A originalidade da cópia
“O conceito de original de restauro, tem na sociedade ocidental variado muito através dos ‘tempos’, a reboque de acontecimentos políticos, modas e outros, e tão depressa têm levado a sentimentos de admiração e culto pelas obras do passado, como a sentimentos de aversão e rejeição.”
“No Oriente, a descontinuidade poética da criação é substituída pelo processo linear da variação e da combinação pelo jogo.”
Aquilo que é conhecido como sendo o Exército de terracota, é uma coleção de esculturas de terracota (literalmente ‘terra assada’ em fornos a baixa temperatura) em tamanho quase natural, representando os exércitos do primeiro imperador da China, Qin Shi Huang, e que foram enterrados juntamente com o imperador por volta de 210 a. C., evidentemente com a finalidade de o protegerem na sua vida após a morte.
Ao todo são mais de oito mil soldados, 130 carros de combate puxados por 520 cavalos, e ainda mais 120 cavalos prontos a serem montados.
A 25 de novembro de 2007, o Museu de Etnologia de Hamburgo abriu, com pompa, uma exposição que intitulou como o “Poder na Morte”, onde, pela primeira vez fora da China eram exibidas oito figuras de guerreiros, dois cavalos e 60 objetos menores do Exército de terracota.
Só que os “espertos” ocidentais concluíram que as peças expostas eram cópias, falsificações, o que levou a polícia a investigar a autenticidade das figuras e o Museu a devolver o valor das entradas a cerca de 10.000 visitantes que, entretanto, já tinham visto a exposição.
Para os guardiões ocidentais da cultura e não só, a China não passa de mais um país atrasado que ignora a propriedade intelectual, sempre pronta a inundar o mercado mundial com contrafações.
Mas, nem sempre o “Ocidente” foi assim tão severo e determinado.
Na Grécia antiga, a cópia era considerada como tendo igual valor à obra original. A conservação dos objetos era mais ditada por motivações económicas ou religiosas do que por preocupações de salvaguarda do original.
Na Roma antiga, a arte e a religião eram meios políticos de propaganda e conquista. O restaurar tinha como objetivo perpetuar a memória e a gloria do povo romano, o que implicava reparar e refazer sempre com formas mais grandiosas conforme as exigências do momento. Restaurar na arquitetura significava substituir elementos originais degradados por outros de fabricação nova, por materiais mais nobres.
Um monumento era mantido apenas se o poder o apreciava e queria que fosse mantido. Mudando o poder, assistia-se normalmente à decadência dos monumentos erigidos pelo regime precedente, igualando a tradição egípcia que fora removendo os revestimentos calcários que recobriam a pirâmide de Quéops para com eles construírem novos edifícios.
Com a advento do Cristianismo vai assistir-se a uma generalizada destruição e vandalização dos monumentos clássicos, considerados na generalidade como obras pagãs e politeístas, sendo olhados até com horror. Muitos dos antigos monumentos acabam transformados em pedreiras. Nesse tempo era, evidentemente, feito por cristãos, logo só por si justificado!
Com o Humanismo e o Renascimento começa-se a olhar para o passado como um património que devia ser salvaguardado como testemunho para o presente, fonte de aprendizagem de um método. Em 1462, o Papa Pio II publica um édito que proíbe a destruição e a reutilização dos materiais retirados dos monumentos antigos para as novas construções.
Isto significa que começa a ser particularmente valorizado um certo momento da história do homem, o da Idade Clássica. Mas, esta valorização do antigo tinha de ser reinterpretada através do conceito contemporâneo, o que levava a que tal operação só pudesse ser feita por entendidos, por artistas, com plena liberdade para executar tais trabalhos.
Com todas as suas boas intenções de amor pelo antigo, muitas das suas intervenções conduziram a alterações e falsificações das obras originais, nomeadamente devido a uma visão que não se importava assim tanto pela totalidade da obra, focalizando-se mais em pormenores isolados que mais convinham ou interessavam ao encarregue do trabalho.
As descobertas arqueológicas de Herculano e Pompeia em meados do século XVIII vão avivar a necessidade da conservação da integridade da obra de arte e da necessidade do aparecimento de teorias orientadoras, que até aí não existiam.
Nos meados do século XIX, Viollet-Le-Duc (1814 – 1879), escreve que “Restaurar um edifício não é, de fato, mantê-lo, repará-lo ou refazê-lo, é o seu restabelecimento num estado completo que pode mesmo nunca ter existido num dado momento”.
Le-Duc convida o restaurador a entrar dentro da cabeça do criador original e executar projetos que, talvez, o construtor medieval nem nunca tivesse concebido, o que acabou por levar a operações de reparação e restauro totalmente arbitrárias e à falsificação de numerosas obras de arte em que os elementos originais chegavam a serem sacrificados, como podemos ver na Notre Dâme de Paris, na Santa Croce e Santa Maria del Fiore em Florença.
Já John Ruskin (1819 – 1900), propõe que que o monumento deve permanecer como está, não deve sofrer nenhuma intervenção nem ser tocado. Deve ser deixado morrer serenamente, mas procurando-se atrasar esse dia o mais possível através de uma manutenção contínua. O monumento, a sua ruína, fazem parte a dimensão infinita da natureza. Para Ruskin, o restauro como conservação é uma mentira porque substituindo-se as pedras antigas destrói-se o monumento e obtém-se apenas um modelo do velho edifício.
Camilo Boito (1836 – 1914), vai em 1883 enunciar os princípios fundamentais do restauro, que ainda hoje se aplicam. Para ele, as obras valem não só para o estudo do campo em que se inserem, mas servem também como documentos dos povos, devendo por isso serem respeitados. Devem ser preferencialmente consolidados em lugar de serem reparados, preferencialmente reparados em vez de restaurados, evitando-se adições e renovações. As adições executadas em tempos diferentes devem ser consideradas como partes da obra e mantidas.
Resumindo: o conceito de original, de restauro, tem na sociedade ocidental variado muito através dos ‘tempos’, a reboque de acontecimentos políticos, modas e outros, e que tão depressa têm levado a sentimentos de admiração e culto pelas obras do passado, como a sentimentos de aversão e rejeição.
Teria sido, pois, bom parar para pensar, humildade, em vez de entregar o caso à polícia. Mas eram chineses, ainda por cima comunistas sem consideração nenhuma pela propriedade intelectual ou qualquer outra. Polícia com eles.
Mas, que interesse teriam os chineses em ‘falsificar’ os guerreiros de terracota?
Para os chineses, era prática corrente a feitura de cópias, no momento e até no local onde se desenterravam as obras. Esta prática de reprodução tinha a ver, não só com a aprendizagem com o processo de produção dessas obras que acabavam por desempenhar as mesmas funções, independentemente de a data de fabricação ser mais ou menos antiga, mas também com uma garantia de fidelidade ao espírito da obra.
Explicando melhor: Todos os anos, milhões de fiéis se deslocam em peregrinação ao Santuário de Ise, o mais importante templo xintoísta do Japão. Todos eles estão convencidos que aquele edifício sagrado tem 1.300 anos. Na realidade, este templo é reconstruído todos os vinte anos. E, não se trata apenas de uma reconstrução que envolva o desmontar e o tornar a montar o edifício. Essa reconstrução inclui também a eliminação e a substituição de todos os tesouros, a queima de todas as peças combustíveis e o enterro de todas as partes metálicas.
Nunca é colocada a questão do que é original ou do que é cópia. Aliás, a cópia até se lhes apresenta como estando mais próxima do original que o original. Isto, porque quanto mais antigo for um monumento, mais ele se afasta do seu estado original. Só a cópia o trás de novo para o seu “estado original”.
Além do mais, a noção de artista individual, do artista como sujeito, não existia na cultura oriental. Em sua substituição aparecia antes a celebração da inteligência do povo.
Provavelmente, é esta indiferença perante o original, que vai conduzir ao aparecimento de inúmeras maneiras de o expressar pelas mais diversas variações, combinações e mutações, e que acaba por conduzir a muitas invenções de produtos até superiores ao original.
É assim, que apesar de muitos dos telemóveis made in China imitarem até o nome dos originais, eles são os Nokir, os Samsing, o facto é que tecnologicamente não são cópias, pois comportam desenvolvimentos que os afastam do modelo original. Quando, por exemplo, um deles vem equipado com uma função suplementar que lhe permite reconhecer se uma nota (de dinheiro) é falsa, ele passa a ser um original.
Estes produtos de ‘imitação’ ganham vida própria ao criarem sucessivas variantes progressivas do modelo original, a ponto de se tornarem eles próprios mutações, tornando-se originais.
É isto que o Ocidente não quer compreender. Reduz tudo a uma questão de paternidade de autor e propriedade intelectual. O resto, a cópia, a imitação, caem normalmente dentro do campo da atividade criminosa: casos de polícia.
E é por não entenderem o conceito de criatividade chinesa que nem sequer têm vocábulo que a exprima. Porque eles não são ‘cópia’, nem ‘imitação’.
Breve: os chineses têm um outro conceito sobre o que é criatividade, onde a descontinuidade poética da criação é substituída pelo processo linear da variação e da combinação pelo jogo.