A verdade como processo
“Nunca ninguém diz toda a verdade, só a verdade e nada mais que a verdade”, G. Vattimo.
“Não saberíamos o que é uma proposição que não está certa, se não soubéssemos o que são umas calças que não nos servem”, P. Sloterdijk.
“Acertou!” É o que nos dizem nos variados concursos de televisão quando a resposta, ou lá o que é, se adequa à pergunta, ou lá o que foi, num pequeno assomo daquilo que é a racionalidade como princípio de perceção das coisas que nos dizem respeito sob o ponto de vista da sua proporcionalidade, mensurabilidade e calculabilidade.
Não se tivesse já anteriormente definido ratio como cômputo, medida, relação, porção, correspondência, e não chamaríamos de racionalidade a esse princípio. O que também significa que até haver essa correspondência, o que antes existira fora a não-correspondência. É lento o processo que leva da não-correspondência até ao encontro da correspondência. E é isso que a civilização é: lugar onde se exercitam esses encontros.
Muito longo foi o tempo transcorrido até que se começasse a acertar a correspondência entre os solos, as estações do ano, as sementes plantadas, e as colheitas. De tal forma longo, matricial, que levou Cícero a importar essa ação humana milenar de cultivar para apanágio de uma alma que se queria elevada, a cultura. Ainda hoje considerada como forma de vida racional, correta, conveniente.
Atentemos noutros pequenos exemplos que pré-existiram e formaram este caldo de cultura da verdade, e que se insiste em obscurecer, em não ver, parentes pobres da filosofia. Alguns deles datados já muito antes de cultivarmos as terras, presentes nos povos caçadores para os quais o correto, o verdadeiro, era o que acertava. Lançado o dardo, a seta, o projétil, o acertar irá passar a fazer parte da nossa história da racionalidade. Pode-se até dizer que a precisão de tiro das artilharias modernas, ao decidirem sobre o resultado das grandes guerras, permite-nos estabelecer uma relação entre a função de verdade e o motivo balístico. “Tem razão quem ganha”.
Quando nos metemos nas caravelas e partimos para descobrir, e quando encontrámos o que quer que fosse que necessitávamos, e quando nos apropriámos e trouxemos para casa, estávamos a repetir aquela racionalidade arreigada há muito nos prospetores de tempos passados e segundo a qual o que achássemos poderíamos trazer para casa como nosso.
Séculos depois dos descobrimentos, a quando das expedições científicas, voltámos a utilizar exatamente o mesmo processo mental só que nessa altura o coligir e trazer para casa se faziam já com meios muito mais modernos. A racionalidade, a ratio, era exatamente a mesma entre o procurar, achar e o direito à apropriação.
Estes exemplos de funções de verdade, o acertar e o achar e muitos outros, encontram-se em muitas outras artes e ofícios, cada uma com as suas pequenas verdades, razões, exatidões, adequações. É assim que para o carpinteiro a verdade é o que se ajusta, para o pedreiro a verdade é o que está direito e se aguenta, para o músico é o que está afinado, para o farmacêutico é o que ajuda, para o alfaiate é o que serve.
É porque têm sido feitos durante sempre estes exercícios de ajustamento e adequação, que foi possível um caminho intelectual que conduziu ao aparecimento da formação de juízos, e que esses próprios juízos sejam por todos aceites como evidentes. Sem esses exercícios de acertar, encaixar, ajustar, afinar e outros que tais, não teriam sido possíveis todas as outras funções complexas do espírito humano nos domínios da teoria, da prática e da arte. Eles foram a preparação do terreno para as verdades da ciência, da metafísica, da ética, da religião e da estética.
Na frase lapidar de Sloterdijk:
“Provavelmente, não saberíamos o que é uma proposição que não está certa, se não soubéssemos o que são umas calças que não nos servem”.
Que rapidamente tenhamos esquecido ou negligenciado as funções de verdade desses naturais raciocínios em favor de outros que nos parecem ou aparecem mais carregados de verdade, diz bem da sociedade que fomos protagonizando. Como sempre, fomos carreando para ‘casa’ os achados, sem nunca equacionarmos o que esses achados, uma vez dentro de ‘casa’, farão de nós.
No dia em que colocámos a verdade como algo exterior a nós, com existência própria, perfeita de sempre e para sempre, inalcançável, nesse dia o mundo mudou, tudo justificando em nome dela. É isso que subtilmente nos vem lembrar G. Vattimo quando conclui que “nunca ninguém diz toda a verdade, só a verdade e nada mais que a verdade”.