branco, ou serem as suas vítimas brutalizadas. Em qualquer dos casos não passam de joguetes.

 

O mesmo se passa com o povo de Orissa que vendo-se reduzido a passar fome, com condições de vida sem qualquer dignidade, foi forçado a lutar pela sua sobrevivência. Só que como em Orissa não há princesa à espera do herói branco que a seduzirá e que contribuirá para a salvação do seu povo, a população tribal de Orissa acabou por se voltar para os ‘maoístas’, únicos que mobilizaram os camponeses famintos.


Tal como no Avatar, que ao fim de três semanas de exibição já tinha ganho muito dinheiro (um bilião de dólares), aqui, e só considerando apenas o valor financeiro dos depósitos de bauxite existentes em Orissa, também se ganha muito dinheiro (2.27 triliões de dólares em 2004 - o dobro do Produto Nacional Bruto da Índia). A valores atuais serão perto de 4 triliões (4 com 12 zeros). Deste valor o governo, ao que dizem, recebe menos de 7% em royalties. Há contudo relatórios conhecidos (Lokayukta Report de Karataka) que concluem que “por cada tonelada de ferro minerado por uma companhia privada, o governo fica com um royalty de 27 rupias e a companhia mineira com 5000 rupias”. Ou seja 0,6% para o governo e 99,4% para a companhia mineira.


Assim, da próxima vez que alegre e indignadamente levantarem cartazes a dizer “Je suis quelque chose” talvez fosse melhor pensarem que essa “quelque chose” é que todos somos adivasis. Ou vamos ser. Bem feito, para não gastarmos acima das nossas possibilidades.

Em tempo: P. Chidambaram, ministro do interior da Índia, chefe responsável pela condução da Operação Caça Verde, fez toda a sua carreira como advogado de corporações ao serviço de várias empresas mineiras, sendo diretor não-executivo da Vedanta. Assim que se tornou ministro, uma das primeiras autorizações que deu foi para que a Sterlite prosseguisse com a sua mineração, apesar do Supremo Tribunal ter dito que não concederia tal autorização uma vez que a mineração destruiria as florestas, as nascentes de água, o ambiente e as vidas de milhares de pessoas das tribos que aí viviam. Seguiu-se a autorização para que a TwinstarHoldings, uma companhia sediada nas Maurícias, comprasse ações na Sterlite. A Sterlite era parte do grupo Vedanta.


A Vedanta é uma das maiores companhias multinacionais de mineração do mundo a operarem em Orissa. É propriedade de Anil Aggarwall, um bilionário que vive em Londres numa casa senhorial que antes pertencera ao Shá da Pérsia. E isto porque nunca gasta acima das suas possibilidades.

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