As fronteiras indefinidas da Guerra
A expressão “guerra contra o terror” (“war on terror”) como justificativo para matar pessoas, não pode ser incluída na definição de “guerra”.
Não há nestas operações quaisquer resquícios de conflitos sustentados entre exércitos que caracterizam o estatuto legal de guerra.
A “guerra contra o terror” através de drones, não passa de um conflito com uma cada vez maior lista de alvos, sem fronteiras geográficas definidas, e sem fim à vista.
De acordo com as leis internacionalmente aceites, existem apenas duas situações em que se admite a possibilidade de uma pessoa poder matar outra: ou numa situação de autodefesa ou numa situação de guerra.
Entende-se por “situação de guerra” aquela em que se verifique a existência de um combate sustentado entre duas forças militares organizadas.
Ou seja, um qualquer combate conduzido quer contra uma tática (terrorismo), quer contra uma emoção (terror), não pode ser considerado como situação de guerra, não sendo, portanto, permitindo matar alguém sem se ser inculpado.
Daí que a expressão correntemente usada de “guerra contra o terror” (“war on terror”), não possa servir como justificativo para se matarem pessoas, por não estar incluída na definição de “guerra”.
Nas guerras no Iraque e no Afeganistão, em que o Congresso americano declarou o estado de guerra e em que efetivamente as tropas entraram em combate contra outras forças militares organizadas, as mortes resultantes da chamada “guerra contra o terror” podem ser legalmente justificadas por ela estar inscrita numa guerra de que faz parte.
O mesmo já não acontece, por exemplo, com os combates na Síria em que, para além do mais, nem o próprio Congresso americano emitiu qualquer declaração de guerra. O mesmo se passa relativamente ao Paquistão e outros países em que se verifiquem intervenções a coberto da denominação de serem “guerras contra o terror”.
Foi a partir de outubro de 2001 que a administração Bush lançou o programa de mortes através da utilização de drones, primeiro no Afeganistão, e logo de seguida no Iraque.
Com a chegada do Presidente Obama, assistiu-se a um aumento crescente (cerca de dez vezes mais) deste este programa, não só no número de ataques, como no número de países em que se passaram a verificar (Paquistão, Iémen, Líbia, Somália, Afeganistão, Iraque e Síria).
Este programa de ataques por drones é particularmente conveniente para a Força Aérea, para a CIA e para o Comando Conjunto de Operações Especiais, porquanto permite que os seus pilotos, sentados em segurança frente aos écrans em Nevada ou noutros locais dos EUA, possam matar pessoas que se encontrem do outro lado do globo.
Ele é também tranquilizador para o povo americano, que teria dificuldade em aceitar mortes dos seus soldados sem ser em tempo de guerra.
Por outro lado, também isenta o Congresso de se responsabilizar pelo início de guerras em locais pouco conhecidos e distantes.
E, para o Presidente americano, é também um programa conveniente porque lhe permite usar um sistema de morte à distância sem se ter de preocupar com baixas de americanos e sem necessitar da aprovação ou controle do Congresso.
Há, ainda, quem especule com este enorme aumento na utilização de drones por parte do governo de Obama, atribuindo-o à necessidade de cumprir a promessa eleitoral de acabar com a prisão de Guantánamo: se não fossem mortos, teriam de ser aprisionados e trazidos para Guantánamo para serem “interrogados”.
A utilização dos drones tem, contudo, alguns inconvenientes, todos do conhecimento dos governos, uns abertamente admitidos, outros escamoteados.
O aumento constante do número de mortes de civis em ataques com drones tem sido normalmente atribuído ao facto de as informações recolhidas sobre os alvos, serem, por vezes erradas, por as informações não se referirem a um indivíduo, mas antes à sua maneira de atuar (“assinatura”), ou se referirem a uma atividade suspeita (ex.: “um agrupamento de adolescentes a homens de meia idade, deslocando-se em comboio ou armados”), ou por na altura os civis se encontrarem “indevidamente” no local (referidos nos relatórios como “danos colaterais”; exemplo: uma mãe que regressava ao local com os seus três filhos).
Como justificação para este tipo de atuação, o Governo americano tem sempre proclamado que o faz apenas como “autodefesa”.
Foi essa a razão invocada para a invasão do Afeganistão, e mais tarde do Iraque, devido às célebres ‘não encontradas’ armas de destruição de Saddam.
Dado o escandaloso aumento do número de casualidades internacionalmente conhecidas, mas internamente não admitidas, não é de estranhar que em novembro de 2011 o Ministério da Justiça acabasse por preparar uma fundamentação que permitisse à Casa Branca poder legalmente continuar a usar estes meios de morte dirigidos.
Esses meios seriam considerados legais, desde que:
“(1) um oficial de alta patente do governo dos EUA, devidamente informado, determinasse que o alvo individual acarretasse o perigo de um ataque iminente e violento contra os Estados Unidos;
(2) a sua captura não fosse possível, continuando, no entanto, os Estados Unidos a monitorizarem a possibilidade dessa captura; e
(3) a operação fosse conduzida de forma consistente com a lei aplicável aos princípios de guerra.”
Mas, a ser assim, então a maior parte das mortes por drones não poderiam ser autorizadas, na medida em que dificilmente estariam reunidas as condições para se considerar que se estava perante um ataque iminente e violento aos EUA ou aos seus soldados no campo de batalha.
Pelo que, o Ministério da Justiça se apressou a definir “iminente” não como sendo ‘iminente’, mas como sendo ‘algo que possa vir a acontecer’. E passa a explicar:
“Para se considerar que um leader operacional possa representar um perigo “de ataque iminente” e violento contra os Estados Unidos, não se torna necessário que os Estados Unidos possuam evidência clara de que um ataque específico sobre pessoas ou interesses dos Estados Unidos venham a ter lugar num futuro imediato.”
Assim, qualquer leader operacional inimigo teria sempre de ser considerado como representando “perigo iminente”, porquanto “no que diz respeito aos leaders da al-Qaeda que estão permanentemente a planear ataques, os Estados Unidos têm apenas uma pequena janela de oportunidade para se poderem defender.”
A consequência prática da aplicação desta normativa e da interpretação judicial por parte da Casa Branca, conduz, inevitavelmente, ao aparecimento de listas de ‘alvos’ a serem abatidos, “listas de morte” (“kill list”).
O reconhecimento da existência de tais listas acabou, curiosamente, por ser feito pelo próprio Governo, quando, num esforço de clarificação, se comprometeu (e cumpriu) a prestar “informações sobre o número de ataques feitos pelo Governo dos EUA contra alvos terroristas fora de áreas de hostilidades”, ou seja, fora das zonas consideradas de guerra.
Desde 1948 que a Declaração Universal dos Direitos Humanos assegura o direito à vida, concedendo, no entanto, que existem certos limites a este direito, garantindo, por exemplo, aos países onde exista pena de morte, o direito de o estado poder executar uma pessoa, após um julgamento legal.
Pelo que, executar qualquer pessoa sem um julgamento é considerado como “morte extrajudicial”, sendo um crime contra os direitos humanos.
Como o governo dos EUA assumiu o compromisso de todos os anos, a 1 de maio (sem ironia na data), vir a ser publicada uma lista das pessoas que foram abatidas sem julgamento e sem estar em situação de guerra (ver Nota 1), então estamos perante a institucionalização da pratica do assassinato como parte da política permanente dos EUA.
Tratam-se de meras execuções extrajudiciais admitidas pelo próprio Governo.
A “guerra contra o terror” é uma campanha dirigida contra qualquer inimigo potencial dos EUA, a ser desenvolvida em qualquer país ou continente, e implica uma série de operações clandestinas e encobertas de todo o mundo. Não há nestas operações quaisquer resquícios de conflitos sustentados entre exércitos que caracterizam o estatuto legal de guerra.
A “guerra contra o terror” não passa de um conflito com uma cada vez maior lista de alvos, sem fronteiras geográficas definidas, e sem fim à vista.
Para que tudo isto se torne mais claro, façamos um exercício teórico sobre uma situação concreta:
Imaginemos que o governo da Turquia, tendo declarado como terrorista o pregador islamita Fethullah Gulen, por considerá-lo responsável pelo recém golpe militar falhado no qual morreram dezenas de pessoas, resolvesse eliminá-lo por ele representar uma ameaça constante para o Estado turco.
Como ele está a viver nos EUA, o único meio que o governo turco dispõe (uma vez que os EUA se negam a entregá-lo enquanto não forem apresentadas provas do seu envolvimento) é raptá-lo ou utilizar drones para o eliminar.
Ao abrigo de uma diretiva de “perigo iminente” idêntica à americana, e tendo uma oportunidade para o abater, pode o governo turco desencadear um ataque por drones em solo americano? Poderão os EUA considerar tal ação como um ato de guerra por parte da Turquia?
Uma ajuda: Depois do 11/set, os EUA ameaçaram o Afeganistão com bombardeamentos e invasão se não entregassem Osama bin Laden. A resposta dos talibans foi idêntica à que os EUA deram à Turquia:
“A nossa posição é de se os americanos têm essas evidências (de culpabilidade), que as produzam […] Sem evidência, não há entrega”.
O que é que os EUA fizeram? Duas semanas depois começaram o bombardeamento e a invasão do Afeganistão.
Mas, porque o fizeram? Porque o continuam a fazer? Porque o continuarão a fazer? Porque podem.
O tal problema de ser Império. Todos os Impérios o fazem. O tal problema do “poder”, que não obedece a esquemas racionais nem morais. Outros “valore$”.
Veremos nos anos próximos a que conduzirão tais políticas de utilização de drones, quando começarem a ser aplicadas dentro dos próprios países aos seus próprios nacionais.
Nota 1:
O Diretor do Serviço Nacional de Informações (DNI) dos EUA publicou, pela primeira vez, no passado dia 4 de julho de 2016, um resumo da lista dos ataques feitos por drones contra alvos terroristas efetuadas entre 20 janeiro de 2009 e 31 de dezembro de 2015 (https://www.dni.gov/files/documents/Newsroom/Press%20Releases/DNI+Release+on+CT+Strikes+Outside+Areas+of+Active+Hostilities.PDF), segundo o qual foram efetuados 473 ataques que resultaram em 2372-2581 mortes de combatentes e 64-116 de não-combatentes civis.
Estes números diferem dos apresentados pelo The Bureau of Investigative Journalism (https://www.thebureauinvestigates.com/category/projects/drones/drones-graphs/), que refere um número de mortos de não-combatentes civis entre 492 e 1.077.
Nota 2:
Para evitar situações dúbias como estas e outras resultantes de ações judiciais movidas contra soldados do RU por infligirem maus tratos, assassinatos, abusos e torturas, o muito experiente governo britânico vai decidir permitir que os seus militares, quando no campo de batalha, possam violar as leis sobre direitos humanos da Convenção Europeia.