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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

"A economia está bem, o País é que está mal"

A economia está bem, o País é que está mal”, dito erudito.
Com papas e bolos se enganam os tolos”, dito popular.

 

Os filósofos parecem por vezes escrever de uma forma hermética sobre coisas que aparentemente não têm que ver com o que se está a passar, o que os torna ao nosso olhar uns chatos que falam incompreensivelmente sobre o que não nos interessa.
Quando Lacan nos vem dizer que “ Realidade é a realidade social dos indivíduos efetivos implicados em interações e nos processos produtivos”, e que o “Real é a inexorável e abstrata lógica espetral do capital determinando o que ocorre na realidade social”, o que está a fazer é a tentar através de um processo intelectual aceder à generalização de um problema, que embora sendo particular, se põe à sociedade.


Um bom exemplo para melhor compreendermos o que Lacan quer dizer é Portugal. Em Portugal temos por um lado a degradação constante das condições de vida das pessoas, o alargar da miséria, a incerteza em todas as suas vertentes sobre o indivíduo e sobre o estado social, a culpabilização e o ataque aos mais desprotegidos. Isto é a Realidade. Mas por outro lado, temos os relatórios económicos todos unânimes a dizerem que a situação económica do país é “financeiramente sólida”. Isto é o Real. Qual é a conclusão que o governo tira? Que “A economia está bem, o País é que está mal!”. Ou seja, não é a Realidade que conta, o que conta é a situação do capital, porque isso é que é o Real.


Vejamos mais exemplos:
Quando os nobres Franceses foram violentamente atingidos pela Revolução, muitos deles diziam que não tinham feito nada de mal, alguns deles até eram pessoas sinceras e benevolentes, preocupadas com a assistência à pobreza. Não percebiam a violência inerente ao sistema em que viviam, violência essa que lhes permitira o conforto das suas existências face a todos os outros.
Quando a 30 de Junho de 1960 foi proclamada a independência do Congo Belga (o Congo Belga, com uma extensão equivalente a Portugal, Espanha, França, Alemanha, Itália, Reino Unido, Polónia e Eslováquia, fora até 1908 propriedade privada de Leopoldo II, rei da Bélgica, propriedade que incluía os direitos de exploração - era dono - de todas as minas do Congo - descobertas e por descobrir), perante a assistência do rei Balduíno da Bélgica, o nomeado chefe do Governo, Patrice Lumumba, disse no seu discurso comemorativo:


“Suportámos trabalhos duros a troco de dinheiro que não nos permitia sequer alimentarmos, vestir-nos, ter alojamentos decentes, nem criar devidamente os nossos filhos. Éramos tratados com insultos, pancada, que sofríamos de manhã à noite, porque eramos negros. As terras que eram propriedade dos negros foram-lhes retiradas por meios supostamente legais, que apenas representavam a imposição do mais forte sobre o mais fraco. Estávamos fartos de saber que a lei era diferente para os negros e para os brancos. Estes tinham casas magníficas; os negros tinham palhotas miseráveis.
Quem se pode esquecer dos enforcamentos, dos fuzilamentos em que tantos irmãos nossos morreram? Ou das prisões para onde eram carregados os que escapavam às balas dos soldados negros, convertidos pelos colonialistas em instrumentos de dominação?”


Os europeus que assistiram a esta proclamação da independência estavam estupefatos, incluindo o rei Balduíno que se viu obrigado a aplaudir cortesmente. Um jornal londrino classificou esta nova República como “turbulenta e provavelmente transitória”, e acertou: Lumumba, o único político que pedia a unidade de todo o Congo, foi preso e assassinado seis meses depois, a 13 de Fevereiro de 1961.
E contudo Leopoldo II, que esteve na origem de todo este genocídio praticado no Congo, era considerado e considerava-se um grande filantropo, chegando a ser proclamado santo pelo Papa. Aplicou a maior parte dos lucros obtidos pela exploração implacável dos congoleses em benefícios para o povo belga, promovendo obras públicas, museus, e outros.


Isto acontece porque muitas das nossas atitudes e normas de vida, aparecem-nos como fazendo parte do senso comum, sendo tidas como naturais, neutras, não-ideológicas. Deixam portanto de serem percebidas como ideologicamente marcantes. Tudo aquilo que não se inscreva neste pano de fundo que se toma como sendo neutro passa a ser chamado de “ideologia”, englobando desde o zelo religioso extremo à dedicação exclusiva a uma outra orientação política. Estamos perante uma certa forma de cegueira que impede a compreensão do problema.
É por isto que é muito vulgar falar-se sobre os crimes do comunismo, invetivando facilmente até as suas origens ideológicas: a ideologia totalitária, O Manifesto Comunista, Rousseau e até mesmo Platão. Mas se, por exemplo, chamarmos a atenção para os milhões de pessoas que morreram em resultado dos massacres no México no século XVI, da escravatura, do holocausto no Congo Belga, das Grandes Guerras, do nazismo, da globalização, vão dizer-nos que tudo isto aconteceu em resultado do que foi acontecendo, que não houve nenhum planeamento, não havia nenhum Manifesto Capitalista. Não passa de uma evolução natural, neutra, que nada tem de ideológico.


Hegel notou que sempre que sobre o pano de fundo “não ideológico” se tentar introduzir a atualização de uma ideia ou ideologia, a tendência será o aparecimento de outra ideologia contrária, que tenda a repor a neutralidade do pano de fundo. Chamou-lhe a dialética da “coincidência dos contrários”.
Se utilizarmos aquela expressão popular muito arreigada sobre “as duas faces da mesma moeda” poderemos considerar que as preocupações não belicistas opostas à violência dos liberais progressistas e a cega explosão de cólera dos fundamentalistas são as duas faces da mesma moeda. Mas, atenção: isto permite explicar a realidade mas não o real; não devemos esquecer que além das duas faces da moeda existe a moeda, que é o importante pano de fundo “neutral”!


É também por isto que temos dificuldade em ver que os filantropos que dão milhões de dólares para combater a SIDA ou promoverem a educação, sejam os mesmos que arruinaram a vida de milhares de pessoas através da especulação financeira e criaram as condições para o aparecimento da mesma intolerância que dizem querer combater.
Estes novos progressistas liberais são também os que apregoam o ‘pragmatismo’ na abordagem dos problemas. Para eles não existe uma classe trabalhadora una e explorada. Há apenas problemas concretos a resolver: a fome em África, a violência do fundamentalismo religioso, a sujeição das mulheres muçulmanas. Há que empenhar as pessoas, os governos, o mundo dos negócios, para fazer com que as coisas avancem, em vez de se confiar no auxílio de um Estado que só serve para atrasar e atrapalhar as coisas. E a via mais eficaz é a iniciativa privada. Batam palmas perante tanta clarividência.


Todos eles são boas pessoas que se preocupam, que não podem ser comprados pelos interesses das grandes companhias porque são seus coproprietários, que exprimem honestamente as suas opiniões porque são tão poderosos que o podem fazer, que são intrépidos e prudentes promovendo inexoravelmente as suas iniciativas sem terem em conta os seus interesses pessoais porque todas as suas necessidades se encontram satisfeitas. Sabem que é a pobreza e a impotência que alimentam o terrorismo. Por isso, o seu objetivo não é ganhar dinheiro mas mudar o mundo. O que não deixa de ser curioso pois ao negarem-se a si próprios como personificação do sistema (a procura do lucro) estão a admitir que só por si o sistema já não chega para que a sua vida adquira sentido. Adiante. São os maiores benfeitores da história da humanidade, à frente na luta a favor da educação, contra a fome e a doença. Será mesmo assim? Não nos devemos contudo esquecer que para se dar, primeiro tem de se ganhar!
Porque é que na sua busca implacável do lucro necessitam de utilizar a beneficência como contrapeso? Por um lado, a beneficência aparece como a máscara que dissimula o rosto da exploração económica: os países desenvolvidos ‘socorrem’ os subdesenvolvidos concedendo-lhes auxílios, créditos, e com isso escamoteiam a questão fundamental que é a da sua cumplicidade no que se refere à situação miserável em que esses países se encontram. Por outro lado, a nível ‘pessoal’ (sabendo ou não, sendo sinceros ou hipócritas), quando estes capitalistas progressistas liberais oferecem ao bem público a sua riqueza acumulada, o que estão a fazer é a protelar no tempo a crise do sistema, restabelecendo o equilíbrio através de uma espécie de distribuição de riqueza à sua maneira, procurando evitar o aparecimento quer de uma lógica destrutiva do ressentimento, quer de uma redistribuição da riqueza imposta pelo Estado.


E isto é o sintoma de que “o sistema atual já não pode reproduzir-se só pelos seus próprios meios. A beneficência extraeconómica é-lhe necessária a fim de manter o seu ciclo de reprodução social”. Como bem por cá há muito se diz:
Com papas e bolos, se enganam os tolos” que somos nós.

 

 

 

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