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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

A vida da morte

Os corpos são formas de energia aprisionadas em massas de matéria à espera de serem libertadas no universo”, M. Constandi.
As fases da decomposição do corpo dependem da composição bacteriana
Três moscas podem consumir o cadáver de um cavalo no mesmo tempo que um leão”, Lineu, 1767.

 

Talvez a melhor maneira para se compreender que o aparecimento de vida constituiu um longo processo passando por fases nem sempre claras para nós, seja exemplificar o  que está muito mais perto de nós, mais fácil de acompanhar nas suas várias fases: o processo de morte. Além do mais, a compreensão desse processo revela-se essencial para se perceber que a morte não constitui apenas mais um instante, um final fora de tempo. A vivência da morte deverá ser vista como consumação de uma unidade de vida com sentido.

 

Pouco depois do coração parar, as células deixam de receber oxigénio e a sua acidez aumenta à medida que os derivados tóxicos das reações químicas se acumulam no seu interior, iniciando-se assim o processo chamado de autodigestão. As enzimas começam a digerir as membranas celulares, primeiro no fígado, rico em enzimas, e no cérebro, devido ao alto teor de água. Depois o mesmo processo vai estender-se a todos os outros tecidos e órgãos, que acabam por colapsar de igual modo: rompidos os vasos sanguíneos, as células depositam-se devido ao efeito da gravidade, nos capilares e pequenas veias, descolorando a pele.


A temperatura do corpo começa também a cair, adaptando-se ao ambiente exterior. A ação das proteínas filamentosas das células musculares desaparece, na medida em que todas as células se vêm privadas da sua fonte de energia, o que vai dar lugar à rigidez dos músculos e à paralisia das articulações: é o momento do rigor mortis, que começa pelas pálpebras, mandíbula, músculos do pescoço, passando depois para o tronco e extremidades.


É sabido que o nosso corpo alberga uma quantidade enorme de bactérias. Comunidades específicas de bactérias vivem no e do corpo humano. A maior destas comunidades está no intestino. Aí residem biliões de bactérias de milhares de espécies diferentes. Contudo, a maioria dos órgãos internos, enquanto estamos vivos, estão livres delas.
Pouco depois da morte, o sistema imunitário deixa de funcionar, o que vai permitir a expansão destas bactérias por todo o corpo. Esta invasão começa a partir dos intestinos para os tecidos vizinhos, de dentro para fora. Alimentando-se das misturas que se escaparam das células estragadas, os micróbios vão invadir os capilares do sistema digestivo, os nós linfáticos, propagando-se pelo fígado e baço, antes de alcançarem o coração e o cérebro.

Após a morte, as bactérias levam em média 20 horas a alcançarem o fígado e até 58 horas para todos os outros órgãos. “ O baço, o intestino e o estômago decompõem-se primeiro, ao passo que os rins, o coração e os ossos sofrem uma decomposição mais lenta”.Os estudiosos têm também chegado à conclusão que as fases da decomposição do corpo dependem da composição bacteriana.


Assim que as bactérias começam a escapar-se do intestino, começa a fase de putrefação. É a morte molecular, a decomposição mais aguda dos tecidos moles em gases, líquidos e sais. Nesta fase, as bactérias aeróbicas, que necessitam de oxigénio, cedem o passo às que não necessitam, as anaeróbicas, que começam a alimentar-se dos tecidos do corpo, fermentando açúcares no seu interior e produzindo derivados gasosos como o metano e o amoníaco, que acumulando-se no corpo fazem com que ele inche, especialmente no abdómen.
À medida que as células sanguíneas se escapam dos vasos em desintegração, as bactérias anaeróbicas transformam as moléculas da hemoglobina que levavam o oxigénio ao corpo em sulfa-hemoglobina. É a presença destas moléculas que vão agora dar ao corpo em plena decomposição aquela aparência translúcida característica.


Devido ao aumento da pressão gasosa no interior, a superfície do corpo enche-se de bolhas. Segue-se a flacidez, e logo depois dá-se o despendimento de grandes camadas de pele. Finalmente, os gases e os tecidos liquefeitos abandonam o corpo, através do ânus ou outros orifícios, ou ainda pelos sítios onde a pele se soltou. Pode até ocorrer que devido à pressão o abdómen se abra.


Quando um corpo em decomposição começa a purgar-se fica exposto ao ambiente. Entramos aqui na fase dita de colonização em que o ecossistema cadavérico é já autónomo, com o seu ninho de micróbios, insetos e necrófagos. Os cadáveres exalam um cheiro fétido, adocicado, proveniente de uma mistura de compostos voláteis que se vão alterando à medida que a decomposição progride. As moscas varejeiras, as moscas da carne, detetam o cheiro através de recetores especializados nas suas antenas, poisam no cadáver e põem ovos nos orifícios das feridas abertas.


Cada mosca põe uns 250 ovos que eclodem em 24 horas. As pequenas larvas que se alimentam da carne putrefacta transformam-se em larvas maiores, que continuando a alimentarem-se voltam em algumas horas de novo a transformarem-se. A partir de certo tamanho, arrastam-se para fora do corpo, pupam (crisálidas) e transformam-se em moscas adultas, recomeçando o ciclo alimentar até que nada mais reste. Carl Lineu (1767) dizia que “três moscas podem consumir o cadáver de um cavalo no mesmo tempo que um leão”.


A presença das moscas atrai diversos predadores como o escaravelho da pele, o ácaro, a formiga, a vespa e a aranha, que se alimentam das larvas e dos ovos das moscas, ou os parasitam. Podem também aparecer os necrófagos, comum para os grandes carnívoros.
O relacionamento e a mistura que se verifica neste ecossistema cadavérico é enorme. As moscas, para além de deixar os ovos, transportam com elas algumas bactérias próprias que ali deixam e levam outras que ali recolhem. Os tecidos liquefeitos que se filtram através do corpo permitem também um intercâmbio de bactérias entre o cadáver e o solo subjacente. Esta purga, ao originar a migração das larvas e ao libertar nutrientes para o solo, vai criar uma área muito concentrada de grande riqueza orgânica: não só liberta nutrientes num ecossistema mais alargado como atrai outras matérias orgânicas, insetos mortos e restos fecais de animais maiores.


Calcula-se que o corpo humano contém entre 50% a 75% de água, e que cada quilo de massa corporal seca liberta para o solo 32 gramas de nitrogénio, 10 gramas de fósforo, 4 gramas de potássio e 1 grama de magnésio. Num primeiro momento, o corpo depositado no solo vai destruir a vegetação à sua volta, devido quer à toxidade do nitrogénio quer pelos antibióticos que contém, excretados pelas larvas dos insetos enquanto se alimentam da sua carne. Mas por fim esta decomposição acaba por beneficiar o solo.


Estes novos conhecimentos de estudos científicos sobre as análises da fauna microbiana dos cadáveres e das sepulturas têm avançado muito. Gulnaz Javan da Universidade Estadual de Alabama, Montgomery, foi o primeiro a referir esta área científica como sendo a do estudo do thanatomicrobiome. Os especialistas no estudo da decomposição de cadáveres, Sibyl Bucheli e Aaron Lynne da Universidade Estadual de Sam Houston (SHSU), Texas, acreditam que em breve será normal utilizar-se a informação bacteriana nos processos criminais, o que irá permitir uma determinação quase exata da hora da morte, e a identificação do próprio morto pelo tipo de bactérias e micro organismos que desenvolve. Por outro lado, Daniel Wescott, do Centro de Antropologia Forense da Universidade do Estado do Texas em San Marcos, crê que os seus estudos sobre a análise bioquímica da terra das sepulturas irão ajudar os investigadores a calcularem o tempo que o corpo permaneceu enterrado.


Nem as bactérias, nem os terrenos escapam à vigilância. Nem a morte.

 

A ser verdade que a energia não se cria nem se destrói, só se transforma, tal significará que no processo em que as coisas se decompõem a sua massa converte-se em energia. “Os corpos não passam de formas de energias aprisionadas em massas de matéria a aguardar serem libertadas no universo”.


É esta a vida da morte. Pelo menos até onde hoje a conhecemos.

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