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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

As florzinhas voltadas para o Sol

Os girassóis, quando já não crescem, quando já estão maduros, deixam de girar. Então, voltam-se para Este.

 “Uma coisa é certa quando tende para preservar a integridade, a estabilidade e a beleza da comunidade biótica. É errada quando tende no sentido oposto”, Aldo Leopold.

“Pleno de méritos, e, contudo, poeticamente, habita o homem nesta Terra”, Hölderlin.

 

 

Num distante tempo em que as frutas ainda tinham época, julguei por bem que o mesmo se passaria com os países, pelo que deveriam preferencialmente serem visitados nas suas estações mais características. Por exemplo, os países nórdicos deveriam ser percorridos durante o inverno, o que acabou por me colocar em pleno dezembro em Estocolmo.

Frio, muito frio, pouca luz, asseio sem limites, autocarros sempre mais limpos que o meu automóvel alguma vez esteve, falar sempre em voz baixa sob pena de sermos observados com curiosidade, sorrisos cúmplices. E o mais.

Acabara de entrar num enorme supermercado para me aquecer, perdido entre a enorme variedade de camarões expostos, verdes, azuis, de mar, de rio, de rocha, grandes, pequenos, muito pequenos. Estava cheio de suecos nas suas compras diárias, quando de repente me vejo sozinho: o mercado esvaziara-se. Apesar de não estar nem perto da hora de fecho, dirigi-me mesmo assim para a saída, não fosse ter havido um qualquer anúncio nesse sentido numa língua que não entendia.

 

O que vi, comunicou-me uma sensação de irrealidade de um real já vivido, como se tivesse entrado dentro da cena de um filme de que já conhecia o enredo, mas de que era apenas espetador. Como vindo das páginas de Os Adoradores do Sol de Fernando Namora.

O supermercado dava para uma praça, onde começaram a ser colocados bancos de ripas, impecavelmente pintados de branco, mas todos desalinhados, sempre voltados para os raios de sol que apareciam por entre o céu enevoado. De todos os armazéns se viam sair pessoas, que de imediato se sentavam nos bancos, de rosto para o sol, e ali ficavam, imoveis.

Cinco ou dez minutos depois, começou a chuviscar, e todos se levantaram caminhando em direção às lojas de onde tinham saído, e os bancos foram de imediato retirados pelos empregados camarários, prontos a serem reposicionados nem que fosse cinco minutos depois.

 

 

Na revista Science, de 5 de agosto de 2016 (Vol. 353, Issue 6299, pp. 587-590), foi publicado um estudo da Universidade da Califórnia Davis, “Circadian regulation of sunflower heliotropism, floral orientation, and pollinator visits” (Regulação circadiana do heliotropismo do malmequer, orientação floral, e visitas de polinizadores), que explica porque é que os girassóis acompanham durante o dia a rota do sol, de este para oeste, e que depois, durante a noite, invertam esta rotação para que no dia seguinte, quando o sol “chegar”, se encontrem de novo voltados para ele.

 

Que muitas espécies vegetais utilizem o heliotropismo como mecanismo eficaz para assegurar as horas de luz que lhes garantam a fotossíntese, já se sabia. Só que isso não explica porque é que durante a noite, perante a ausência do estímulo luminoso, os girassóis invertam a rotação para o lado contrário, reposicionando-se para receberem o sol quando ele voltar a nascer.

 

Após vários estudos e experiências, conclui-se que as partes laterais dos caules dos girassóis cresciam de forma diferente, conforme fosse dia ou noite.

Stacey Harmer, a principal investigadora deste estudo, diz que “durante o dia, o lado do caule que fica na sombra, cresce mais que o iluminado, o que faz com que o girassol se dobre para o sol”.

Isto acontece (e aqui entram proteínas fotorrecetores específicas, fototropinas, e uma hormona de crescimento, a auxina), porque as fototropinas ativadas pela luz provocam uma acumulação de auxina no lado de sombra do caule, fazendo com que o lado de sombra cresça mais.

 

Mas, porque é que os girassóis rodam de oeste para este durante a noite?

Necessitamos de mais estudos, mas em termos gerais, acreditamos que o crescimento do lado Oeste dos caules seja controlado pelo relógio circadiano (que marca quando e quanto deve girar o girassol), ao passo que o do lado Este é manejado pelo mecanismo de sinalização dos fotorrecetores. A relação entre estes dois mecanismos é o que provoca a flexão para a frente e para trás que vemos nas plantas que seguem o sol”.

 

Mais curioso é o facto de os girassóis, quando já não crescem, quando já estão maduros, deixarem de girar. O que se entende porquanto o caule já não cresce, desaparecendo assim o mecanismo que fazia com que a planta se dobrasse. Mas, porque é que todos os girassóis velhos se voltam para Este?

Os cientistas ainda não encontraram resposta para este comportamento, para além de confirmarem que virados a Este aquecem mais rapidamente, atraindo talvez assim mais polinizadores.

 

Importante é notarmos que os girassóis velhos perdem a mobilidade e tentam ficar voltados para Este para apanharem mais sol.

Também nós em idade avançada, em que a diminuição de mobilidade se começa a fazer sentir, temos tendência para nos colocar sentados e o mais imóveis possível, voltados para o sol. Lá se vai mais uma característica que acreditávamos ser só dos humanos. Pensávamos nós.

 

 

Recordemos as ideias que Aldo Leoplod (1887-1948) defendia no seu Sand County Almanac (1944). A ideia da existência de uma comunidade natural e a ideia de que a economia não se podia sobrepor aos nossos deveres para com a Natureza.

Para ele, ‘comunidade natural’ é a que é comum a todos os seres humanos, animais, plantas, águas e solos. O homem, não é mais que um elemento dessa comunidade, e não um ser à margem, que habita harmoniosamente a Terra como seu cidadão.

A Terra deixa de ser entendida como sendo propriedade do homem. O homem deixa de ser entendido, e deixa de se entender, como conquistador dos outros elementos da Terra.

 

Evidentemente, haverá sempre uma certa violência que se exercerá sobre esses outros elementos. Contudo, essa violência só será aceite desde que não a sujeitemos apenas aos valores da economia. A Terra deverá ser concebida para lá do seu valor meramente económico por possuir em si mesmo um valor intrínseco. ( 1)

Leopold, dá-nos uma pista para nos permitir manter o norte perante o emaranhado das relações que têm vindo a ser estabelecidas:

 

Uma coisa é certa quando tende para preservar a integridade, a estabilidade e a beleza da comunidade biótica. É errada quando tende no sentido oposto”.

 

 

Já no século anterior, o “poeta dos poetas”, Hölderlin (1770-1843), escrevia, cripticamente, num poema não titulado:

 

“Pleno de méritos, e, contudo, poeticamente, habita o homem nesta Terra”.

 

Muito resumidamente (2), a interpretação mais aceite:

Ser homem, é habitar. Para habitar é preciso saber construir. Para que este habitar seja possível, torna-se necessária a técnica, enquanto saber fazer.

Mas, só o construir não é suficiente para o habitar. É preciso saber cuidar, única forma de verdadeiramente habitar.  Daí que o habitar será sempre cuidar.

 

Portanto:

Pleno de méritos” refere-se aos méritos do homem enquanto construtor deste mundo, alcançados com o recurso à técnica.

 “Poeticamente”, como poeta que está na terra, atento a ela, velando por ela, sem a constante necessidade de tudo medir e calcular. Só essa é a forma poética de habitar. Só assim a habita verdadeiramente.

Habita o homem nesta Terra”, se não reduzir as suas potencialidades só ao construir, se o construir implicar o cuidar. Só assim o habitar será poético.

 

 

Imensa é a quantidade de outros seres, para além dos humanos, que nos acompanham, silenciosamente ou não, ao longo da vida. Cuidem deles. Não só dos girassóis. E, já agora, dos humanos também.

 

 

Nota 1: sobre os valores intrínsecos da Natureza (sobrevivência, económico, recreativo, científico, estético, diversidade genética histórico, simbolização cultural, construção do carácter, diversidade, dialético, vida, religioso), ver Holmes Rolston III, Enviromental Ethics, Duties and Values in the natural World, 1988.

Nota 2: para quem queira saber mais sobre o poema de Hölderlin, ler (pdf) M. Heidegger, “… L’Homme Habite en Poète… “.

 

 

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